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Movimento centralização e de descentralização na história brasileira

3. O ENTRAVE PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO LOCAL

3.1. Movimento centralização e de descentralização na história brasileira

Com algumas raras exceções – no período da República Velha e, antes, num breve momento após a outorga da Constituição de 1824 -, a organização do poder no Brasil foi historicamente marcada por um alto grau de centralização, desde o período colonial. De acordo com Arrechte, pelo menos a partir de 1930, com a emergência do Estado Desenvolvimentista e a expansão gradual das funções do governo, “a União assumiu uma parcela altamente

expressiva das capacidades financeiras e administrativas vis-à-vis os demais níveis de governo”.234

O Estado Desenvolvimentista, de ímpeto centralizador, passou por uma série de percalços, se renovou, e hoje está novamente em crise.235 A forma centralizada que dele emergiu é decorrência de dois movimentos paralelos: (i) os principais tributos e fontes de recursos fiscais foram progressivamente se tornando competência exclusiva do governo federal, um fenômeno conhecido como “centralização financeira”; e (ii) o governo federal implementou uma estratégia exitosa de fortalecimento institucional, que envolveu a criação de órgãos administrativos capazes de formular estratégias de desenvolvimento econômico e de inovação em política social, assim como o treinamento técnico e profissional do corpo burocrático. Esses dois movimentos garantiram ao governo federal uma capacidade de “inovação política, de formulação de políticas de longo prazo e de cooptação do capital privado nacional e da classe

234 ARRECHTE, Marta. O mito da descentralização: maior democratização e eficiência das políticas públicas? Op.

Cit., p. 10.

235 De acordo com Schapiro, é possível distinguir três fases do desenvolvimentismo brasileiro:

O “Auge”. Vigente entre 1950 e 1980, foi o período de constituição de grandes empresas estatais em setores

estratégicos da economia. Outras características dessa época foram a forte atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que investia principalmente nos setores de infraestrutura e metalurgia, bem como a instituição de mecanismos de poupança forçada. O objetivo do BNDES nessa fase era diversificar a indústria nacional através de investimentos em vários setores como metalurgia, produtos químicos, fertilizantes, papel e celulose, ferrovias, eletricidade e equipamentos elétricos.

O “Declínio”. Época entre 1980 e 2004, caracterizada pela saturação do modelo de substituição de importações,

pela incapacidade das empresas brasileiras se tornarem efetivamente competitivas no cenário internacional, pela crise da dívida externa em função dos empréstimos tomados no exterior para financiar as medidas desenvolvimentistas, além de crise fiscal e hiperinflação. Dados da ECLAC apresentados por Schapiro revelam que, enquanto entre os anos 1950 a 1980 o Brasil cresceu a uma taxa anual de 4.12%, entre 1981 e 2006 o país cresceu apenas 0.53%. No período de declínio, os Estados Unidos exerceram significativa influência no Brasil através de economistas brasileiros formados em grandes faculdades americanas. Isso, aliado às condições econômicas desfavoráveis, favoreceu o aparecimento e a difusão do “neoliberalismo” – ou pelo menos de algumas de suas ideias – no Brasil ao longo dos anos 1990. No campo da economia, as teses do Consenso de Washington surgem como uma solução para os problemas macroeconômicos brasileiros e latino-americanos. As principais medidas macroeconômicas de que países como o Brasil lançaram mão foram: (i) controle da inflação como principal função da política macroeconômica; (ii) utilização de juros altos como forma de controlar a inflação (gerando valorização da moeda nacional); (iii) financiamento através de investimentos estrangeiros atraídos em razão dos juros altos; (iv) austeridade fiscal; e (v) privatizações. A partir do momento que o Brasil começou a flexibilizar (ou liberalizar) mais sua economia, cresceu um pouco mais: entre 1990 e 2006, a taxa média anual de crescimento foi 1.18%.

O “Surgimento”. A última fase é a do novo desenvolvimentismo (New State Activism), e supostamente durou de

2004 a, cerca de, 2013. Muito embora Schapiro entenda que, em 2013, tenha expirado a época do novo desenvolvimentismo, podemos dizer que o novo desenvolvimentismo, embora tenha perdido vigor enquanto modelo de intervenção do Estado na economia, continua, em certa medida, vigente até hoje. Vide SCHAPIRO, Mario. Rediscovering the Developmental Path? Development Bank, Law, and Innovation Financing in the Brazilian Economy. In: TRUBEK, David; Alviar, Helena; COUTINHO, Diogo; SANTOS, Alvaro. (Org.). Law and the New Developmental State: The Brazilian Experience in Latin America Context. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 117 e ss.

trabalhadora que não teve – até muito recentemente – paralelo em qualquer outra instância de governo”.236

É interessante notar que, de acordo com Arrechte, esse processo de centralização estatal que o Estado brasileiro experimentou, em especial entre os anos 1930 e o final dos anos 1970, não foi apenas o resultado de um processo de “usurpação” das capacidades e competências de governos subnacionais, mas também decorrência do fato de que o nível federal “demonstrou elevada capacidade de inovação institucional e de resposta às pressões advindas dos processos de industrialização e urbanização em curso”.237

Como a instauração do regime militar em 1964, o governo federal aumentou sua capacidade de arrecadação de recursos financeiros, tanto em razão da reforma tributária de 1966, ano em que foi sancionado o Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/1966), quanto por meio de fundos extraorçamentários. Ademais, expandiu substancialmente o número de empresas estatais, de órgãos dedicados à regulação de atividades econômicas, bem como de agências federais responsáveis pela prestação de serviços sociais. Contraintuitivamente, “a forma de expansão do Estado realizada durante o regime militar implicaria a criação de capacidades institucionais e administrativas nos estados e municípios (...)”,238 que explicariam

a natureza do processo de descentralização que o Brasil conheceu com a promulgação da Constituição de 1988. Mais especificamente, políticas implementadas quando da vigência do Estado centralizado parecem ter resultado num processo de fortalecimento das capacidades administrativas de estados e municípios, e possibilitou o processo de descentralização brasileiro.

De fato, a expansão das funções do Estado resultou na necessidade de descentralização administrativa, em particular em nível municipal, necessária para viabilizar a execução de todas as responsabilidades do governo central no campo da política econômica e social. Não por outra razão, durante o regime militar, a capacidade de gasto dos municípios brasileiros aumentou significativamente, sobretudo quando comparada à dos estados: enquanto a receita dos estados correspondia a 34% do total da receita tributária em 1960 e, em 1988, esse número havia caído para 1988, os municípios aumentaram sua participação no total da receita de 6,5% para 11,4% em 1988.239

236 ARRECHTE, Marta. O mito da descentralização: maior democratização e eficiência das políticas públicas?

Op. Cit., p. 10.

237 ARRECHTE, Marta. Id. 238 ARRECHTE, Marta. Id.

239 Vide AFONSO, J. R. Descentralização Fiscal e Financiamento da Saúde: algumas ideias ou provocações.

O aumento da capacidade de gasto de municípios explica-se pelo aumento de transferências de recursos do governo central. No entanto, essas transferências não reverteram o processo de centralização fiscal, já que “estados e municípios dispunham de uma margem muito pequena de recursos a serem aplicados livremente, isto é, o governo federal (seja para uma parte das transferências automáticas, seja para a quase totalidade das transferências negociadas) vinculava as transferências a itens de despesa”.240 Assim, estados e municípios

continuavam com autonomia limitada, pois não podiam decidir onde investir as transferências oriundas do governo central.

Similarmente, a estratégia do governo federal de estabelecimento de empresas públicas estaduais para gerir atividades econômicas consideradas “essenciais”, muitas vezes monopólios naturais (e.g., saneamento, eletricidade, telecomunicações), viabilizou a capacidade de gestão dessas atividades hoje de maneira independente da União. Entre 1961 e 1976, estima-se que tenham sido criadas 119 novas empresas públicas da União, contra 147 novas empresas estaduais.241 É interessante, neste contexto, destacar a opinião de Arrechte: “(...) a criação de

empresas públicas nos estados e municípios foi estimulada pelas políticas emanadas do centro. Várias delas (política de energia elétrica, de saneamento, de telecomunicações, de habitação, etc.) foram desenhadas supondo, de um lado, uma agência federal planejadora e financiadora e, de outro lado, empresas estaduais encarregadas da execução das políticas, sob controle dos governos estaduais”.242 Isso, por sua vez, resultou na formação de um quadro burocrático e de

empresas altamente capacitado, responsável pela formulação e execução autônoma das políticas de recorte estadual e municipal para as quais foram criadas, bem como para apresentar níveis relevantes de inovação na formulação e implementação de políticas.243

No entanto, como assinalado acima, por diversos motivos, a partir dos anos 1980, a capacidade de “entrega” de políticas econômicas e sociais do governo central entrou em crise. Assim, a sociedade passou a ter menos confiança na forma de organização política do Estado, com corpos técnicos altamente insulados em empresas estatais e agências de fiscalização e regulação insuscetíveis à participação popular. Não se lograva formular e executar políticas públicas a níveis satisfatórios, razão pela qual “(...) o reconhecimento e confiança dos contribuintes em relação à necessidade, idoneidade e caráter dos corpos administrativos do

240 ARRECHTE, Marta. O mito da descentralização: maior democratização e eficiência das políticas públicas? Op.

Cit., p. 11.

241 MARTINS, Luciano. Estado Capitalista e Burocracia no Brasil Pós 64. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra,

1985, p. 62.

242 ARRECHTE, Marta. O mito da descentralização: maior democratização e eficiência das políticas públicas? Op.

Cit., p. 11.

Estado brasileiro, que se encontram em uma crise profunda neste momento, (...) cujo epicentro se encontra no nível federal de governo”.244

Dessa forma, os incentivos políticos para a descentralização se originaram como uma reação à maneira pela qual se expandiu governo central. A construção de um novo equilíbrio federativo tornou-se viável por três principais fatores: (i) a consolidação democrática das estruturas político-institucionais brasileiras, cuja maior expressão foi a promulgação da Constituição de 1988, que levou à arena política uma série de atores que passaram a reduzir o poder de comando inteiramente das mãos do Executivo federal; (ii) a crise do Estado Desenvolvimentista e do modelo de federação por ele imposto, marcado pela desarticulação das bases institucionais, fiscais e políticas sobre as quais se assentava;245 e (iii) o fortalecimento institucional de alguns entes subnacionais devido ao processo de descentralização administrativa paradoxalmente implementado no momento de maior centralização do Estado brasileiro.

Nota-se, portanto, que embora formalmente simbolizado na Constituição Federal de 1988, a autonomia de que passaram a gozar entes subnacionais (incluindo-se municípios) é consequência da constante e desordenada construção, desconstrução e reconstrução de instituições brasileiras ao longo da história, em reação a erros de rumo. Portanto, funda-se em bases menos sólidas do que um dispositivo constitucional, como o art. 1º da Constituição, que garante a autonomia a todos os entes federativos, poderia dar a entender. Não por outra, escrevendo na década de 1990, Arrechte já alertava que “Finalmente, as dificuldades políticas com que se defronta o Executivo Federal para coordenar um efetivo programa de reformas estruturais implicam um processo reiterado de sua deslegitimação enquanto instância política reguladora dos conflitos nacionais”.246

244 Nas palavras de Arrechte, “um conjunto de fatores esgarça as bases de sustentação do Estado

Desenvolvimentista e do pacto federativo que o sustentou. Nas últimas décadas, ocorreu um efetivo processo de desconcentração produtiva, com a emergência de novas elites regionais modernas que, conectadas diretamente com o exterior, questionam o poder de regulação do Estado Nacional e de sua expressão política, o governo federal. Pressionada pela necessidade de realizar o ajuste fiscal, de cumprir os encargos da dívida externa e pelos resultados da reforma tributária da Constituição de 1988, a União teve suas bases fiscais fortemente erodidas, ainda que tenha ocorrido um bem sucedido esforço mais recente de elevação da arrecadação. Dada a redução dos investimentos federais em infraestrutura, estes têm sido objeto de violentas disputas inter e intra-regionais. A maior autonomia tributária viabilizada pela Constituição de 1988 tem dado lugar a uma verdadeira "guerra fiscal" entre estados e municípios na busca de captar investimentos produtivos, bem como a um processo de deslegitimação das instâncias reguladoras federais. Finalmente, as dificuldades políticas com que se defronta o Executivo Federal para coordenar um efetivo programa de reformas estruturais implicam um processo reiterado de sua deslegitimação enquanto instância política reguladora dos conflitos nacionais” (ARRECHTE, Marta. Ibid., p. 12).

245 ARRECHTE, Marta. Ibid., p. 11. 246 ARRECHTE, Marta. Ibid., p. 13.

A meu ver, vem ocorrendo um processo de recentralização (embora em intensidades diferentes a depender do momento histórico), que se manifesta em algumas dimensões não exploradas pela literatura. Esse processo tem afetado desproporcionalmente a autonomia – e, portanto, a capacidade de gerir assuntos locais via regulação local – dos governos de grandes cidades brasileiras.