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A COORDENAÇÃO E AUTOCONTROLE TÉCNICO

3 COMPREENDENDO OS DESAFIOS DA ATUAÇÃO CÊNICA NO

3.2 O TEATRO CANTADO

3.2.2 A COORDENAÇÃO E AUTOCONTROLE TÉCNICO

Não é de se espantar que cantores em geral tenham dificuldade em movimentar- se livremente no palco operístico como um ator em uma peça teatral. As exigências musicais, e principalmente as exigências físicas vocais do canto operístico, demandam uma coordenação motora e um controle técnico corporal considerável. O processo de aproximação do cantor com a personagem que interpreta e da busca por uma verdade cênica é dificultado pela exigência de autocontrole sob inúmeros aspectos técnicos que vão desde a marcação exata das entradas, tanto cênicas quanto musicais, à excelência na emissão vocal. 154

No teatro cantado você não é tão livre para criar uma identificação com personagem como seus equivalentes no mundo do filme ou do teatro falado. Se você entra tão completamente nos mistérios da transformação, você irá abandonar as dimensões do tempo, altura, timbre e volume como sugeridas pela partitura e na performance pela presença do regente e orquestra (BURGESS & SKILBECK, 2000, p.149). 155

154 É claro que uma peça teatral também apresenta seus próprios desafios técnicos, principalmente

referente a marcação cênica, porém se um cantor na ópera perde sua entrada, o fluxo musical não pára, continua. O cantor não possui a mesma flexibilidade de improvisar para concertar erros como o ator possui. Por este motivo sua concentração nos aspectos técnicos é sempre tão grande, pois se torna difícil esconder a conseqüência de um erro na ópera.

155 “In sung theatre you are not as free to effect an identification with character as your

counterparts in the world of film or spoken theatre. If you enter too fully into the mystery of transformation, you will abandon the dimensions of time, pitch, timbre and volume as suggested by the score and in performance by the presence of conductor and orchestra”.

Aspectos como a intensidade e afinação da voz, a atenção à sincronicidade com a orquestra, a recordação de um texto em idioma estrangeiro e de todas as entradas precisas, musicais e cênicas, demandam por si só uma coordenação e um autocontrole relevantes. Processar todos esses aspectos no palco unindo a isso a representação viva de uma personagem, em que o cantor atue cenicamente de uma maneira tão orgânica e natural resultando na ilusão de que tudo acontece de forma espontânea, é uma tarefa efetivamente complexa. Por este motivo Balk (1981, p. 9-10) afirma que o ato de cantar e atuar simultaneamente quando realizado por completo é

(...) a mais complexa tarefa estética que um ser humano pode ser convidado a desempenhar. Uma performance bem sucedida em cantar e atuar requer um retrato crível da personagem, um enorme gasto de energia física, uma distribuição vocal extremamente complexa, intensa e tecnicamente difícil, e a compreensão e coordenação de uma partitura musical que é surpreendentemente complexa a não músicos. Além disso, os ritmos dos eventos psicológicos retratados devem ser expandidos e comprimidos de acordo com o fluxo flutuante do tempo. O cantor-ator deve também relacionar-se com os colegas performers, com o regente, e com os sons da orquestra enquanto atua em um estilo físico que é diferente do comportamento costumeiro e que deve também relacionar-se com a alteração musical de tempo. 156

Essa coordenação do controle simultâneo das diversas atividades é uma tarefa básica para a atuação do cantor de ópera e deveria ser desenvolvida durante seu período de preparação.

Segundo Ostwald (2005, p. 17), “em qualquer dado milésimo de segundo você dá sua atenção consciente a apenas uma coisa – é tudo que qualquer humano consegue”157. Quando alguém crê que está fazendo duas coisas atentamente é porque rapidamente ela muda sua atenção de uma coisa para outra. Quando uma tarefa específica exige a atenção do cantor, as outras tarefas devem já ter sido trabalhadas e incorporadas a ponto de não mais necessitar a atenção dele. Por isso, quanto à situação do cantor de unir o ato de cantar e atuar simultaneamente, o autor afirma:

156 “(…) the most complex aesthetic task a human being can be called upon to perform. A realized

singing-acting performance requires a believable portrayal of character, an enormous expenditure of physical energy, an extremely complex, taxing, and technically difficult vocal delivery, and the comprehension and coordination of a musical score which is staggeringly complex to nonmusician. In addition, the rhythms of the psychological events portrayed must be expanded and compressed according to the fluctuating flow of time. The singer-actor must also relate to fellow performers, to the conductor, and to the sounds of the orchestra while acting in a physical style that is unlike customary behavior and that must also relate the musical alteration of time”.

157 (…) “In any given millisecond, you give your conscious attention to only one thing – that’s all

É esta limitação que requer que num primeiro momento você pratique o canto e a atuação separadamente. Apenas depois de adquirir algum controle sobre cada um você pode efetivamente praticar fazendo-os ao mesmo tempo juntos. Depois você precisa ensaiar até que as exigências técnicas combinadas de um papel se tornem semi-automáticas. De outra maneira, eles ainda exigirão sua atenção consciente quando você se apresenta, e a platéia verá você brigando com sua técnica ao invés de experimentar sua personagem vivendo sua realidade. 158

Por isso, muitas tarefas técnicas que o cantor executa em cena devem já estar condicionadas a serem executadas inconscientemente, ou automaticamente, para que tenha a sua mente de certa forma livre para atuar da maneira mais espontânea possível. Lucca (2007, p. 16) ainda salienta que se um cantor tentasse controlar conscientemente cada variante musical em uma ópera de três horas enlouqueceria.

Ademais, a relação entre estas tarefas técnicas e a atuação cênica se mostra uma excelente solução para a coordenação das mesmas sem comprometer a atenção do cantor sobre a personagem. Um exemplo disso seria o cantor estabelecer que, no exato momento onde esteja difícil acompanhar o ritmo preciso da orquestra, ele decidir que o foco da personagem estará em algum lugar da quarta parede159 onde seja possível através da visão panorâmica acompanhar o movimento da batuta do maestro.

Ainda sobre o estabelecimento desta relação entre tarefas técnicas e atuação cênica, Ostwald (2005, p. 62-63) elabora um método no qual o cantor associa a concentração necessária para execução de uma passagem vocal a um comando estabelecido junto à construção dos pensamentos da personagem. Primeiro é preciso que se busque entender a relação da situação dramática com a passagem musical que exige maior fôlego, ou seja, identificar “o que está conduzindo sua personagem a cantar tão agudo, tão grave, tão rápido, ou tão lento”160. Logo, deve-se buscar o que se precisa em termos técnicos para que a passagem se realize com sucesso e condense isto em

158 “ It is this limitation that requires that you first practice your singing and acting separately.

Only after you achieve some control over each can you effectively practice doing them together. Then you need to rehearse until the combined technical demands of a role become semiautomatic. Otherwise, they will still be demanding your conscious attention when you perform, and the audience will see you struggling with your technique rather than experiencing your character living her reality”.

159 “Parede imaginária que separa o palco da platéia”. Utilizada em encenações ilusionistas, ou seja,

aquelas que têm o propósito de manter o público como voyer daquilo que se passa no palco. “O realismo e naturalismo levam ao extremo essa exigência de separação entre palco e platéia, ao passo que o teatro contemporâneo quebra deliberadamente a ilusão, (re)teatraliza a cena, ou força a participação do público” (PAVIS, 2007p. 315-316). O ator utiliza a quarta parede através de sua imaginação para não sentir-se compelido a desviar seu foco da platéia. Para um aprofundamento em como é possível o artista beneficiar-se com a utilização da quarta parede, ver Hagen (2007, p. 145-152).

comandos usando poucas palavras, como por exemplo, ‘respiração’, ‘bocejo’, ‘apoio’, etc. Depois disso, determinar o momento exato, a nota ou palavra, que é necessário ser utilizado o comando a si mesmo para que a devida passagem aconteça com eficiência. Finalmente, repete-se este trecho inúmeras vezes, buscando substituir o comando técnico por algum pensamento da personagem, como por exemplo, ‘sim!’, ‘céus!’, ‘Ah!’, etc. Desta forma, Ostwald garante que o comando técnico “se tornará parte de um reflexo colocado em ação pela nota ou texto e será incorporado aos diálogos internos da personagem”161. Ainda pode-se usar este mesmo mecanismo para passagens nas quais se faz notar uma maior carga dramática. Escolhe-se uma imagem que estimula certo sentimento e logo se identifica em que momento exato ela deve ser projetada. Por conseguinte, repete-se inúmeras vezes o mesmo trecho para que esta imagem se una aos pensamentos da personagem. A vantagem em se utilizar deste mecanismo para unir os comandos técnicos aos pensamentos da personagem é que a atuação mantém um fluxo contínuo e não se dissolve pela necessidade de mudança na concentração.

Alguns cantores, principalmente os iniciantes, sentem-se desconfortáveis em cantar e movimentar-se ao mesmo tempo. Muitas vezes esse receio ocorre devido a uma insegurança em deixar aquilo que já se praticou por muito tempo se desenrolar de maneira automática. É importante o cantor também praticar o desprendimento de sua atenção na técnica vocal para que saiba exatamente onde a execução vocal e musical já ocorre de maneira inconsciente e automática e onde ainda é preciso pensar em termos técnicos, ou onde é preciso elaborar um mecanismo de associação como o citado acima. Sabendo disso, o cantor pode mais facilmente libertar-se corporalmente e mentalmente para representar sua personagem, aperfeiçoando então a relação existente entre a música que executa e a representação cênica.

Para isto, Lucca (2007, p. 37) aconselha que o cantor também exercite o ato de cantar enquanto estiver fazendo suas atividades cotidianas. Desta maneira, o cantor compensaria o costume de cantar parado com sua atenção estritamente voltada para a resolução dos problemas vocais e musicais e exercitaria o automatismo técnico necessário para liberar sua mente para cantar e atuar simultaneamente.

É possível também que o cantor consiga vencer problemas técnicos fazendo com que a atuação cênica promova a energia necessária para a execução vocal, associando os

161 (…) “will become part of a reflex set in motion by the note or text and will be incorporated into

desafios vocais à representação cênica. Stanislavski (apud PEIXOTO, 1986, p. 50) chamava a atenção de seus alunos para este fato:

e como você poderá entrar na vida do ritmo do compositor se está claro que você está com medo das notas altas? (...) faça com que as ações físicas corretas ajudem você a obter as emoções corretas. Parta delas e a sua voz lhe responderá. (...) quando estiver vocalizando e tentando alcançar algumas notas de transição, tente sempre associar problemas psicológicos com o canto, para não cantar notas vazias mas sim notas-pensamentos. (...) máquinas que cantam não servem para o público nem para a cultura, o que queremos é gente viva, artistas que cantam.

O costume de visualizar a sensação vocal através de gestos é o maior inimigo para a atuação cênica do cantor lírico. Apesar de estes gestos serem válidos e eficientes para que se encontre mais facilmente o som vocal que se almeja, eles nunca podem virar vícios corporais ou uma espécie de ‘bengala’ para o canto. O cantor deve trabalhar sua técnica vocal junto a um corpo neutro, para que consiga desenvolver-se cenicamente e gradativamente romper os limites existentes entre certos movimentos e posturas e o ato de cantar. Igualmente, gestos típicos de cantores adquiridos pelo hábito de uma atuação generalizada demonstram ser grandes obstáculos para o desenvolvimento cênico do cantor.

Sem dúvida uma das críticas mais pertinentes ao espetáculo de ópera, como sinônimo de falsidade, é o absurdo comportamento cênico do cantor: um amontoado de convenções abstratas que visualmente nada significam. Preocupados exclusivamente com a voz e a música, parecem ignorar o óbvio: estão sendo não apenas escutados mas também vistos. E observados. O mais comum são posturas ridículas: um pezinho levantado um pouco atrás do corpo, que se balança segundo um ritmo que simplifica ao mínimo a música que o acompanha. E gestos no mínimo insólitos: um ou dois braços junto ao peito; braços ligeiramente abertos diante do peito, como se sustentassem uma pequena criança ou carregassem um pequeno pacote invisível; ou que se juntam, como se estivessem aprisionando um pássaro prestes a voar ... Não há idéia concreta que resista a esta constrangedora exibição do nada (PEIXOTO, 1986, p. 48).

Por este motivo, quando Jorge Lavelli dirigia os cantores procurava “inquietá-los”, na intenção de fazer com que eles perdessem “as certezas e o equilíbrio de gestos ou movimentos cultivados pelas tradições”, assim, obrigando-os a encontrar soluções inesperadas e contribuindo para “colocar o ator em dificuldades, como ponto de partida para uma nova postura criativa” (PEIXOTO, 1986, p. 48).

Como Helfgot e Beeman (1993, p. 34) afirmam, em um espetáculo operístico “mesmo se um cantor decidir não usar movimento na interpretação de um momento na partitura, esta falta de movimento tem que vir através de uma decisão concreta de não se mover e não através da paralisia de não saber o que fazer ou como fazer”162. Muitos cantores mostram-se resistentes a cantarem em certas posições ou enquanto se movimentam em certa velocidade por não conhecerem onde se encontram seus próprios limites entre o ato de cantar e atuar. Esses limites são particulares de cada profissional e a conquista em ampliar a sua habilidade de lidar simultaneamente com as dificuldades técnicas e os desafios cênicos é algo a ser conquistado gradativamente. No entanto, é de extrema importância conhecer os próprios limites para que se possa expandi-los. Por isso, aconselha-se a todo cantor reservar parte do seu estudo de canto para tentar cantar em diversas posições e movimentando-se em diversas velocidades, para que gradativamente ele consiga conhecer a si próprio e perceber quais ajustes são necessários desenvolver para ampliar a sua capacidade em unir estas duas atividades. Helfgot e Beeman (1993, p. 29) ainda reclamam que a maioria dos cantores pratica suas árias e cenas de uma forma repetida e muitas vezes improdutiva.

Ao invés de repetir as árias mil vezes com o resultado de fixar problemas vocais, cantores devem tratar a comunicação da ária como um problema de cantar/atuar. Um método é ver como muitas variedades de expressões faciais podem ser usadas na ária. Experimentação com gestos e movimentos é também extremamente útil. Cantar a ária sentado, deitado de costas, ou enquanto caminha pela sala cria um estabelecimento diferente de perspectiva. Adicionar diferentes tons de dinâmicas ou cores vocais adiciona uma flexibilidade vocal. Em resumo, descobrir quantos modos diferentes a ária pode ser cantada efetivamente pode ajudar tremendamente a performance. Mais ainda, muitos problemas vocais desaparecem quando tratados desta maneira, porque o cantor pára de tratá-los como problemas da voz e começa a tratá-los como problemas da performance. 163

Stanislavski (1989, p. 512) observa que o cantor trabalha ao mesmo tempo não com uma, mas três modalidades de arte: a vocal, a musical e a cênica, e por isso possuí à sua

162 “Even if a singer decides not to use movement in interpreting a moment in the score, this lack of

movement has to come through a concrete decision not to move and not though paralysis from not knowing what to do or how to do it”.

163 “Instead of repeating arias a thousand times in order to fix vocal problems, singers should try

treating aria delivery as a singing/acting problem. One method is to see how many varied facial expressions can be used in the aria. Experimentation with gesture and movement is also extremely useful. Singing the aria seated, on one’s back, or while walking around the room creates a different set of perspectives. Adding different shades of dynamics or vocal color aids in vocal flexibility. In short, discovering how many different ways the aria can be sung effectively can help tremendously in perfecting performance. Moreover , most vocal problems disappear when treated this way, because the singer stop treating them as problems of the voice and starts treating them as problems of performance”.

disposição inúmeras possibilidades de influenciar o espectador que faltariam aos atores dramáticos. No entanto, estas três modalidades disponíveis devem “ser fundidas e orientadas para um fim comum”. Se uma delas influenciar o espectador enquanto outras dificultam tal influência o resultado será o indesejável. “Uma modalidade de arte destruiria o que a outra viesse a criar”. Igualmente, Balk (1981, p. 13) afirma que é a preparação da integração entre estas tantas áreas de conhecimento que preparará o jovem performer para as suas futuras produções. Nenhum aspecto é mais importante que outro, todos devem ser desenvolvidos e a tarefa de relacioná-los entre si deve ser ressaltada por parte de cada profissional encarregado por sua área específica.