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As relações entre o Estado, a economia e a cultura

No documento O jovem Nietzsche e a leitura (páginas 162-166)

6. A atualidade do mestre e as divergências do jovem Nietzsche para com

6.2 As relações entre o Estado, a economia e a cultura

Uma das características que mais atraiu Nietzsche na leitura de Schopenhauer desde o início foi a sua severa crítica com relação às instituições enquanto promotoras da cultura. No sexto parágrafo da Terceira Intempestiva, o jovem Nietzsche aponta o Estado como eixo central de uma série de fatores que

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geravam uma situação degradante para a cultura e impediam o seu desenvolvimento de forma autêntica.

Em primeiro lugar a lógica do mercado aplicada ao universo da cultura. O “egoísmo de negociantes” defende a idéia de que um povo culto pode ser traduzido como um povo que tem necessidades maiores de consumo, logo, quanto mais cultura, mais consumo, mais produção e mais riqueza. A educação é o caminho para essa cultura econômica, então, apressar-se em formar os indivíduos- consumidores deve ser uma máxima. Formar de acordo com um modelo de homem, o oeconomicus, aquele que depreende a sua felicidade do lucro que obtêm! Para o jovem Nietzsche:

Aqui se execra a educação que torna solidário, que postula fins superiores ao dinheiro e ao mercado e que exige muito tempo (...). Segundo a moral que prevalece, é o contrário que é desejado: uma educação rápida, para se tornar logo alguém que ganha dinheiro

(...)267

A cultura entendida pelo viés do mercado, para o jovem Nietzsche, pode indicar uma cultura prática, mas também superficial e comercial. Ela promete a felicidade através do dinheiro que se pode ganhar a partir dos conhecimentos aligeirados que são incutidos ao cidadão. Mais cultura torna-se sinônimo de mais dinheiro nesta linha de raciocínio defendida pelo Estado.

O jovem Nietzsche via com pesar e descrença os movimentos do Estado na direção da promoção da cultura. Contribuíram para consolidar esta visão sua leitura de Schopenhauer, mas também os diálogos com Burckhardt desde seu ingresso como professor de Filologia Clássica na Basiléia até o Nascimento da

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Tragédia.268 Como salientamos várias vezes, para o jovem Nietzsche, o Estado

cultural que defendia o Reich na verdade coincidia com os interesses do

liberalismo burguês, mas não com os de uma cultura autêntica. Assim, ao lado de interesses econômicos, estavam interesses políticos para com a cultura e essa cultura atendia a fins artificialmente concebidos.

O homem formado por esse processo era um homem utilizável, a um só tempo pelo Estado (o cidadão) e pela economia (o trabalhador e o consumidor). E isso se passava com a plena anuência dos alemães que, “têm em si um material

amolecido e sem forma, façam disso o que quiserem, bonecas elegantes ou estátuas interessantes...”269 afirma intempestivamente o jovem Nietzsche. Na contramão, Nietzsche espera conclamar com Wagner a indignação e a exaltação escondidas no verdadeiro espírito alemão. É preciso reagir a esta escravidão que oprime os alemães “(...) escravos atormentados por três ‘M’: o momento, as

maneiras de pensar e os modos de agir.”270

O jovem Nietzsche percebia que, como fruto desse processo de formação em série do cidadão e do trabalhador-consumidor, uma espécie de artificialidade bizarra se instalava entre os alemães ao desenvolverem hábitos e modos de pensar de gosto duvidoso. Seja importando-os de outras culturas, seja moldando-os a partir do excesso de informações. Tratava-se de um espetáculo doloroso para o espectador que defendia uma cultura original capaz de produzir Schopenhauer e

268

Cf. ANDLER, Charles. Nietzsche, sa vie et sa pensée. vol 1. Especialmente no primeiro capítulo do terceiro livro: L’action du cosmopolitisme contemporain. Ver também: SOCHODOLAK, Hélio. Um homem em luta como seu tempo: Nietzsche e a história na Segunda Intempestiva. (dissertação) Maringá/Londrina: UEM/UEL, 2001. p. 55 Et. Seq.

269

Cf. ANDLER, Charles. Nietzsche, sa vie et sa pensée. vol 1. loc. cit.

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Wagner. “E quem os produzirá outras vezes mais? Ou antes, nos iludimos num

desespero sem saída? Estes dois homens não são talvez para nós a garantia de que forças semelhantes estão ainda presentes no espírito e na alma dos alemães?”271 Questiona o jovem Nietzsche esperançoso com a possibilidade de uma revolução cultural.

Some-se a isso uma outra dificuldade de ordem epistemológica, trata-se do egoísmo da ciência e do trabalho de seus serviçais, os eruditos.272

A ciência está para a sabedoria, assim como a virtude está para a santidade: ou seja, ela é fria e árida, ela não tem amor e vê tudo com um profundo sentimento de insatisfação e nostalgia. (...) Enquanto se entenda essencialmente como cultura o avanço da ciência, ela passará impiedosa e fria diante do sofrimento do homem, porque ela só vê em todo o lugar os problemas do conhecimento, e no máximo o sofrimento somente se afigura enquanto problema.273

Esta frigidez científica enquanto ícone de uma cultura moderna se torna problemática e nociva para a cultura já que defende um olhar desinteressado e, portanto impossibilitado de ser axiológico. Ela procura a divisão da realidade em partículas cada vez menores e propõe seu estudo à exaustão, impedindo seu usuário de ver o todo. Ela impossibilita uma relação qualitativa entre mestre e discípulo, que não mais podem ser vistos dessa forma. A ciência moderna elimina qualquer possibilidade de ócio, vergando todo o conhecimento para fins produtivos e por último, enche de vaidade os que a utilizam, impedindo-os de ter uma real dimensão de si mesmo, posição quase sempre artificial e embusteira. Também impede a liberdade para o conhecer, pois torna os seus membros

271

NIETZSCHE, F. Schopenhauer éducateur. In Considérations inactuelles III et IV. § 6.

272

Ibidem. loc. lit.

273

dependentes de financiamentos e salários que naturalmente direcionam e limitam o conhecimento. Enfim, a ciência aliada ao Estado e ao mercado, torna-se o método de conhecer privilegiado dos inimigos de uma cultura autêntica. Torna-se o fundamento para uma cultura de aparência para seres inautênticos e padronizados, repletos de informações estéreis e sem capacidade valorativa!

No documento O jovem Nietzsche e a leitura (páginas 162-166)