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1. A RELAÇÃO ENTRE DESCENTRALIZAÇÃO E SEUS SUPOSTOS BENEFÍCIOS

1.2. O que se pode esperar da descentralização?

1.2.2. Desenvolvimento econômico local?

Há todo um projeto de desenvolvimento econômico, capitaneado pela academia e por organismos internacionais, que atribui amplo protagonismo justamente a governos locais.59 Confia-se muito na capacidade de governos locais de gerar desenvolvimento econômico. Por que razão?

As considerações tecidas acima sobre o argumento de Tiebout (e os autores de MPF) também se aplicam à relação entre descentralização e desenvolvimento econômico. De fato, seguindo o raciocínio de Tiebout, a competição entre governos locais por pessoas e empresas levaria as autoridades a adotar políticas públicas que favorecessem o mercado local. Mais especificamente, as autoridades locais teriam incentivos para agir de modo a atrair mais capital à cidade e a manter o que já lá se encontra para, assim, aumentar e/ou manter estável a base de arrecadação. A partir disso, Tiebout e quem nele se baseia para explicar as causas do desenvolvimento local concluem que as autoridades locais terão propensão a melhorar a eficiência e qualidade na prestação de serviços públicos e políticas sociais locais, e que, como resultado, um maior número de empresas e pessoas virá para a cidade e, em consequência, aumentará o desenvolvimento econômico local.60

Como vimos acima, há alguns problemas com esse raciocínio, principalmente pelo fato de que é difícil fazer considerações muito gerais sobre a relação entre dois fenômenos tão complexos, que envolvem tantas variáveis distintas, como é o caso da descentralização, de um

to improve the opportunities for participation and voice and engaging the hitherto disadvantaged or disenfranchised in the political process” (BARDHAN, Pranab. Ibid., p. 202).

59 Vide, e.g., TRAVERS, Tony. Local government’s role in promoting economic growth: removing unnecessary

barriers to success. Local Government Association, Independent Report, 2012. Disponível em:

http://eprints.lse.ac.uk/47842/1/__libfile_REPOSITORY_Content_Travers,%20T_Local%20government%E2%8 0%99s%20role%20in%20promoting%20economic%20growth_Local%20government%E2%80%99s%20role%2 0in%20promoting%20economic%20growth%20(LSE%20RO).pdf. Acesso em: 21/11/2016. Vide também: VNG International. The Role of Local Government in Local Economic Development: A step-by-step developed by VNG International, 2007. Disponível em: http://www.vng-international.nl/wp- content/uploads/2015/06/The_role_of_local_government_in_local_economic_development.pdf. Acesso em: 21/11/2016.

60 Isso é notado por Scott: “(…) service delivery directly impacts upon economic growth in multiple ways, by

providing services to business premises, by educating people in business related activities, by ensuring the health of the workforce etc.” (SCOTT, Zoe. Decentralisation, Local Development and Social Cohesion: An Analytical Review. Op. Cit., p. 10).

lado, e do desenvolvimento econômico, de outro.61 Isso torna difícil sustentar qualquer relação entre descentralização e desenvolvimento econômico, mesmo levando em consideração outros fatores, além de melhora da qualidade e eficiência na prestação de serviços públicos e políticas sociais. Embora não seja correto dizer que esses outros fatores não explicam, indiretamente, a relação entre descentralização e desenvolvimento econômico, também é ingênuo atribuir importância demasiada a eles. Todos esses fatores são capazes de explicar como a descentralização contribui para aumentar o desenvolvimento econômico, ou como pode

prejudicá-lo.62 Ademais, é possível que a análise do caso concreto no qual se baseie o exame

da relação entre descentralização e desenvolvimento econômico envolva uma experiência inacabada, ou mal implementada, de descentralização, o que também dificulta a precisão de conclusões mais gerais a respeito dessa relação.63

A literatura vem investigando outros elementos que podem ajudar a explicar a relação descentralização-desenvolvimento econômico. Scott identificou dois: (i) as autoridades públicas locais têm conhecimento maior sobre as peculiaridades da realidade de suas respectivas jurisdições, o que as pode levar a tomar decisões administrativas (de cunho regulatório, por exemplo) mais adequadas e relevantes em nível local – logo, o processo de descentralização deve dar às autoridades locais a capacidade de tomar decisões administrativas de relevância local;64 (ii) a descentralização pode reduzir as oportunidades para a existência de

61 Essa é a conclusão de Scott, que se ocupou de fazer uma compilação extensa dos trabalhos sobre a relação entre

descentralização e desenvolvimento econômico. Nas palavras da autora, “There is generally a lack of quality research in this area. In particular there is a paucity of empirical research. This is partly because of the difficulty of acquiring reliable data from before decentralisation reforms were implemented. However, it is also due to the difficulty of linking a complex issue like economic development with decentralisation when so many other variables are also involved” (grifo nosso) (SCOTT, Zoe. Decentralisation, Local Development and Social Cohesion: An Analytical Review. Op. Cit., p. 5).

62 Vazquez e Rider afirmam que “Whether a direct relationship exists between the two therefore remains an

unanswered question. In addition to the direct effect, there are a multiplicity of potential channels through which fiscal decentralization could indirectly affect growth, such as the regional allocation of resources, macroeconomic stability, and corruption” (MARTINEZ-VAZQUEZ, J.; RIDER, M. Fiscal Decentralization and Economic Growth: A Comparative Study of China and India. Indian Journal of Economics & Business, Special Issue China & India, 2006, p. 2).

63 Esse problema foi identificado por Vazquez e Rider, que estudaram a relação a partir do caso indiano e chinês

– ambos os países haviam supostamente implementado reformas de descentralização fiscal. Nas palavras dos autores: “It would seem rather paradoxical that two decentralization systems being so formally different may end up performing so similarly. The explanation, we believe, is due to the fact that for a decentralized system of governance to work well it is necessary to fulfill a rather demanding list of requirements, including: political accountability, administrative flexibility, expenditure and revenue autonomy, hard budget constraints, fiscal discipline, and so on. When one or several of these fundamental elements fails, the overall performance of the decentralization system can be quite poor. The decentralization systems in China and India suffer from different fundamental flaws, but these flaws lead to quite similar consequences” (MARTINEZ-VAZQUEZ, J.; RIDER, M.

Ibid., p. 14).

64 Sobre esse ponto, Schragger nota que “It seems sensible that infrastructure and human capital policies that are

responsive to local or regional conditions are more effective in encouraging economic development than centrally determined policies that ignore geographical differences” (SCHRAGGER, Richard. Decentralization and Development. Op. Cit., p. 1858).

corrupção, o que também é benéfico para o desenvolvimento econômico.65 Além desses, a literatura também trabalha a ideia de que a descentralização gera mais experimentação e inovação na gestão de políticas locais, o que contribui para o desenvolvimento econômico.

Não há muita certeza sobre a consistência desses argumentos. Questiona-se, principalmente, a presunção de que a vantagem informacional de autoridades locais se traduzirá em boas políticas públicas, e que essas políticas públicas serão tanto adequadas, quanto subsídios do crescimento econômico local.66 Ademais, não parece ser muito convincente a ideia de que as autoridades locais são bem-intencionadas e se dedicam a melhorar a qualidade de vida de seus cidadãos. Essa é uma crítica importante, que desemboca num dos principais riscos inerentes à descentralização: o risco de empoderamento de elites locais,67 que pode prejudicar o desenvolvimento econômico.68 Um conjunto significativo, embora não unânime, da literatura defende ser o risco de captura de elites um problema maior em nível local do que central.69

Por fim, também vale registrar que há ceticismo quanto à própria premissa de que “boas políticas” e “boas instituições” podem gerar mais desenvolvimento econômico. Schragger observa que: “(...) the intuition that better government will result in faster economic development seems initially plausible. But how solid is the intuition?”.70 Há muitos motivos

para questionar essa intuição. Embora esteja na moda a ideia de que “instituições importam” para o destino econômico de um país, de uma região e até de uma cidade, também vem

65 SCOTT, Zoe. Decentralisation, Local Development and Social Cohesion: An Analytical Review. Op. Cit., p.

11.

66 Como se afirmou acima, há um conjunto significativo de literatura que lança sérias dúvidas sobre a capacidade

de alguns governos locais governarem efetivamente, por mais que eles sejam liderados por pessoas bem intencionadas.

67 Oliveira conta que Victor Nunes Leal foi um dos primeiros a chamar a atenção para esse problema no Brasil.

Ele dizia que a descentralização era perigosa, pois fortalecia as elites locais, criando condições para a proliferação da patronagem e de caciques locais com poder, “dado que estes passam a deter maiores e constantes recursos financeiros, através dos repasses governamentais e arrecadações de tributos municipais (IPTU, ISS), e políticos, já que têm autonomia na utilização dos recursos financeiros e contam com baixíssima fiscalização sobre as formas de aplicação dos mesmos, além da detenção de poder sobre a nomeação para cargos públicos” (OLIVEIRA, V. E. O municipalismo brasileiro e a provisão local de políticas sociais: o caso dos serviços de saúde nos municípios paulistas. Tese apresentada para a obtenção do título de doutor no Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, ago. 2007).

68 Scott coloca o problema da captura de elites para o desenvolvimento econômico da seguinte forma: “Elite

capture undermines effective business development as decisions are made to benefit certain individuals rather than to promote general economic growth (…). Local government activities that could benefit economic development, such as planning, regulation and business licensing, become ineffective in protecting the public interest and are exploited as rent-seeking activities” (SCOTT, Zoe. Decentralisation, Local Development and Social Cohesion: An Analytical Review. Op. Cit., p. 11).

69 Bardhan diz que “while local governments may have better local information and accountability pressures, they

may be more vulnerable to capture by local elites, who will then receive a disproportionate share of spending on public goods” (BARDHAN, Pranab. Decentralization of Governance and Development. Op. Cit. p. 193). Em contraste, vide SEABRIGHT, Paul. Accountability and decentralisation in government: An incomplete contracts model. European Economic Review, vol. 40, 1996. O argumento de Seabright será analisado em detalhes abaixo.

aumentando o número de publicações que coloca em xeque as premissas e alcance das conclusões dessa corrente de literatura.71

Assim, o que parece ser pertinente e resistir às críticas da literatura é a ideia de que autoridades públicas locais possuem uma vantagem informacional que, dadas certas condições, pode permitir com que elas adotem políticas públicas que se coadunem com as preferências da população local. Isso nos leva para a última vantagem atribuída à descentralização: o fortalecimento ou aprofundamento da democracia.