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Dissonâncias

No documento O jovem Nietzsche e a leitura (páginas 76-81)

Pascal David nos alerta que não ocorreu na Alemanha uma guinada tão intensa e passional, em um intervalo tão curto de tempo, como a do humanismo para o historicismo. Todavia seria preciso decorrerem aproximadamente sessenta anos para que Dilthey e Nietzsche tomassem consciência e avaliassem esta

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FICHTE, Johann Gottolieb. Le caractère de l ‘époque actuelle. Traduit par Ives Radrizzani. Paris: J. Vrin, 1990. Ver também: FICHTE, Johann Gottolieb. Doutrina da ciência e outros escritos. 2 ed.Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1984. e FICHTE, J. G. escritos Filosóficos. São Paulo: Victor Civita, 1973.

formidável reviravolta.127 Permitamo-nos seguir esta senda indicada por Pascal

David para situarmos a avaliação realizada pelo jovem Nietzsche.

Dilthey irá defender a criação de um campo epistemológico próprio para as ciências do espírito (Geistwissenschaften) em oposição à aplicação da metodologia das ciências da natureza (Naturwissenschaften) ao campo das humanidades, sem, entretanto desprezar os fundamentos empíricos da ciência, seguindo aqui um caminho completamente diferente do de Nietzsche. Neste sentido, afirma-nos Amaral:

Na verdade, Dilthey tem bem claro diante de si o processo histórico que marcou a substituição do domínio que a ciência metafísica exercia sobre as ciências do espírito, pelo poder, igualmente soberano, que passou a ser exercido pelo conhecimento natural. Cumpre, então, completar a tarefa da escola histórica que possibilitou a emancipação da consciência histórica e, conseqüentemente, da ciência histórica, oferecendo uma fundamentação filosófica independente às ciências do espírito e, assim, permitir que estas ciências constituam um todo independente das ciências da natureza.128

Ocorre que, para Dilthey, era necessário então, encontrar fundamentos filosóficos distintos para as ciências do espírito e que ao mesmo tempo ultrapassassem os pressupostos metafísicos transcendentais de Kant e Hegel, bem como, se diferenciassem das ciências naturais. É na filosofia da experiência que Dilthey buscará tal fundamento. Assim, considerará a teoria do conhecimento uma substituta legítima da metafísica, no sentido de fornecer fundamentos científicos para as ciências do espírito, uma vez que considera não haver ciência que não seja empírica. “... Dilthey procura delimitar, por meio do caminho empírico, o

127

Cf. REINHARDT, Karl. La philologie classique et le classique. p. 71.

128

AMARAL, Maria Nazaré de Camargo Pacheco. Dilthey: um conceito de vida e uma pedagogia. São Paulo: Perspectiva, EDUSP, 1987. p. 4.

domínio e as características comuns dos fatos da consciência e denomina a esse conjunto de ‘ciências do espírito’”.129

Todavia, Dilthey não toma como base um homem apenas espiritual ao considerar os fatos da consciência como elementos constituintes das

geistwissenschaften. Trata-se do homem concreto, aquele que pensa, mas não é

apenas intelecto, ele sente também e está intimamente ligado ao meio. A partir desta concepção, Dilthey se vê imbuído de realizar uma “crítica da razão histórica”, busca “estabelecer as condições do conhecimento histórico”, ou melhor:

Se a tarefa se resume no desenvolvimento de uma fundamentação teórica do conhecimento das ciências do espírito, ‘a solução dessa tarefa, declara Dilthey, poderia ser designada como crítica da razão histórica, isto é, dos poderes do homem para conhecer a si próprio, assim como a sociedade e a história enquanto criações suas.130

O jovem Nietzsche, por sua vez, apresenta preocupações muito próximas àquelas pontuadas por Dilthey, especialmente quando este procura estabelecer a aproximação direta entre filosofia e vida. Mas é à ciência e à possibilidade de um conhecimento científico e sua aplicabilidade à história que Nietzsche desfere seus principais golpes. É neste sentido que conflita com o historicismo ao ser contrário à exigência da filologia tornar-se formalmente ciência.

A despeito disto nos aponta Gianni Vattimo:

Para compreender o pensamento de Nietzsche, (...), devemos alargar de modo decisivo as indicações fornecidas por Dilthey em A essência

da Filosofia. Não se trata apenas de reconhecer em Nietzsche a

peculiar ligação entre filosofia e ‘literatura’. Primeiro e mais

129

AMARAL, Maria Nazaré de Camargo Pacheco. Dilthey: um conceito de vida e uma pedagogia. p. 5.

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fundamentalmente que esta relação, o que caracteriza a filosofia de Nietzsche e o aproxima de Dilthey e o coloca numa possível continuidade com o pensamento da primeira metade do nosso século, é a relação entre filosofia e filologia que distingue a primeira fase de sua obra e que se manterá, de formas diversas, em todo o percurso de sua carreira de pensador.131

Vattimo procura inserir Nietzsche numa perspectiva da história da filosofia que atenta para o fato de que o ponto de partida do filosofar mais significativo desde meados do século XIX “... foi dado por uma reflexão sobre as

‘ciências humanas’, isto é, em termos mais gerais, sobre a historiografia e o saber que o homem tem de si próprio.” E completa “é a esta luz que se devem tomar em consideração os primeiros trabalhos de Nietzsche.”132 Se concordarmos com Vattimo, não podemos descartar uma certa aproximação com a proposta diltheyniana na defesa de um campo próprio para as humanidades com as preocupações do jovem Nietzsche.

Entretanto, também é possível inferir um rompimento por parte de Nietzsche ao subverter e tentar revolucionar a própria filologia, talvez de modo geral, subverter a própria ciência e dobrar os seus objetivos. Acreditamos ser fundamental considerar este amplo contexto intelectual e histórico para poder compreender melhor o relacionamento do jovem Nietzsche com os desdobramentos teóricos e práticos da filologia clássica.

131

VATTIMO, Gianni. Introdução a Nietzsche. Trad. António Guerreiro. Lisboa: Presença, 1990. p. 12- 13.

132

Ibidem. p. 13. Vatimo destaca os seguintes escritos: A aula inaugural na Basiléia Homero e a Filologia Clássica; as conferências de 1870: O drama musical grego e Sócrates e a tragédia; O nascimento da tragédia no espírito da música; As conferências de 1872: Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino; Cinco prefácios para livros não escritos e as Considerações intempestivas, além da farta correspondência deste período, bem como os fragmentos publicados postumamente.

Alguns anos depois dos ataques nietzscheanos à filologia acadêmica Mommsen irá reconhecer perante seus pares em 1887:

Nós não somos vítimas do desenvolvimento? Os progressos da ciência não mostram a cada dia que o indivíduo não é mais suficiente? ... São questões difíceis de se esquivar e de responder, a não ser pela negativa... E mais adiante em 1895: A ciência prossegue dominadora, sem se deter, mas em face deste edifício em plena ascensão, tão gigantesco, o trabalhador isolado aparece cada vez menor e mais insignificante... Minha própria tarefa me parece ao longo dos anos mais pesada e opressora.133

Ou seja, não eram apenas acordes as vozes em torno da transformação da filologia em ciência rigorosa. Percebe-se em alguns o peso de que esta exigência irá proporcionar. Todavia, poucos tiveram coragem de romper com a tendência à cientificização como o faria o jovem Nietzsche. Bem sabido: rompimento doloroso, uma vez que fora como filólogo que ele acreditou poder ler com mais intensidade, para melhor combater os elementos não livres em si e na cultura alemã.

O fato é que, apesar da filologia berlinense se apoiar grandemente em sua “profissão de fé” nos procedimentos científicos ideais defendidos e expostos por Wilamowitz em oposição às críticas do jovem Nietzsche, elementos de uma crise no seio da disciplina pareciam se apresentar mesmo na década de 1880, como é possível depreender das assertivas de Mommsen, talvez por influência, já nesse momento, das críticas do jovem Nietzsche.

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No documento O jovem Nietzsche e a leitura (páginas 76-81)