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A convergência com o historicismo

No documento O jovem Nietzsche e a leitura (páginas 71-76)

É inegável o papel de centralidade que ocupou a História durante o século XIX. Um papel que tomou forma ascendente a partir da segunda metade daquele século. Para Wehling Arno:

O prestígio da História como um campo privilegiado do conhecimento atingiu seu apogeu no último quarto do século XIX. Da correta interpretação do passado parecia fluir a segurança cognitiva em relação a um processo que ainda se encontrava em curso – e que podia, portanto, em diferentes graus, conforme o determinismo admitido pelo autor, sofrer interferências e correções.117

O historicismo, para Arno, passou por várias etapas que, seguindo o critério temático, poderiam ser classificadas genericamente em três: a filosófica, a romântica e a científica.

A primeira fase, a do historicismo filosófico, compreenderia a produção dos filósofos do século XVIII, “... inclusive a filosofia política e social, até as

obras de Kant e Hegel.” Este historicismo ostentaria a temática do anti-

mecanicismo defendendo a “...busca de explicações particulares a épocas e

momentos históricos.” O que não implicou uma adesão automática ao

irracionalismo ou ao romantismo, uma vez que “... admitiam o padrão newtoniano

de interpretação do real.” 118 No entanto, dentro desta mesma perspectiva, havia aqueles que, como Vico e Herder, por exemplo, mesmo minoritários, defendiam uma posição antinaturalista para os fenômenos sociais e culturais.

A segunda vertente do historicismo seria a romântica. Para Arno esta fase compreenderia “... a produção de historiadores, juristas, literatos e outros

intelectuais contemporâneos do romantismo e do racionalismo imediatamente posterior à Revolução Francesa, até cerca de 1850.”119 Estes autores caracterizam-se principalmente pela sua postura anti-racionalista que se recusa a

117

ARNO, Wehling. A invenção da História: estudos sobre o historicismo. Rio de Janeiro: Editora da Universidade Federal Fluminense, 1994. p. 13.

118

Todas as citações deste parágrafo retiradas de: ARNO, Wehling. Ibidem. p. 28.

119

aceitar a existência de leis históricas gerais a cada povo, cultura ou período temporal. Ao contrário, apostou-se num historismo (como talvez fosse mais apropriado chamar esta fase) fundado na “crença numa realidade histórica

orgânica e inconsciente”.

Neste momento temos o apogeu do romantismo literário que se estendeu pela história, por exemplo, com o romance histórico de Walter Scott. Conquanto, “... foi também o da construção definitiva da crítica histórica com a obra de

Ranke e seus seguidores, além do estabelecimento dos primeiros pilares metodológicos em outras ciências do homem, como a etnologia, a sociologia e o direito.”120 Notamos ser a partir desta faceta historicista do segundo momento que se desenvolverá o historicismo científico da terceira fase.

Por fim, a terceira fase do historicismo, a científica, compreenderá “... a

produção da esmagadora maioria dos cientistas sociais entre 1850 e a Primeira Guerra Mundial nos campos da história, antropologia, direito, sociologia, economia, ciência política e psicologia.”121 O historicismo passa a caracterizar-se pela busca rigorosa de regularidades do processo histórico e das leis que estariam regendo tais regularidades. Acompanha-se a crença na teleologia dos sistemas sociais e na sucessão de fases de desenvolvimento, “com graus menores ou

maiores de determinalidade”. Arno afirma-nos que o evolucionismo, o

positivismo e o marxismo foram profundamente marcados por esta forma de compreensão do passado.

120

ARNO, Wehling. A invenção da História: estudos sobre o historicismo. loc. cit.

121

Convém ressaltar que não podemos, em nenhum momento, observar um tipo historicista puro e totalmente hegemônico. No historicismo filosófico destacam-se Vico e Herder como elementos diferenciadores. Da mesma forma Ranke e Humboldt não estariam completamente afinados com o historicismo romântico, assim como Nietzsche representaria a grande voz contestatória do historicismo científico.

Atendendo de maneira especial à forma do historicismo científico de compreender o passado, a filologia clássica representará a adoção de um método rigoroso de abordagem dos textos antigos. Ela fornecerá ao historicismo um método científico que possibilitará o desenvolvimento rigoroso da crítica documental aplicada de maneira geral aos textos considerados históricos.

Neste sentido, a partir destas batalhas conceituais, o significado de clássico adquire uma nova acepção, agora ligada a conceitos mais utilitários e racionais. A associação entre filologia e história torna-se inevitável. Observa-se a transição de um humanismo histórico-filológico-romântico para um historicismo filológico-científico que, em linhas gerais, seria avaliado no início do século XX por Ernest Troeltsch. Para ele, por um lado, a historicização seguiu, já desde fins do século XVIII, o caminho da naturalização, ou melhor, da matematização do pensamento. Por outro lado, a história encetou sua ascensão sob a pressão conjugada de necessidades práticas do Estado Moderno, ao qual incumbia a tarefa de compreender-se a si próprio.122

122

TROELTSCH, Ernest. Gesammelte Schiften. Tomo III. Tübingen, 1929, p. 9. apud REINHARDT, Karl. La philologie classique et le classique. p. 71.

Um pouco antes, este fenômeno foi identificado por vários literatos e pensadores, a maioria deles românticos tais como Kleist, Schiller e Fichte para citar apenas alguns dos mais apreciados por Nietzsche.123 Neste sentido, houve análises e protestos para com o avanço irremediável do conhecimento científico- natural matematizável sobre as humanidades, sobre a história e a literatura em especial.

Por exemplo, Kleist em Da reflexão irá defender a premissa de que a ciência, com sua neutralidade axiológica, paralisa a ação e que somente um conhecimento valorativo das coisas é que pode estimular a vida e a ação. 124 Desta feita, o estudo do passado feito de forma objetiva e isenta de valor, como estava tornando-se o ideal historicista, não poderia servir de tonificante para as ações humanas. Ao contrário, a pesquisa valorativa do passado tanto pode servir como luz para as ações do tempo presente como pode oprimir com igual maestria estas mesmas ações.

Também Schiller em Que significa e com que fim se estuda a história

universal?125 Defende a proposição de que o conhecimento científico é paralisante, e aposta na impossibilidade de um conhecimento isento de valor. Da mesma forma Fichte em Características da Idade Contemporânea parece unir-se neste coro ao criticar o procedimento de considerar o passado como algo morto e

123

Acerca da influência destes pensadores sobre Nietzsche ver: ANDLER, Charles. Nietzsche, sa vie et sa pensée. vol 1. Paris: Gallimard, 1958. 3 vol

124

KLEIST. Von der Ueberlegung. 1810. apud. ANDLER. op. cit. p. 63.

125

In: SCHILLER, Friedrich. Filosofia de la história. Traducion: Juan Antonio Ortega y Medina. México: D. F. Impr. Universitária, 1956.

sem vida, sem valor. 126 Para ele o homem é um ser eminentemente simbólico e não conhece a não ser por esta forma. Então, o conhecimento do passado só pode operar-se pela via de criação de símbolos, símbolos recriados a cada vez.

Assim, se a filologia enquanto ciência rigorosa causava um frenesi na intelectualidade alemã do final do século XIX, na medida em que conduzia as humanidades no caminho da cientificidade e fornecia à história um cabedal metodológico para fundamentar sua crítica aos documentos, alguns autores, desde o final do século XVIII irão colocar-se na contramão desta direção e de uma ou outra forma irão apostar em um conhecimento axiológico da vida, o que não poderia coincidir com o conhecimento objetivo proposto pela ciência. Isto nos mostra que qualquer tentativa de classificação do historicismo só pode ter uma utilização didática e não pode sintetizar rigorosamente todo o movimento.

No documento O jovem Nietzsche e a leitura (páginas 71-76)