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Conclusão parcial: por uma melhor compreensão do sentido ideal de autonomia de

1. A RELAÇÃO ENTRE DESCENTRALIZAÇÃO E SEUS SUPOSTOS BENEFÍCIOS

1.3. Conclusão parcial: por uma melhor compreensão do sentido ideal de autonomia de

Neste tópico, gostaria de fazer algumas observações conclusivas sobre a descentralização, e assentar algumas premissas importantes do restante deste trabalho, em especial no que tange à relação entre a autonomia de governos locais e desenvolvimento econômico local.

A descentralização é um fenômeno que surgiu em reação aos malefícios identificados por uma série de países que passaram por períodos de forte centralização política, administrativa e fiscal. Os governos desses países foram caracterizados por um forte déficit democrático e por uma incapacidade de prestar serviços públicos de qualidade adequada e de maneira eficiente. De forma quase que acrítica, os principais advogados da descentralização, na academia, em organismos internacionais e na política atribuíram a esse processo a capacidade de resolver os problemas supostamente gerados pela centralização. Também atribuíram ao fenômeno a

capacidade de contribuir para gerar desenvolvimento econômico.

Há alguns anos, a literatura vem analisando, cuidadosamente, a validade de cada um dos argumentos pró-descentralização. Tentei descrever acima a forma como se desenvolve cada um desses argumentos, bem como as críticas a eles são direcionadas. A relação entre descentralização e fortalecimento da democracia parece ser a mais promissora. Dadas algumas condições que tentei explicitar, é possível que a descentralização fortaleça um ideal mais participativo de democracia, que é mais difícil de implementar quando se escala para a política regional ou nacional.95

Scott. Groups of diverse problem solvers can outperform groups of high-ability problem solvers. PNAS, November 16, 2004, vol. 101. p. 1). Há evidências não só de que a diversidade reflete-se positivamente na qualidade de pesquisas científicas, como também de que é melhor que um grupo heterogêneo, porém com menos

expertise, trate de um problema do que um grupo com mais expertise, porém mais homogêneo. Como bem nota o

verbete “The scientific community: Diversity makes the difference”, da plataforma electronica “Understanding

Science” da University of California, Berkley, “Diversity invigorates problem solving. Science benefits greatly

from a community that approaches problems in a variety of creative ways. A diverse community is better able to generate new research methods, explanations, and ideas, which can help science over challenging hurdles and shed new light on problems. For example, Albert Einstein approached the notions of space and time in a very different way from his contemporaries, coming up with ideas that, though unintuitive, were supported by evidence and

opened up new areas of research”. Verbete disponível em:

http://undsci.berkeley.edu/article/socialsideofscience_02. Acesso em: 2/12/2015.

95 Aqui é pertinente reproduzir a observação de Roesler: “(...) citizen participation may actually result in decisions

that are, in fact, more responsive to actual preferences. In addition, public dialogue at the local levels may do more than facilitate political consensus; it may actually shape citizen’s attitudes and preferences, instilling in them a

Procurei sugerir alguns possíveis caminhos a serem pensados para fortalecer a capacidade dos indivíduos de influenciarem a política local, bem como identificar algumas possíveis vantagens de se adotar uma estratégia de aprofundamento da ampliação de canais de participação democrática. Como mencionado acima, há inúmeros problemas associados à radicalização de mecanismos de participação popular em governos locais, mas a maior parte deles parece ser aplicável tanto à política local, quanto nacional. Embora não devam ser ignorados, tampouco descartam os benefícios decorrentes do fortalecimento da democracia localmente.

O grau de sofisticação da sociedade civil organizada em grandes centros urbanos brasileiros leva a crer que experiências de aprofundamento da democracia participativa podem trazer benefícios concretos para a população.96 Não parece fazer sentido “infantilizar” o eleitor local, argumentando que sua baixa sofisticação técnica faz com que sua participação não agrega, ou seja inclusive perigosa (e leve a situações de redução de bem-estar, no agregado). Pode até ser que, em algumas situações, o resultado seja esse. Mas nada garante que uma cidade administrada tecnocraticamente não venha a sofrer com redução de bem-estar (em razão do fato de que sua população não pode participar de tomadas de decisão públicas).

Além disso, o tradicional trade-off entre efetividade e legitimidade de políticas de desenvolvimento, discutido pela doutrina sobre direito e desenvolvimento, começa a ser superado. Prado et. al. notam que, respondendo a um conjunto de autores que argumentavam que garantir mais espaços de participação para a sociedade civil nos processos de concepção e implementação de políticas de desenvolvimento geram ou aumentam custos de transação, reduzem a rapidez e implementação dessas políticas e criam uma miríade de outros problemas de difícil solução que comprometem a efetividade dessas políticas, hoje autores influentes como Evans e Sabel afirmam que a participação popular pode potencialmente aumentar a efetividade de políticas de desenvolvimento.97

sense of civic virtue that inspires a desire to pursue the common good” (ROESLER, Shannon. Federalism and Local Environmental Regulation. Op. Cit., p. 1140).

96 Volto, aqui, a remeter, a título exemplificativo, ao valioso trabalho da organização Nossas Cidades. O Meu Rio

(que agora expandiu-se para Nossas Cidades). O Meu Rio, uma OSCIP que foi criada por jovens cariocas que queriam criar mais condições de participação direta e efetiva dos cidadãos na política do dia-a-dia do Rio de Janeiro, já obtive uma série de conquistas importantes. Dentre elas, destaca-se a da manutenção da Escola Municipal Friedenreich, que o Estado do Rio de Janeiro (dono do terreno) queria destruir para abrir espaço para estacionamento. Por meio da mobilização, na internet, de milhares de cariocas, os alunos e pais da escola lograram postergar a decisão. Até hoje, a escola segue em pé. Para conferir essa e outras conquistas do Meu Rio, vide:

http://www.meurio.org.br/#block-168. Acesso em: 21/11/2016.

97 Com efeito, esses autores entendem que “(…) the inescapable trade-off between effectiveness and legitimacy is

false. Democracy and development can reinforce each other with desirable qualitative gains. Rodrik, for instance, argues that democracy is a meta-institution to build good institutions for development” (PRADO, Mariana Mota;

Quanto à relação entre descentralização e desenvolvimento econômico, vimos, de modo geral, que não é muito convincente o argumento de que a descentralização, necessariamente, (i) melhora a eficiência e a qualidade da prestação de serviços públicos e demais políticas locais; e, no agregado, (ii) promove o desenvolvimento econômico. Isso por inúmeras razões elencadas acima. O que parece ser seguro concluir, portanto, é que está longe de ser clara a relação entre descentralização, de um lado, e a melhora na qualidade e na prestação de serviços públicos e políticas locais, bem como a promoção de desenvolvimento econômico, de outro. Isso não significa que a descentralização não promove nunca desenvolvimento econômico loca. Também não quer dizer que a descentralização não contribui, em alguma medida, para o desenvolvimento econômico. Significa apenas que não passa de um mito a vinculação necessária entre descentralização e desenvolvimento econômico.

Mas, de qualquer forma, o fortalecimento da democracia em nível local pode ser uma estratégia muito útil para garantir que seja considerada a autonomia formal atribuída a governos locais pela Constituição brasileira, como também para aumentar as possibilidades de que a descentralização contribua para o desenvolvimento econômico local. Como mencionado, acredito que a correta compreensão do que é “autonomia de governos locais” pressupõe que: (i) governos locais são os únicos ou principais responsáveis por assuntos de interesse e impacto local; e (ii) os cidadãos sujeitos à jurisdição de um governo local são capazes de influenciar e controlar o trabalho das autoridades locais.

Afirmei acima que essas duas condições são necessárias para que a população local tenha a capacidade de influenciar as decisões de governantes locais, bem como controlá-las. Num sistema complexo de distribuição de competências como é a federação brasileira, existe o problema da falta de clareza sobre a que ente federativo compete realizar uma tarefa em nível local. Isso, a meu ver, contribui para diminuir a capacidade de controle social sobre a gestão de assuntos públicos, de interesse da coletividade, em grandes centros urbanos. Quem devemos culpar quando o Estado se omite de providências para fomentar o desenvolvimento econômico local, ou toma decisões erradas? Não saber responder a essa pergunta pode possivelmente travar a efetividade de estratégias voltadas ao desenvolvimento econômico local. Assim, pode ser que, se levarmos mais a sério e buscarmos promover a autonomia de governos locais no sentido que apresentei acima, a estratégia de desenvolvimento que se vale da descentralização como instrumento seja mais bem-sucedida.

SCHAPIRO, Mario; COUTINHO, Diogo R. The Dilemmas of the Developmental State: Democracy and Economic Development in Brazil. Op. Cit., p. 33-34).

Antes de passar ao próximo tópico, falta uma última observação. Os principais riscos da descentralização – i.e., a ausência de um governo com corpo técnico qualificado e a possibilidade de captura das autoridades locais – não devem ser desconsiderados. No entanto, ao que tudo indica, tais riscos são maiores em cidades menos populosas, com uma economia pouco dinâmica e mais concentrada, e uma sociedade civil menos engajada nos assuntos de interesse local. Grandes centros urbanos são caracterizados por uma população diversa, de sofisticação intelectual variada, uma sociedade civil presente e atuante, e uma economia relativamente desconcentrada. Nesse caso, fica mais difícil sustentar que o risco de que as autoridades locais não logrem reunir um corpo técnico qualificado para gerir adequadamente a cidade, além de o risco de que autoridades locais venham a ser capturadas, é alto a ponto de valer a pena retirar um certo grau de autonomia desses governos locais para mitigar tais riscos.

A bem dizer, a ampliação de canais de participação popular em grandes cidades pode ajudar a reduzir esses riscos, na medida em que implica a abertura de novas formas de exercer influência na concepção de decisões de autoridades locais, no monitoramento de seus resultados, e no controle/penalização de seus efeitos indesejáveis.98 Isso me leva a concluir,

portanto, que a descentralização é uma questão essencialmente de escala e grau: localidades que tenham condições de exercer, de modo efetivo, sua autonomia, sobretudo por meio do aprofundamento da democracia participativa em nível local, devem ser dotadas de mais autonomia do que as demais.

98 Não estendo este argumento a pequenas cidades, mas também não descarto a possibilidade de ele ser pertinente

no caso de algumas pequenas cidades. De fato, pode bem ser o caso de que uma pequena cidade tenha uma sociedade civil altamente organizada, engajada, e com vontade de participar mais da política local.

Ademais, o fato de a população local de uma pequena cidade ser, por definição, baixa, facilitaria, a princípio, a implantação de um modelo de democracia participativa (a democracia representativa surge quando a sociedade se torna complexa – populosa, desengajada, polarizada – a ponto de tornar inviável a democracia representativa). Não obstante essas considerações, quero crer que não há razões suficientes para acreditar que a maior parte das pequenas localidades conta com uma população altamente engajada, e disposta a disciplinar comportamentos indesejáveis das autoridades locais. Essa generalização parece irrealista demais. Por outro lado, não parece ser tão irrealista assumir que grandes centros urbanos são caracterizados por uma sofisticação social pouco estudada pela literatura que analisa os prós e contras da descentralização.