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CAPÍTULO II A psicanálise e os grupos : uma conversação com os

2.2. A Conversação e a pesquisa em psicanálise

A diretora nos pedia que fizéssemos algum trabalho com os adolescentes, ditos, difíceis. Nossa estratégia foi a de atender ao pedido da instituição, mas nos negamos a atendê-lo da forma a que nos foi endereçado. Lacadée (2003), nos diz que diante da demanda não devemos recuar, mas sim nos situar, de outro modo. Uma estratégia possível nesses casos, teria sido a de colocar em análise o próprio desejo da instituição. Anuncio logo de início que não optamos por este caminho. Entramos na instituição, mas ao invés de questionar a demanda do Outro, nos calamos e esperamos que ela pudesse ceder lugar ao desejo dos sujeitos. Entramos no campo, mas mudos. Esperamos pelos corredores até que os adolescentes nos interrogaram sobre a possibilidade de montarmos grupos aonde eles pudessem falar36.

Ao fim de dois meses, três grupos de conversação puderam se construir. Constituir pequenos grupos de conversação, foi nosso método de intervenção clínica no ambiente escolar. Para esses grupos buscamos inspiração no trabalho realizado pelo laboratório do CIEN37, Centro Interdisciplinar sobre a Infância, iniciado na França em 1996, sob a iniciativa de J.A.Miller. Trata-se de um modo de intervenção do psicanalista no campo social, em diálogo com outros professionais de diversos áreas Ŕ médicos, professores, sociólogos, pedagogos, psicólogos, etc -, implicados com a problemática da infância e adolescência em nossos dias; mas, também, com os próprios sujeitos adolescentes. O CIEN faz uma aposta na conversação, nos pequenos grupos lacanianos e a função do

extimo, que veremos logo a seguir ainda neste capítulo.

Uma história da conversação na França foi proposta por Fumaroli (1994), em Trois institutions littéraires. Neste livro, ele irá partir da origem desta prática linguageira como arte e seu reaparecimendo nas sociedades européias modernas, após um longo período de desaparecimento, onde foi tomada como

36 Os grupos de conversa já haviam sido desenvolvidos anteriormente na escola. No entanto, das

vezes anteriores, os temas eram escolhidos pelos coordenadores e incluíam uma turma inteira de alunos de determinado ano, ou ainda, por vezes, alguns alunos eram „escolhidos‟ pela escola para participarem de tal ou tal grupo.

37 Para maiores esclarecimentos sobre o trabalho do CIEN, ver site :

um simples jogo de palavras efêmeras, fúteis e burguesas. Cedeu lugar a comunicação, mas reapareceu, desta vez, como marca da sociedade francesa, associada ao prazer de causar dos parisiences, sobretudo, de seu gosto pela palavra compartilhada. Segundo o autor, a conversação seria uma espécie de arte, de brincadeira com a palavra, que teve seu ponto central nos diálogos de Platão, ainda mais quando contavam com a presença de Sócrates e seu gosto pela ironia. Nas palavras de Fumaroli,

Desde sua aparição, a conversação, expressão do relaxamento superior entre homens livres, aparece também como método pedagógico o mais sutil e a forma de enciclopédia a mais completa sob sua aparência descontínua. É claro, Sócrates e sua ironia são o fermento que transforma uma troca prazeirosa de opiniões em uma luta cansativa a dois ou a vários de onde partem raios, que muitas vezes cegam. Mas a massa, ela mesma, a natureza humana, com a diversidade e a singularidade de seus representantes, na realidade de seus tipos psicológicos e sociais, se revela bem feita para essa deliciosa e sutil fartura de palavras, de emoções, de pensamentos. Sócrates (...), ele sozinho, a felicidade ingênua e elementar desse jogo reparador de palavras entre homens livres, já é um meio de dar asas a gravidade física, social, política, econômica. Ele abre uma clareira. (...) Da multiplicidade dos interlocutores, de suas divergências, de seu dissenso, o espírito de Sócrates consegue fazer uma rosácea onde, da unidade inacessível da verdade, algo se faz luz e, com isso, o dia de uma de qualidade que nenhum gozo ou posse mundana poderia se igualar. 38 (FUMAROLI, 1994, p. 115 trad. nossa)

38

Do texto original consultado: Dès son apparition, la conversation, délassement supérieur entre hommes libres, apparaît aussi comme la méthode pédagogique le plus subtile et la forme d‟encyclopédie la plus complète sous son apparence discontinue. Bien sûr, Socrate et son ironie son le levain qui transforme un échange plaisant d‟opinions en une lutte haletante à deux ou a plusieurs d‟où jaillissent des éclairs, parfois aveuglants. Mais la pâte elle-même, la nature humaine, dans la diversité et la singularité de ses représentants, dans la réalité de ses types psychologiques et sociaux, se révèle bien faite pour ce délicieux et subtil festin des paroles, d‟émotions, des pensées. Socrate […], lui seul, le bonheur naïf et élémentaire de ce jeu réparateur de paroles entre hommes libres est déjà un décollage de la pesanteur physique, sociale, politique, économique. Il ouvre une clairière. [...] De la multiplicité des interlocuteurs, de leurs divergences, de leurs dissensions, l‟esprit de Socrate réussit à faire une rosace où quelque chose de l‟unité inaccessible du vrai se fait jour et, avec ce jour, un bonheur d‟une qualité qu‟aucune jouissance ou possession mondaines ne saurait égaler. » FUMAROLI, M. (1994) Trois institutions littéraires. [Paris] : Folio, 1994. p. 115.

Este lugar da ironia, de Sócrates, é o mesmo lugar que deverá ocupar o psicanalista na cidade, segundo J.-A. Miller (1998). Ele deverá ser como a histérica que com seus questionamentos, acaba por produzir buracos na cabeça dos ideais sociais tão bem programados para garantirem que as coisas

funcionem. Temos então que a posição do analista na cidade é correlata do lugar

de um extimo, ou seja, ele ocupa um lugar que está aí para descompletar a certeza dos significantes-mestre que regem como ideais, o andamento do socius. Nas palavras de Miller (1998), o analista é

(…) como Sócrates, a fazer vacilar os ideais, as vezes simplesmente, colocando-os entre aspas, colocando em dúvida os significantes-mestres da cidade Ŕ liberdade, propriedade, pátria. (...) Com sua forma de colocar pontos de interrogação, de fazer repetir, de não entender, de se fazer de bobo, o psicanalista está nesta posição de ironia. 39 (Miller, 1998, p. 14, trad. nossa)

Assim, convém dedicarmos algumas linhas ao início de nosso trabalho na instituição escolar e do lugar que ocupamos durante aproximadamente oito meses em que fizemos o trabalho clínico de conversação com os adolescentes. Foi a partir de um convite da diretora da instituição, que pensamos em criar os grupos de conversação com os adolescentes. A demanda nos foi dirigida e evidenciava uma falha, ratage, da palavra que „atravessava os adolescentes, sem lhes produzir marcas‟. Nossa escolha pela criação de um dispositivo de conversação que pudesse acolher a palavra adolescente, levando em conta o mal-estar que lhe é inerente, estava então justificada.

Vale lembrar que a escola em questão sempre acolheu a proposta de

39 Do original consultado : “ (...) plutôt comme Socrate, à faire trembler, à faire vaciller les ideaux,

parfois simplement en les mettant entre guillemets, en ébranlant un peu les signifiants-maîtres de la cité - liberté, propriété, la patrie … Avec sa façon de mettre des points d‟interrogation, de faire répéter, de ne pas comprendre, de faire la bête, le psychanalyste est dans cette position d‟ironieté. In : MILLER, J.-A. (1998) La Psychanalyse, la cité, les communautés. In : Tabula. Bulletin de l‟ACF- voie domitienne, 04/2008. P.9-30.

grupos temáticos, coordenados por psicólogos, que eram propostos aos jovens. Estes grupos, muitas vezes tinham caráter de participação obrigatório e giravam em torno de uma temática específica. Esta mesma escola pôde criar também um grupo com crianças sobre o corpo e a sexualidade, que se chamou oficina de

descobertas, proposto e coordenado pela psicanalista Ana Musatti Braga, com a

qual trabalhei em parceria na coordenação dos grupos de conversação com os adolescentes. Nossos grupos de conversação, ao contrário, não tinham caráter obrigatório e nem seguiam uma temática previamente estabelecida. Eles não foram propostos aos adolescentes. Eles foram propostos pelos adolescentes.

Certamente, o fato de estarem habituados com a presença dos psicólogos na escola e de já terem participado de alguns dos grupos, ou pelo menos já haverem ouvido falar deles pelos corredores, influenciou e favoreceu o laço que rapidamente se estabeleceu entre nós e os alunos. Como já dissemos, apostamos em uma presença na escola que consistiu, no início, na circulação livre pelos corredores e salas da escola. Foram os adolescentes que nos interpelaram e nos pediram que criássemos um grupo de conversação, no qual eles pudessem falar. A psicanálise extra-muros, muitas vezes é convocada a se inserir num contexto desfavorável, que não permite que o analista, nem o analisando, se debrucem anos a fio num processo de análise. Mas isso não significa que ela não possa se inserir no campo social dos conflitos da civilização, muito pelo contrário, este é o seu destino. Segundo Rosa (2004), os fundamentos teóricos e éticos da psicanálise possibilitam a abertura da via do inconsciente e revelam a posição do sujeito face a seu gozo, via aparelhamento discursivo.

O que pretendemos com os grupos de conversação foi criar a possibilidade do adolescente encontrar um Outro receptivo, e disposto a lhes fornecer um Outro saber, não fechado, que desestabilize as identificações que lhes aprisionam, mas que ao mesmo tempo, aponte que existe algo para além de todo saber constituído como verdade. Garantir o sentido da palavra adolescente para que ela não seja apenas um instrumento de puro gozo; a palavra como gozo é apenas destituição de território. Possibilitar ao adolescente um encontro com uma palavra prenhe de significação, é dar-lhe a garantia de um sentido e a sensação de que haveria no mundo um lugar que o perdeu, ou seja, garantir sua

existência como pertencimento. E isto, graças ao enlaçamento da palavra perdida numa trama ficcional. Sem isso, é o corpo real, como carne, que entrará em cena, num sem limites ao gozo pleno, como nos diz Lacadée (2003).

Para isso, nos inspiramos no trabalho de Lacan sobre os pequenos grupos, principalmente no que diz respeito a posição que ocupamos ao coordenarmos esses grupos de conversação, trabalhando pela des-identificação dos significantes-mestre fixos do discurso social. Cabe repetir que estávamos nos grupos como psicanalistas, e não como pesquisadoras que haviam proposto um grupo de conversação como um terreno do qual buscávamos extrair da palavra adolescente, a comprovação de nossas hipóteses anteriormente levantadas. Neste caso, estaríamos operando no social pela via do discurso do Universitário, como S2 no lugar do agente que impele o outro ao trabalho para dele extrair o saber singular que detém, e do qual o pesquisador deve se apropriar. Nas palavras de Miller, esta operação « (...) faz passar um ser de seu estado de ser

único, ao estado de um-ser-entre-outros. O que o sujeito ganha ou perde, dessa

operação: ele aceita ser comparado, ele se transforma em comparável, ele acede ao estado de estatística.”»40 (MILLER e MILNER, 2004, p. 58 trad. nossa)

A pesquisa em psicanálise não pode se guiar pelos mesmo preceitos que regem as ciências diversas, pois o estatuto de seu objeto é distinto. Como nos diz Pinto (texto online), o inconsciente, objeto da psicanálise, é exatamente aquilo que não se dá a conhecer. O discurso da ciência, ao contrário, é aquele que elimina o sujeito para chegar ao conhecer. Segundo o autor, a psicanálise já nasce carregando esse ponto parodoxal que faz dela ao mesmo tempo, um método de pesquisa sobre a subjetividade, um corpo teórico e uma forma de dar tratamento ao gozo do sujeito, do mal-estar de sua entrada na civilização, viabilizando a construção singular de cada sujeito confrontado aos impasses da formação discursiva hegemônica de seu tempo. Nas palavars de Rosa (2004), “O método psicanalítico vai do fenômeno ao conceito, e constrói uma metapsicologia não isolada mas fruto da escuta psicanalítica, que não enfatiza ou prioriza a

40 Do original consultado : “ (...) fait passer un être de son êtat d‟être unique à l‟êtat de l‟un-entre-

autres. C‟est ce que le sujet gagne, ou perd, dans l‟opération : il accepte d‟être comparé, il devient comparable, il accède à l‟êtat statistique. » In : MILLER, J.-A. e MILNER, J.-C. (2004) Voulez-vous être évalué ? : entretiens sur une machine d'imposture. [Paris] : Grasset, 2004. p. 58.

interpretação, a teoria por si só, mas integra, teoria, prática e pesquisa.” (ROSA, 2004, p. 341)

Assim, dissemos pretender criar a possibilidade do adolescente encontrar um Outro que seja receptivo e que esteja disposto a lhes fornecer um Outro saber, não fechado, pela via da inscrição de um ponto de extimidade no grupo, quer seja por sua própria presença, quer seja pela sustentação de um ponto estranho colocado em cena pela própria fala dos participantes. Afirmamos que este ponto de extimidade só poderá emergir quando não tamponado pelo discurso Universitário e sua lógica de pesquisa científica, que busca no outro a extração de um saber já construído de antemão, aguardando apenas sua ratificação. Por isso, nos cabe afirmar que entramos na escola onde colocamos em prática os grupos de conversação, como psicólogos clínicos e não como pesquisadores; a experiência clínica dos grupos, se transformou a posteriori numa pesquisa. Afirmamos então, com Cecchetti e Grova (2008) que, durante os grupos de conversação, sustentamos a função de uma extimidade clínica. Em suas palavras:

Sem encarnar aquele que saberia a resposta sobre o mal- estar com que se chega ao grupo, nossa função, de extimidade clínica, é oferecer um percurso de elaboração em que algo da posição do sujeito diante da queixa que traz até ali possa ser tocado e reverbere no grupo. Fazendo circular neste o que foi produzido por um determinado sujeito, os demais integrantes têm a possibilidade de usá-lo de um modo que não os faça se identificarem com a posição desse sujeito. O trabalho, assim, opera indicando que não há, de saída, uma resposta prévia à demanda de cada um, sendo necessária uma produção do sujeito que inclua a reformulação do Outro ao qual ele se adereça.” (CECHETTI e GROVA, 2008, p. 90)

2.3. Uma conversação: entre a escola, a demanda e os