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A cooperação interfederativa: considerações gerais

3. O ENTRAVE PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO LOCAL

3.3. A ausência de cooperação interfederativa no Brasil

3.3.1. A cooperação interfederativa: considerações gerais

Procurarei explicar a razão pela qual creio que ele, tal como implementado na prática, não desqualifica as minhas afirmações feitas aqui, focadas mais nas competências privativas de municípios, previstas no art. 30 da Constituição.

3.3.1. A cooperação interfederativa: considerações gerais

De onde surge a faceta cooperativa do federalismo brasileiro? A resposta é que o modelo federalista previsto hoje na Constituição Federal brasileira é o resultado de uma espécie de combinação entre dois modelos algo distintos: (i) o norte-americano, regido pela ideia da

competição entre entes e, portanto, marcado pelas competências privativas; e (ii) o alemão,

regulado pela cooperação entre entes e, assim, caracterizado pelas competências comuns e

concorrentes (paralelas).306 Essa fusão entre dois modelos não significa, necessariamente, que,

na prática, o federalismo brasileiro seja cooperativo. De fato, há autores que dizem, por exemplo, que a criação da esfera de poder municipal “em um contexto de forte urbanização da população e emergência de municípios de médio e grande porte que se tornaram importantes atores políticos, a estrutura federativa brasileira assumiu uma feição mais competitiva entre seus entes do que aquela cooperação pretendida”.307

O aspecto cooperativo do federalismo é amplamente discutido por autores, referindo-se ao caso do Brasil e de outras federações. Um dos aspectos de maior interesse dessa farta literatura se refere aos fatores que contribuem para moldar o grau de enraizamento institucional da cooperação intergovernamental federalista. Ortolan, após realizar estudo de fôlego sobre as experiências cooperativas na Alemanha, Áustria, Estados Unidos, Austrália e África do Sul, conclui que dois principais fatores afetam o grau de institucionalização das relações intergovernamentais federativas: (i) o sistema de governo adotado (parlamentarismo, presidencialismo ou modelo híbrido); e (ii) o sistema federativo administrativo instituído pela Constituição (repartição e execução das competências administrativas entre governos).308

306 Sobre o caráter “híbrido” do federalismo brasileiro, vide: ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de.

Competências na Constituição de 1988. Op. Cit., p. 58 e ss.

307 SANTOS, Angela Moulin S. Federalismo no Brasil: uma abordagem da perspectiva dos Municípios. Op. Cit.

p. 98.

308 ORTOLAN, Marcelo. O sistema de repartições das competências legislativas da Lei Fundamental Alemã após

A primeira variável afeta o potencial cooperativo de uma federação na medida em que o presidencialismo tende a reforçar a separação entre os eixos de poder e as respectivas competências do Executivo e do Legislativo, enquanto o parlamentarismo tende a atenuar a separação entre Executivo e Legislativo.

Por exemplo, a Alemanha, que adota o sistema parlamentarista, “(...) se caracteriza por um sistema administrativo entrecruzado de codecisão e coexecução de tarefas e políticas públicas entre Bund e Lander (Politikverflechtung), tendo no Bundesrat a estrutura chave de sua estrutura governamental, que representa diretamente os governos estaduais”.309 Os

principais executores das competências administrativas são entes subnacionais, o que requer, evidentemente, contínua e cuidadosa coordenação e cooperação entre todos os níveis de governo. Por essa razão, o grau de institucionalização das relações intergovernamentais na Alemanha é considerado muito alto. Esse alto grau de institucionalização pode trazer consigo custos excessivos para a efetividade de políticas públicas, pois poderá ser o caso de que os mecanismos de cooperação sejam marcados por alta rigidez e formalidade – o que, na realidade, pode ser contraprodutivo para resolver problemas concretos.310

Já os Estados Unidos, que conta com um sistema presidencialista, se caracteriza pelo fato de que “(...) cada nível de governo assume responsabilidade integral pela legislação, implementação e administração de suas competências em seu território, de modo que o governo federal não pode se valer de governos estaduais para executar suas leis e tarefas públicas ‘sob seu encargo’”.311 Por isso, nos Estados Unidos, as relações intergovernamentais são

conflituosas e marcadas pela informalidade (e, consequentemente, falta de institucionalização), já que dependem da cooperação voluntária entre os entes federativos. Não há incentivos para entes federativos cooperarem, nem penalidades pela recusa de cooperar. Assim sendo, a cooperação contratual (via instrumentos como convênios e consórcios públicos, por exemplo) é tão importante para a implementação de políticas públicas de maneira descentralizada nos Estados Unidos.

Ao ver de Ortolan, as características do federalismo norte-americano estão presentes, também, no Brasil, que se organiza institucionalmente num modelo de presidencialismo. O Brasil, “apesar de formalmente ter acolhido um sistema administrativo mais cooperativo e entrelaçado, estabelecendo competências comuns para as áreas, na prática continua pouco

309 ORTOLAN, Marcelo. Ibid. p. 169. 310 ORTOLAN, Marcelo. Id.

coordenado e cooperativo”.312 De fato, vimos acima, na tabela sobre a repartição de

competências administrativas na federação brasileira, que muitas delas são “comuns”, isto é, podem ou não ser exercidas complementarmente por mais de um ente federativo, conforme o caso.

Mas, na prática, no mundo real de hoje, essas “competências comuns” não significam que exista “codecisão” e “coimplementação”, como na Alemanha. Um ente federativo concebe e executa competências administrativas sem a participação dos demais, ou até pode haver cooperação, mas os municípios não assumem uma posição de protagonismo na concepção da política pública. Isso porque quem elabora a política pública, através da produção do direito, é, de um modo geral, o governo federal, mesmo que a implementação administrativa esteja a cargo de entes subnacionais. Além disso, na maioria dos casos, quem financia a política pública é o governo federal. A tabela abaixo auxilia a demonstrar esse ponto:

Tabela 7 – Panorama das competências a respeito da normatização, financiamento e execução de algumas políticas públicas brasileiras

Políticas sociais Normatização Financiamento Execução

Educação Federal Estados e Municípios

Vinculação de gasto

Estados e Municípios

Saúde Federal Transferências federais

Vinculação de gasto

Estados e Municípios

Habitação popular Federal Transferências federais Receitas próprias

Estados e Municípios

Saneamento Federal Federal Estados e Municípios

Transferência de renda Federal Federal Estados e Municípios

(cadastramento) Fonte: Arretche (2012, p. 169), retirado de Tomio e Ortolan (2015, p. 169)

A ausência de protagonismo de municípios na concepção e execução de políticas públicas de interesse local é outro componente que afeta a sua autonomia local, nos termos definidos neste trabalho. Essa ausência de capacidade de participar e influenciar de muitas políticas que afetam o dia-a-dia de seus cidadãos faz com que as autoridades de governos municipais brasileiros não sejam em si responsáveis pela gestão, com algo próximo de exclusividade, por assuntos de interesse local, o que, por sua vez, impossibilita que a sociedade civil possa exercer, com efetividade, participação e controle social.

O problema é que não dá para resolver o problema da cooperação simplesmente atribuindo e concentrando mais responsabilidades em governos municipais, pois essa solução ignora o fato de que o recorte político-geográfico brasileiro não contempla fidedignamente a abrangência da urbanização. De fato, a região metropolitana do Rio de Janeiro, por exemplo, é

conformada por uma série de municípios diferentes. E isso exige a cooperação entre governos locais para a implementação de alguns serviços públicos como, por exemplo, o saneamento básico. Ocorre que os mecanismos de cooperação intergovernamental no Brasil são usados e orientados por uma lógica de centralização do poder, ou pelo menos de relativo esvaziamento do poder e da capacidade de participação de entes municipais.

É o que ilustra, por exemplo, a decisão de 2013 do Supremo Tribunal Federal sobre regiões metropolitanas no contexto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.842-RJ (ADI), que discute duas normas, ambas editadas em 1997 pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro: (i) a Lei Complementar nº 87/97 - dispõe sobre a Região Metropolitana do Rio de Janeiro – composição, organização e gestão, definindo serviços e funções públicas de interesse comum; (ii) a Lei Ordinária nº 2.869/97 - trata do regime de prestação de serviço público de transporte ferroviário e metroviário de passageiros no Estado do Rio de Janeiro, bem como sobre o serviço público de saneamento básico no Estado.

O Partido Democrático Trabalhista (PDT), autor da ADI, sustentava, em relação à Lei Complementar nº 87/97 que, com a criação da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o governo do estado estava passando a administrar grande parte das funções e serviços que a Constituição Federal atribuiu privativamente aos municípios. As alegações em relação à Lei Ordinária nº 2.869/97 referem-se ao abastecimento e distribuição de água e esgotamento sanitário, à fixação da tarifa e sua revisão e reajustamento, entre outros assuntos que não são relevantes para os fins desta dissertação. Gostaria, aqui, de focar na alegação em relação à Lei Complementar nº 87/97. Será mesmo que o governo estadual estaria “usurpando” a competência privativa de municípios de legislarem e prestarem serviços de interesse local?

O primeiro ponto a se considerar é que o STF já firmou entendimento no sentido de que a competência e titularidade da prestação do serviço público de saneamento básico é dos municípios, justamente a partir da interpretação dos termos do art. 30, inciso I e V da Constituição Federal. O problema, na verdade, só surge no âmbito de regiões metropolitanas, considerando que o saneamento básico é um clássico exemplo de monopólio natural (sobretudo devido às altas economias de escala características do serviço).313 Isso torna economicamente sem sentido ter empresas separadas prestando serviços separados de saneamento básico numa mesma região metropolitana - seria ineficiente e altamente custoso para a população local.

O segundo ponto a se analisar é se, dado que alguns serviços públicos possuem abrangência maior do que a jurisdição de apenas um município, e tendo em vista que

313 MADEIRA, Rodrigo F. O setor de saneamento básico no Brasil e as implicações do marco regulatório para a

economicamente não faz sentido separar a prestação do serviço por município, como compatibilizar esse fato com o que dispõe a Constituição Federal sobre a competência e titularidade de municípios para legislar e executar serviços públicos de interesse local? Há basicamente duas formas. A primeira, que não é exatamente o resultado de uma decisão judicial, seria a fusão desses municípios de modo a preservar a autonomia local deles. É o que aconteceu com alguns governos locais norte-americanos, num fenômeno conhecido lá como

consolidation.314 A segunda solução seria a criação de um mecanismo de cooperação que não retira dos municípios a capacidade de gerir e influenciar decisivamente assuntos de interesse local.

Nenhuma dessas soluções parece ter sido adotada no Brasil. Com base numa lógica bastante “pró-descentralização” e “pró-desconcentração” do poder, a decisão do STF basicamente reconheceu e atribuiu o poder concedente e a titularidade do serviço ao colegiado formado por municípios e pelo estado federado em que estão inseridos (o Estado do Rio de Janeiro). De acordo com o STF,

“A participação dos entes nesse colegiado não necessita de ser paritária, desde que apta a prevenir a concentração do poder decisório no âmbito de um único ente. A participação de cada Município e do Estado deve ser estipulada em cada região metropolitana de acordo com suas particularidades, sem que se permita que um ente tenha predomínio absoluto”.315

Ocorre que não se sabe exatamente como vai ser distribuído o poder de fato. Não se sabe se a “ausência de paridade” jogará a favor dos municípios mais abrangidos pelo serviço público em questão, ou se a favor do Estado federado. Quem terá mais poder de decisão? De implementação do serviço público? Embora essa e outras questões referentes à aplicabilidade da decisão do STF (se terá ou não efeitos erga omnes) estejam pendentes de apreciação no contexto de embargos de declaração apresentados em face do acórdão do STF, em alguma medida já temos algumas pistas.

A principal delas é o fato de o STF ter indicado que a instituição de uma região metropolitana é prerrogativa do Estado e compulsória aos municípios. Ou seja, o município

não pode escolher participar ou não de uma região metropolitana. De acordo com o Ministro

Gilmar Mendes, “(...) este caráter compulsório da integração metropolitana não esvazia a

314 Vide, para referências sobre o assunto, TOMIO, Fabricio Ricardo de Limas. Autonomia municipal e criação de

governos locais: a peculiaridade institucional brasileira. Op. Cit.,Op. Cit. p. 109.

315 Vide Acórdão do STF no contexto da ADI, relatada pelo Ministro Luiz Fux e redatada pelo Ministro Gilmar

autonomia municipal”.316 Será que isso pode ser prometido pelo STF? Essa é uma clara suposição sobre como o mundo funciona que, pelo que se tem visto ao longo deste Capítulo 3,

não parece se confirmar na realidade. A realidade parece ser, sim, a de uma tendência ao conflito ou à ausência de cooperação entre os entes federativos, levando a um movimento gradual, mas seguro, de centralização do poder na mão da União e, em menor grau, dos estados. O que, na prática, se traduz em perde de autonomia para os municípios de grandes cidades.

Pode ser que o problema tenha sido resolvido agora que foi sancionado o Estatuto da Cidade, cuja finalidade é justamente criar condições para a cooperação entre entes federativos no contexto de grandes regiões metropolitanas.