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Divergências

No documento O jovem Nietzsche e a leitura (páginas 168-176)

6. A atualidade do mestre e as divergências do jovem Nietzsche para com

6.4 Divergências

Vale iniciar o tema das divergências do jovem Nietzsche com seu grande mestre a partir das observações de Michel Haar. Para este autor:

Os elementos de uma crítica radical de Schopenhauer tomam lugar desde a primeira leitura entusiasta que fez o jovem Nietzsche em

Leipzig em 1865. (...) Por motivos “diplomáticos” – quer dizer, com o fim essencial de poupar seus amigos, que eram todos schopenhauerianos convictos - ele não revelará seu rompimento a não ser tardiamente (1978).278

De certa forma, essa visão de Haar coloca-nos uma visão aparentemente oposta à tese que estamos defendendo sobre a leitura nietzscheana de Schopenhauer. Uma vez que, se o jovem Nietzsche já estivesse elaborando esta crítica radical desde sua primeira leitura, como poderia adotar o mestre pessimista de forma tão incondicional, ao menos inicialmente, como pontuamos? Como pudemos perceber, nossas fontes nos levam a afirmar que as vestes schopenhauerianas não foram apenas um disfarce, utilizado pelo jovem Nietzsche, para ser aceito por um grupo, pequeno inclusive, haja vista o grupo bem maior de kantianos e hegelianos, sobretudo que vigorava nas academias e no Estado. Ainda conservamos a hipótese de que Schopenhauer tenha significado um instrumento bélico contra o tempo, contra a falsa cultura, ou seja, contra os elementos não livres. Talvez nos fosse possível objetar as colocações de Michel Haar afirmando que o jovem Nietzsche estava apostando numa causa cultural e não era por razões apenas diplomáticas que se mantinha schopenhaueriano.

Entretanto, devemos reconhecer que algumas divergências conceituais foram construídas por Nietzsche em seus escritos desde o final da década de 1860279 sendo mais incidentes no início da década de 1870, em sua primeira

278

HAAR, Michel. La critique nietzschéene de Schopenhauer. In: LE FRANC, Jean (org). Schopenhauer. Paris: Editions L’Herne, 1997. nº 4. p. 304.

279

Conforme se pode notar nos escritos póstumos desse período (1869-1870) que se compõem principalmente de anotações para O nascimento da Tragédia. NIETZSCHE, F. La naissance de la tragedie. Fragments posthumes – automne 1869 – printemps 1872. Especificamente na página 198, no fragmento 3(3) podemos ler: “A arte como festa e jubilação da vontade é a mais poderosa sedução em favor da vida, dessa forma a ciência fica assim, submissa ao reino da pulsão vital (...)”.

publicação, O nascimento da tragédia (1871). O foco central da divergência é a questão do pessimismo na compreensão trágica da arte e do mundo. No parágrafo 16 de O nascimento da tragédia notamos a seguinte observação de Nietzsche:

Da essência da arte, tal como ela é concebida comumente, segundo a exclusiva categoria da aparência e da beleza. Não é possível derivar de maneira alguma, honestamente, o trágico; somente a partir do espírito da música é que compreendemos a alegria pelo aniquilamento do indivíduo. Pois só nos exemplos individuais de tal aniquilamento é que fica claro para nós o eterno fenômeno da arte dionisíaca, a qual leva à expressão da vontade em sua onipotência, por assim dizer, por trás do principium individuationis, a vida eterna para além de toda a aparência e de todo o aniquilamento. A alegria metafísica com o trágico é uma transposição da sabedoria dionisíaca instintivamente inconsciente para a linguagem das imagens: o herói, a mais elevada aparição da vontade, é, para o nosso prazer, negado, porque é apenas aparência, e a vida eterna da vontade não é tocada de modo nenhum por seu aniquilamento.280

O jovem Nietzsche aposta em dois elementos componentes da arte, o apolíneo e o dionisíaco que não ficam muito evidentes nas artes plásticas em geral. Sua dinâmica evidencia-se no espírito da música que não anula o dionisíaco com a aparência e a forma apolínea, mas promovem, por trás do principium

individuationis apolíneo o aniquilamento dionisíaco. Essa alegria trágica que

nega o herói, símbolo máximo da aparência e da vontade e que afirma o eterno- retorno que independe da individuação, segundo o jovem Nietzsche, é o grande diferencial da sabedoria dos gregos, e dele próprio se comparado com seu grande mestre.

No parágrafo 22 de O nascimento da Tragédia, o jovem Nietzsche reitera esta perspectiva demonstrando sua concepção a respeito do artista e sua função. Para ele:

280

NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Cia das Letras, 1992. p. 101-102. § 16.

É assim que nos representamos, atendo-nos às experiências do ouvinte verdadeiramente estético, o próprio artista trágico, tal como ele, qual uma exuberante divindade da individuatio, cria as suas figuras, sentido em que mal se poderia conceber a sua obra como “imitação da natureza” - tal como depois, porém, o seu imenso impulso dionisíaco engole todo esse mundo das aparências, para deixar pressentir por trás dele, e através de sua destruição, uma suprema alegria artística no seio do Uno-primordial.281

Ora, somente um leitor-ouvinte estético, a antípoda do leitor de jornal, é capaz de perceber os elementos trágicos da arte enquanto atividade mimética da natureza onde se harmonizam os elementos apolíneos e dionisíacos que ao mesmo tempo são opostos e complementares da tragédia. No final, Dionísio que parecia fora de cena, emerge e viola o véu da individuação mostrando toda a força trágico-natural, restaurando a “ordem”, a unidade. Mostrando ao humano sua condição trágica, causando-lhe o sentimento de vínculo como o Uno-primordial. Provocando a “descarga patológica, a katharsis de Aristóteles”282 Este processo que tem como ponto de partida a visão trágica da existência, produz a alegria artística, a afirmação da vida na sua constituição trágica.

Em poucas linhas, Copleston sintetiza a divergência que crescia no jovem Nietzsche para com o mestre do pessimismo. Para Copleston,

A filosofia de Schopenhauer pode, com razão ser chamada pessimista, porque põe em primeiro plano o sofrimento e a miséria da existência e representa a vida como um mal indesejável. Nietzsche, pelo contrário, representa a vida como um bem desejável; ele reclama, não menos vida, não o não-ser, não Nirvana, mas mais vida, uma vida mais vigorosa, uma vida mais alegre.283

281

NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. § 22. p. 131.

282

Ibidem § 22. p. 132.

283

COPLESTON, Frederick. Nietzsche: filósofo da cultura. 3. ed. Trad. Eduardo Pinheiro. Porto: Tavares Martins, 1979. p. 221.

Certamente este era o elemento central que diferenciaria o jovem Nietzsche de seu mestre. O Nietzsche maduro iria reconhecer isto em vários momentos de sua obra posterior, vale citar Assim falava Zaratustra, O caso

Wagner e Nietzsche contra Wagner, especialmente o fará em sua autobiografia Ecce Homo. Permitamo-nos acompanhar uma de suas declarações quando

comenta O nascimento da Tragédia em Ecce Homo: “Tenho, nesse sentido, o

direito de me considerar a mim mesmo como o primeiro filósofo trágico – isto é, o extremo contrário e a antípoda de um filósofo pessimista.”284 Considerando-se trágico, Nietzsche deixa de ser pessimista e afirma a vida que deixa de ter aquela visão negativa de O mundo como vontade e representação ou ainda de As dores

do mundo do mestre Schopenhauer.

Para sua irmã, Nietzsche avalia positivamente a sua experiência no final de sua fase pessimista bem como suas duas últimas Intempestivas. Segundo Elizabeth Foerster Nietzsche,

Algum tempo depois fez (Nietzsche) uma cuidadosa comparação entre as duas obras Schopenhauer como educador e Richard Wagner em Bayreuth, e descobriu, para sua grande alegria, que a terceira das Considerações Intempestivas representava o primeiro passo para sua própria emancipação.285

Nesse sentido Nietzsche teria escrito:

O homem schopenhaueriano conduziu-me ao ceticismo em relação a tudo o que anteriormente respeitei, acarinhei e defendi (mesmo em relação aos gregos, a Schopenhauer e a Wagner); em relação ao gênio, a coisas sagradas, ao pessimismo do conhecimento. Por esta via tortuosa, cheguei às alturas onde sopravam ventos frescos.286

284

NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. In: Ecce Homo.. § 3.

285

NIETZSCHE, F. Correspondência com Wagner. Apresentada por Elizabeth Foerster-Nietzsche. Trad. Maria José de La Fuente. Lisboa: Guimarães Editores, 1990. p. 296-297.

286

Nessa direção, podemos pensar que a leitura de Schopenhauer fora para o jovem Nietzsche um instrumento bélico tão eficiente que teria fornecido instrumentos para combater o próprio pessimismo do mestre. Na mesma proporção teria possibilitado o autoconhecimento capacitando-o para a beligerância com seu tempo. Nietzsche irá reconhecer isto quando afirma que não se tratava de Schopenhauer ou de Wagner na Terceira e na Quarta Intempestivas, mas dele mesmo.287 Segundo sua narrativa em Ecce Homo,

Em termos globais, agarrei pelos cabelos dois tipos famosos e ainda não de todo fixados, como se agarra pelos cabelos uma oportunidade de expressar algo, para assim ter na mão mais um par de fórmulas, de sinais, de meios lingüísticos. (...) De igual modo se serviu Platão de Sócrates (...).288

Para Michel Haar isto ficará evidente no rompimento com Wagner, quando Nietzsche abandona suas pretensões comunitárias e se torna errante. Segundo Haar, o homem de Schopenhauer que Nietzsche defende na Terceira

Intempestiva na verdade seria o homem de Nietzsche que teria como características

principais: o combate contra seu tempo, a não submissão a qualquer poder, a capacidade de viver perigosamente e sustentar uma verdadeira contemplação trágica.289 Ou seja, o homem nietzscheano é ativo, afirmativo da vida em sua tragicidade, mais jamais pessimista, reativo e apático. Entretanto, gostaríamos de frisar, a crescente incompatibilidade teórica que Nietzsche nutrirá com relação ao seu grande guia não o fez negar a importância da sua leitura de Schopenhauer, ao

287

Cf. NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. In: Ecce Homo, § 4. p. 67. e As considerações Intempestivas. In: Ecce Homo § 3. p. 72-73.

288

Idem. As considerações Intempestivas. In: Ecce Homo. § 3. p. 72.

289

contrário, em sua autobiografia da maturidade nos revela: “O escrito Wagner em

Bayreuth é uma visão de meu futuro, em Schopenhauer como educador, descreve-se a minha história interior, o meu devir.”290

Estas colocações sobre a leitura nietzscheana de Schopenhauer, no momento em que o jovem Nietzsche se prepara para combatê-la na fase que se inicia em Humano, demasiado humano, parecem corroborar a nossa tese de que a leitura intensa e profunda de Schopenhauer possibilitou o autoconhecimento ao jovem Nietzsche e sobretudo, forneceu-lhe meios para sua expressão, ler “com a

pena na mão”, lhe possibilitou inclusive voltar-se para o próprio mestre pessimista

e associá-lo ao niilismo, ao cristianismo, ao hegelianismo, e outros “ismos”291. Wagner terá representado a possibilidade prática dessa leitura, aspecto que procuraremos tratar na seqüência.

290

NIETZSCHE, F. As considerações Intempestivas. In: Ecce Homo. § 3. p. 72.

291

Cf. NIETZSCHE, F. O nascimento da Tragédia. In: Ecce Homo. § 2. Também no prefácio Tentativa de autocrítica escrito para o Nascimento da Tragédia em 1886.

IV Capítulo

1. O ENCONTRO E A RELAÇÃO INICIAL DE NIETZSCHE

No documento O jovem Nietzsche e a leitura (páginas 168-176)