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3.2. Lacan: Laço Social via obediência

3.2.1. Da intersubjetividade ao laço social

A formalização da teoria dos discursos de Lacan se faz, primordialmente, no Seminário XVII, proferido em meio a efervescência do movimento político-cultural de maio de 68 na França. Se este movimento contou, em sua origem, com a participação em massa da juventude parisience, na sequência, contou também, com outras manifestações importantes vindas da classe operária. Luta contra as mudanças trazidas pela transição entre o capitalismo de produção e o capitalismo de acumulação, que, como veremos mais adiante, levará Lacan a falar de um discurso a mais, o discurso do capitalista. Movimento da juventude que não deixará de ser alvo das críticas do psicanalista.

Em artigo destinado, mas nunca publicado, ao jornal Le Monde, Lacan irá expressar sua opinião sobre as reformas propostas no campo da educação superior e no campo da psiquiatria, após o movimento de maio de 68. Para o psicanalista, o movimento de maio de 68 não fará outra coisa que disseminar as reformas da economia liberal em vários domínios da sociedade. Ele irá dizer dos jovens burgueses parisiences, que : “Aquilo que eles vomitavam com o título de sociedade de consumo e de automóveis que servem apenas para ocupar as ruas, eram os objetos que esta sociedade espera lhes satisfazer, pois eles não substituem o objeto (a)»84 (LACAN, 1970a, p. 2 trad. nossa)

A teoria dos discursos será o fruto das inquietações que lhe suscitam

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Do original : « (…) ce qu‟ils vomissaient sous le titre de la société de consommation et des voitures qui ne servent qu‟à meubler les trottoirs, c‟étaient les objets dont cette société attend de les satisfaire à gogo, parce qu‟ils ne remplacent pas l‟objet (a) fatidique. In : LACAN, J. (1970) « D'une réforme dans son trou ». In : Journal français de psychiatrie, 2006/4 n° 27, p. 3-5. p.2. Adresse eletronique : http://www.cairn.info/revue-journal-francais-de-psychiatrie-2006-4- page-3.htm

sua época: o fim da Segunda Guerra e o genocídio nazista, a dificuldade de resistência da França face a ocupação alemã, e dessa vez, a revolta da juventude parisience. De modo que, o Seminário XVII, materializa essas inquietações, a saber, como o sujeito se submete ao Outro? Como, diante do dilema entre a submissão e a liberdade, é pela via da submissão e da obediência que caminham os homens? Nas palavras de Roudinesco (1994), Lacan se inquietava com as seguintes questões:

(...) como se constrói o amor das massas pelos tiranos? Por que toda “liberação” é impossível fora de uma adesão à lei? Em outras palavras: face a Sartre, e na linha direta do ensinamento foucaultiano, Lacan colocava ainda a questão da essência da liberdade humana do ponto de vista da descoberta freudiana: como pode um sujeito pretender a liberdade quando ele é determinado pela existência de um inconsciente que o impede de ser livre em seus atos e em suas palavras (...) ?” (ROUDINESCO, 1993, p. 349)

Será a teoria dos discursos o caminho que permitirá a Lacan responder a essas questões, uma vez que a aparelhagem discursiva, para além da fala e da linguagem, colocará em cena as posições do sujeito diante de seu gozo, incluindo a dimensão do objeto a, na estrutura significante - mesmo que se desse objeto, o sujeito não possa que apenas se aproximar, nunca podendo alcançá-lo propriamente. Assim, para além da fala e da linguagem, mesmo que pressuposto por ela, ele irá afirmar um discurso sem palavras. Nas palavras de Lacan (1992),

É que sem palavras, na verdade, ele pode muito bem subsistir. Subsiste em certas relações fundamentais. Estas, literalmente, não poderiam se manter sem a linguagem. Mediante o instrumento da linguagem instaura-se um certo número de relações estáveis, no interior das quais certamente pode inscrever-se algo bem mais amplo, que vai

bem mais longe que as enunciações efetivas. Não há necessidade destas para que nossa conduta, nossos atos, eventualmente, se inscrevam no âmbito de certos enunciados primordiais. (LACAN, 1969-1970/1992, p. 11)

Lacan (1992), em seu Seminario XVII - O avesso da psicanálise, afirma então que o discurso é o laço social. Nas palavras de Cardoza (2009),

O objetivo era propor uma articulação entre o campo da linguagem e o campo do gozo. O discurso como um operador de análise do laço social. O laço social como sendo o próprio campo discursivo, não descolado ou deslocado deste lugar de articulação, pois à medida que fosse possível apreender o que estaria em jogo em um determinado campo discursivo, seria possível localizar o laço posto em cena pelo campo social. A psicanálise inaugura com esta formulação de Lacan um instrumento para operar no campo social. É a inscrição patente da psicanálise como instrumento de análise social. Para tanto, os discursos propostos por Lacan apresentam-se como formas de compreensão, articulação do liame, laço entre sujeito e Outro. (CARDOZA, 2009, p. 53)

Para Lacan, ao contrário de Freud (1914), o que está em jogo não é a relação imaginária produzida do eu ao outro, e nem mesmo mais de um outro ao

eu, mas sim, a relação primordial que se dá entre um significante e outro, S1

S2, pois será “ (...) no instante mesmo em que o S1 intervém no campo já constituído dos outros significantes, na medida em que eles já se articulam entre si como tais, que ao intervir junto a um outro, do sistema, surge isto, $, que é o que chamamos de sujeito como dividido. (...) desse trajeto surge alguma coisa definida como uma perda. (...) que se lê como sendo o objeto a.” (LACAN, 1969- 1970/1992, p. 13).

Temos aqui os quatro termos do aparelho discursivo lacaniano: S1, S2, $, a. Grosso modo, podemos dizer que S1, inaugura a nominação do sujeito

numa bateria significante desde já articulada, campo do S2, do Saber. Assim, vemos emergir o sujeito, $, lugar desconhecido entre significantes, e o objeto a, aquilo a que o sujeito deve renunciar para garantir sua entrada no campo do sentido, gozo renunciado no momento de inscrição da linguagem. Nos diz Lacan sobre a aparelhagem discursiva,

Há ali uma certa ligação significante, que pode ser postulada como radical. Este simples fato nos dá a ocasião de ilustrar o que é a estrutura. Ao propormos a formalização do discurso e estabelecendo para nós mesmos, no interior dessa formalização, algumas regras destinadas a pô-la à prova, encontramos um elemento de impossibilidade. Eis o que está propriamente na base, na raiz do que é um fato de estrutura. (LACAN, 1969-1970/1992, p.46)

Assim, como um sistema de quatro patas, com quatro tipos de articulação discursiva, Lacan definiu as possibilidades de enlaçamento social sustentadas por quatro tipos de posições subjetivas - o mestre, a histérica, o universitário e o analista -; quatro lugares habitados pelo sujeito em seu enlaçamento com o Outro do social. Temos a estrutura discursiva e os lugares que ela define:

1

o agente ฀  ฀ o outro 2  4

a verdade ฀ // ฀ a produção

Nesta estrutura discursiva temos um esquema de comunicação entre todos os termos, menos entre o lugar da Verdade e aquele da produção (//), o que, como veremos mais adiante é a atestação que não há laço com o outro sem

que haja a presença do mal-estar, como já havia anunciado Freud em Mal-estar

na Civilização. O lugar do agente, daquele que fala, é o lugar do poder; no lugar

do outro, aquele a quem o poder se adressa, está o lugar do saber; o lugar da verdade, que no primeiro discurso, o do mestre, é ocupado pelo sujeito, é um lugar desconhecido no discurso, mas que sustenta a posição do agente, e a verdade é sempre não-toda, incompleta, faltante; e por último, no lugar da produção, temos aquilo que o discurso produz como efeito. Nas palavras de Lesourd (2006),

Aquele que fala, o agente, se dirige ao outro (flecha2) a partir de sua verdade que lhe sustenta inconscientemente (flecha2). Esta verdade, em inúmeros sintomas da vida cotidiana (lapsos, atos falhos, etc), mas também nos sintomas patológicos, se endereçam como maneira de fuga, também ao outro (flecha3). O outro destinatário responde ao sujeito por uma produção que pode ser totalmente outra que linguageira (flecha4). O efeito produzido retorna sobre o agente do discurso (flecha5) e o circuito é relançado. 85 (LESOURD, 2006, p. 96 trad. nossa)

3.2.2. O discurso do Mestre: “travailler plus pour gagner plus”

S1  S2   $ // a

85 Do original consultado : Celui qui parle, l‟agent, s‟adresse à l‟autre (flèche 1) à partir de sa vérité

qui le soutient inconsciemment (flèche 2). Cette vérité, dans les divers symptômes de la vie quotidienne (lapsus, actes manqués, etc.), mais aussi dans les symptômes pathologiques s‟adresse aussi, de manière insue, directement à l‟autre (flèche 3). L‟autre de l‟adresse répond alors au sujet par une production qui peut être tout autre que langagière (flèche 4). L‟effet produit fait retour sur l‟agent du discours (flèche 5) et le circuit est relancé. » In : LESOURD, S. (2006) Comment taire le sujet? Des discours aux parlottes libérales. Ramonville Saint-Anne, Éditions éres.p. 96.

O discurso do Mestre equivale à entrada do sujeito no campo da linguagem. É a entrada do sujeito na história, na civilização, o que implica que este abra mão de seu gozo, consentindo ao ordenamento da lei social. Ele coloca em cena a dupla alienação do sujeito: ao significante e ao Outro social, da lei.

Não será obra do acaso que o primeiro dos discursos lacanianos será o discurso do Mestre; este é retirado de Hegel em Fenomenologia do Espírito. A obra de Hegel, chegará a Lacan a partir do curso dado por Kojève na École des Hautes Études, que contará ainda com a audiência de Merleau-Ponty e Raymond Queneau. Em Hegel, lido por Kojève (1947), a realidade humana, a Consciência- de-si-autônoma, só se constrói através da luta pelo reconhecimento, travada entre dois indivíduos-humanos que arriscam à vida para se constituírem um às custas do outro. Nas palavras de Kojève,

A verdade é a revelação de uma realidade. A realidade humana não se cria, não se constitui, senão que na luta pelo reconhecimento e pelo risco de vida que isto implica. A verdade do homem, ou a revelação de sua verdade, pressupõe então a luta até a morte. E é porque os indivíduos humanos são obrigados a se engajarem nessa luta. Pois eles devem elevar ao nível de verdade a certeza subjetiva que eles possuem deles mesmos de existir por si só, cada um devendo fazer no outro e em si próprio. (...) O indivíduo- humano que não ousou arriscar sua vida pode, certamente, ser reconhecido como pessoa-humana. Mas ele não alcançou a verdade do fato de ter sido reconhecido enquanto uma Consciência-de-si-autonôma. Cada um dos dois indivíduos humanos devem ter por objetivo a morte do outro, assim como ele arrisca sua própria vida.»86 (KOJÈVE, 1947, p. 19 trad. nossa)

O homem só sairia de sua posição de animal, acedendo à

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Do original consultado : La vérite est la révélation d‟une réalité. Or, la réalité humaine ne se crée, ne se constitue que dans la lutte en vue de la reconnaissance et par le risque de la vie qu‟elle implique. La vérité de l‟homme, ou la revelation de sa réalité, présuppose donc la lutte à mort. Et c‟est [pourquoi] les individus-humains sont obligés d‟engager cette lutte. Car ils doivent élever au rang de vérité la certitude subjective qu‟ils ont d‟eux-mêmes d‟exister pour soi, chacun devant le faire en l‟autre et en lui-même. (…) L‟individu-humaine qui n‟a pas osé-risquer sa vie peut, certes, être reconnu en tant qu‟une personne-humaine. Mais il n‟a pas atteint la vérité de ce fait d‟être- reconnu en tant qu‟une Conscience-de-soi-autonome. Chacun donc des deux individus-humains doit avoir pour but la mort de l‟autre, tout comme il risque sa propre vie. » In : KOJEVE, A. (1947)

humanização, se reconhecido por um outro. No entanto, este outro, estaria ele mesmo, buscando a mesma coisa, ser reconhecido enquanto Consciência autônoma, logo, deverão travar uma luta, onde os dois riscarão à morte, negação da existência. Enquanto isto não é alcançado, o indivíduo viveria num « en dehors de soi”. A vitória da luta pelo reconhecimento faria com que o indivíduo alcançasse seu próprio valor, no entanto, este outro « (…) também quer se fazer reconhecer, e (ele) está pronto também a arriscar, à « negar » sua vida animal na luta por reconhecimento de seu ser-para-humano. Ele deve, então “provocar” o outro, o forçar a se engajar numa luta de morte de puro prestígio.”87

(KOJÈVE, 1947, p.20 trad. nossa)

No entanto, se esta luta pelo reconhecimento recíproco, terminar com a morte de um dos pólos que busca no outro sua própria afirmação como Consciência autônoma, ou mesmo se ambos os pólos da luta encontrar a morte no meio da batalha, será o fim mesmo da própria existência. No primeiro caso, se um dos pólos morre, é o vencedor que deixa também de existir como Consciência-de-si-autônoma já que não pode mais ser reconhecida por esse

outro que acaba de desaparecer. No caso dos dois pólos encontrarem a morte, o

fim é ainda mais óbvio. A saída que Hegel dará para este impasse da morte, é que para ser reconhecido como Consciência-de-si-autônoma, o eu deverá

suprimir dialéticamente o outro - o que vem a ser, suprimir conservando o

suprimido. Nas palavras de Kojéve, “Quer dizer que ele irá lhe deixar a vida e a consciência e apenas destruir sua autonomia. Ele deverá lhe suprimir, pois que este lhe é oposto e age contra ele. Dito de outro modo, ele deverá lhe assujeitar. »88 (KOJÈVE, 1947, p. 21.trad. nossa)

Grosso modo, a Consciência autônoma, que pode ser assim chamada pois se saiu vencedora da luta pelo reconhecimento, se apresenta na imagem do Mestre; e a outra, a Consciência dependente, perdedora, se apresentaria na figura do Escravo. Nas palavras de KOJÈVE (1947), “Este escravo é o adversário

87Do original consultado: « (...) aussi veut se faire reconnaître, et [il] est prêt lui aussi à risquer, à

« nier » sa vie animale dans une lutte pour la reconnaissance de son être-pour-soi-humain. Il doit donc « provoquer » l‟autre, le forcer à engager une lutte à mort de pur prestige. » Ibidem., p. 20.

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Do original consultado: “C‟est-à-dire qu‟il doit lui laisser la vie et la conscience et ne détruire que son autonomie. Il ne doit le supprimir qu‟en tant qu‟opposé à lui et agissant contre lui. Autrement dit, il doit l‟asservir.Ibidem., p. 21.

vencido, que não foi até o fim arriscando a própria vida, que não adotou o princípio dos Mestres: vencer ou morrer. Ele aceitou a vida acordada por este outro. Ele depende desse outro. Ele preferiu a escravidão à morte, e é por isso, que ficando vivo, ele vive como escravo.»89 (KOJÈVE, 1947, p. 22 trad. nossa). E é por ter recusado o risco, que o Escravo permanece ainda um ser « bestial », “natural », enquanto o Mestre acedeu ao estatuto de humano, “mediatizado”, se relacionando com as coisas do mundo já transformadas pelo trabalho do Escravo. O Escravo detém o Saber sobre a coisa, sobre a natureza,

« (…) quer dizer pelo trabalho do escravo que transforma a coisa natural, a ‟matéria prima‟ em vista do seu consumo (para o Mestre). (…) ele a prepara para o consumo, mas ele não a consome ele mesmo. Todo esforço tendo sido feito pelo Escravo, o Mestre cabe apenas gozar da coisa que o Escravo lhe preparou, e de „negá-la‟, „destruí-la‟, consumindo-a” .90 (KOJÈVE, 1947, p. 23. trad. nossa).

No entanto, o problema que se coloca é o do valor do reconhecimento conseguido pelo Mestre e de sua relação com a verdade de sua existência. Pois, no momento em que o Mestre arrisca à perder a vida em troca do reconhecimento do outro, que o elevaria ao nível humano de uma Consciência autônoma, ele se apercebe que este outro uma vez transformado em Escravo, não pode lhe dar o que ele deseja, já que estaria na posição não de um semelhante, mas ainda no nível do não-humano. Vemos aqui que, se a dialética do senhor e do escravo, proposta por Hegel, coloca em cena o problema da intersubjetividade, ela não consegue resolvê-la; se a morte é o caminho que levaria ao reconhecimento, ela

89 Do original consultado: “Cet Esclave est l‟adversaire vaincu, qui n‟est pas allé jusqu‟au bout

dans le risque de la vie, qui n‟a pas adopté le principe des Maîtres : vaincre ou mourir. Il a accepté la vie accordée par un autre. Il dépend donc de cet autre. Il a préféré l‟esclavage à la mort, et c‟est pourquoi, en restant en vie, il vit en Esclave. Ibidem., p. 22.

90 Do original citado: (…) c‟est-à-dire par le travail de l‟Esclave qui transforme la chose naturelle, la

« matière première » en vue de sa consommation (par le Maître). (...) il la prépare pour la consommation, mais il ne la consomme pas lui-même. Tout l‟effort étant fait par l‟Esclave, le Maître, n‟a plus qu‟à jouir de la chose que l‟Esclave a preparée pour lui, et de la “nier”, de la “détruire”, en la « consommant »Ibidem., p. 23.

também é o fim que o aniqui-la, e mesmo a supressão dialética que guardaria o suprimido como servidão, não seria tampouco uma solução, pois não garante ao Escravo o estatuto de Consciência-autônoma. Temos então que,

se o homem não pode se satisfazer que pelo reconhecimento, o homem que se comporta como Mestre nunca o será. E porque, no início o homem ou é Mestre ou é Escravo, o homem satisfeito será necessariamente Escravo ; ou mais exatamente, aquele que foi Escravo, que passou pela escravidão e que suprimiu dialeticamente „sua servidão‟» 91

(KOJÈVE, 1947, p. 25. trad. nossa).

Assim, a verdade do Mestre está do lado do Escravo. O Mestre precisa do Escravo que carrega a sua verdade, garantindo assim a ilusão do Mestre de que carrega uma Consciência-de-si-autônoma idêntica a si mesma. Assim, como nos diz Lacan (1992), “(...) desejo do senhor é o desejo do Outro, pois é o desejo que o escravo predispõe.” (LACAN, 1992, p.38). Mas a crítica que Lacan faz a Hegel é que sim, o Escravo detém a verdade do Senhor, no entanto, esta verdade não basta! Não há uma Verdade que baste, pois não há verdade que possa ser toda dita. Ele nos diz, “Se há algo que toda a nossa abordagem delimita, que seguramente foi renovado pela experiência analítica, é justamente que nehuma evocação da verdade pode ser feita se não for para indicar que ela só é acessível por um semi-dizer, que ela não pode ser inteiramente dita, porque, para além de sua metade, não há nada a dizer.” (LACAN, 1969-1970/1992, p.53) E é por isso, que a coisa continua.

Ao pegarmos, então, a dúvida lançada por Lacan no Seminário XVII, a saber, de que modo o senhor imporia sua vontade? É certo que haveria aí, algo da ordem de um consentimento, nos diz o psicanalista. A primeira forma de enlaçamento é a obediência e não a culpa, como em Freud. A culpa em Lacan aparece somente quando o sujeito abre mão em seu desejo. Mas, não nos parece

91 Do original consultado: si l‟homme ne peut être satisfait que par la reconnaissance, l‟homme qui

se comporte en Maître ne le sera jamais. Et puisque au début l‟homme est soit Maître, soi Esclave, l‟homme satisfait sera nécessairement Esclave ; ou plus exactement, celui qui a été Esclave, qui a passé par l‟Esclavage, qui a supprimé dialectiquement « sa servitude Ibidem., p. 25.

que o Escravo seja um sujeito culpado. Talvez, porque ele ganhe alguma coisa com isso. Para se manter Mestre, aquele que acedeu ao estatuto de sujeito, de humano, perde alguma coisa que lhe garantiria o encontro com sua suposta verdade, trata-se do objeto a. E será o saber do Escravo, seu trabalho de transformar a coisa natural, a “matéria primeira”, em objeto a ser devorado, gozado pelo Mestre, sem nunca satisfazê-lo que manterá as regras do jogo em seu estado original. É por isso que nos diz Lacan (1992),

O que sobra é exatamente, com efeito, a essência do senhor Ŕ a saber, o fato de que ele não sabe o que quer. Eis o que constitui a verdadeira estrutura do discurso do senhor. O escravo sabe muitas coisas, mas o que sabe muito mais ainda é o que o senhor quer, mesmo que este não o saiba, o que é o caso mais comum, pois sem isto ele não seria um senhor. O escravo o sabe, e é isto sua função de escravo. É também por isto que a coisa funciona, porque de qualquer maneira, funcionou durante muito tempo.” (LACAN, 1969- 1970/1992, p. 32)

E o que se situa no primeiro plano do discurso do Mestre é a lei; ela é a forma por excelência do discurso do Mestre. É pela lei, sob sua forma de imperativo, que o Mestre se manifesta, e diz: Trabalhe! Produza ! Um imperativo, como nos diz Benveniste (1966), « (…) não é denotativo e não visa a comunicar um conteúdo, mas se caracteriza por seu pragmatismo e visa a agir sobre o auditor, a lhe imprimir um comportamento. O imperativo não é um tempo verbal; ele não comporta nem marca temporal, nem referência pessoal. É o semantema nu, empregado como forma jussiva e com intonação específica.”92 (BENVENISTE, 1966, p. 274 trad. nossa).

Um imperativo não representa nada no mundo. O enunciado: Ande!, não corresponde a uma ação visível no mundo, e não diz nada daquele que fala.