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A DURAÇÃO DAS CENAS E A DILATAÇÃO TEMPORAL

3 COMPREENDENDO OS DESAFIOS DA ATUAÇÃO CÊNICA NO

3.1 A PRESENÇA DETERMINANTE DA MÚSICA NA CONSTRUÇÃO DAS

3.1.4 A DURAÇÃO DAS CENAS E A DILATAÇÃO TEMPORAL

Diferentemente de uma peça teatral, o tempo de duração de uma ópera inteira, a grosso modo, já é pré-estabelecido pelo tempo da composição musical, pois a velocidade das falas e ações das personagens está quase sempre determinada pela música. Consequentemente, a duração das cenas também é determinada pela duração do número ou trecho musical, e assim, a velocidade no fluxo dos acontecimentos também. Citando algumas teorias do encenador suíço Adolphe Appia, Peixoto (1986, p. 49) explica melhor a questão do ‘tempo’ e ‘duração’ afirmando que

... a música fornece não apenas o elemento expressivo “mas também fixa peremptoriamente a ‘duração’: podemos afirmar que do ponto de vista da representação a música é o ‘tempo’; e com isso não me refiro a ‘uma duração no tempo’ mas sim ao próprio tempo”. (...) no teatro falado é a vida que fornece exemplos de tempo e duração ao ator, o autor apenas fixa a palavra, enquanto que na ópera (...) a duração e o tempo são fixados pela partitura: e são impostos, o que altera a duração da palavra, a proporção dos gestos, dos movimentos, de todo o espetáculo e portanto do próprio espaço cênico.

Como também explica Bean (2007, p. 168), enquanto os atores podem modificar a velocidade das suas falas e ações, variando o tempo de cada cena de acordo com a sua própria interpretação, “os cantores são aprisionados ao tempo e às mudanças de tempo da canção”126. Ao observar uma ária de andamento lento, como por exemplo, a ária

Porgi amor da personagem Condessa de Almaviva da ópera Le Nozze di Fígaro de

125 Grifo no original. (...) “Don’t try to decide intellectually or logically what the best physicality is

for your character. Just get up, put on the music and walk around the room”.

Mozart, compreende-se melhor esta característica específica da duração da cena na ópera. A velocidade com que a personagem se comunica, a sustentação de notas longas e a repetição da mesma mensagem verbal durante um determinado tempo equivalem a uma dilatação no tempo real dos acontecimentos. A partir disso, é possível observar uma das maiores características da ópera, a extensão do tempo.

Burgess e Skilbeck (2000, p. 81-82) também comentam que enquanto a construção cênica de uma personagem elaborada por um ator no teatro falado geralmente se baseia nos ritmos naturais do dia a dia de ações como caminhar, falar, comer, rir, chorar, pensar, sentir, e tantas outras, na ópera o ritmo destas ações são frequentemente expandidos ou comprimidos pela estrutura musical, principalmente, o ritmo dos pensamentos e sentimentos da personagem. O exemplo mais comum disso é a mudança de recitativo para ária. No recitativo os pensamentos e sentimentos estão em constante mudança acompanhados de ações e na ária eles permanecem focados em reflexões sobre alguns poucos eventos, e por isso suspendem o tempo real da ação. Balk (1981, p. 9) acrescenta que na ópera “o tempo real do teatro e o tempo ideal da música mesclam e expandem a completa continuidade do fluxo de tempo desde sua aceleração e sua velocidade cronológica real até a sua total suspensão”127. Há um constante contraste entre o fluxo dos acontecimentos em uma progressão linear e a expansão lírica (BALK, 1981, p. 78).

Peixoto (1986, p. 51) ainda ressalta que Stanislavski compreendia perfeitamente a estilização imanente ao gênero operístico, onde a atuação cênica do cantor

(...) não se resume na apreensão mecânica dos métodos de trabalho do teatro falado, ainda que possam ser de indispensável utilidade. A música impõe outro tipo de exigência. Assim como a “duração” musical não impede mas sim impõe sua irrecusável lógica interna. Para mencionar apenas um detalhe: freqüentemente a ópera exige instantes mais estáticos do que seria razoável para o tempo dramático. A partitura, nestes casos, organiza-se em função de uma expressividade própria. Cabe ao intérprete preencher este tempo estático com uma verdade vigorosa e poética, integrada ao espetáculo como um todo: não serão, assim, instantes de vazio, mas o contrário. Nada disso é incompatível com os valores cênicos, como sustentam alguns: trata-se pura e simplesmente de rever conceitos. E investigar a teatralidade que encerram.

Balk (1981, p. 79) menciona que “como regra geral, o tempo irá fluir naturalmente, de maneira horizontal em situações de conjuntos e irá expandir verticalmente em

127 (...) “the real time of theater and ideal time of music mingle and span the complete continuum of

situações de árias”128. O autor cita o conjunto final do Ato II de Le Nozze di Fígaro de Mozart, como exemplo de conjuntos que levam o enredo para frente mediante o fluxo contínuo dos eventos que ocorrem nestes números, 129 mas há também incontáveis conjuntos que possuem um caráter reflexivo. Não podemos esquecer os finales dos Atos I das óperas cômicas de Rossini, os chamados concertati di stupefazione, nos quais as personagens refletem sobre o conflito que se desenvolveu até então e manifestam cada uma a sua maneira o seu estado emocional diante da situação, encerrando com o fechar das cortinas. Sendo assim, estes conjuntos também equivaleriam a uma extensão do tempo real.

Quanto à duração desses momentos de suspensão temporal na ópera, Balk (1981, p. 9) menciona que o cantor constantemente “é deixado sozinho no palco para sustentar a ação por cinco ou dez minutos”130, fato que raramente acontece nas peças de teatro 131 (a não ser em monólogos realmente extensos), porém essa é a situação básica da ópera estruturada com a presença de árias. Esses momentos poderiam apresentar um desafio quanto à motivação emocional e concentração do cantor para sustentar a dramaticidade neste extenso período de tempo. Burgess e Skilbeck (2000, p. 100-101) sugerem que uma das consequências destas passagens desaceleradas é a dificuldade que o cantor encontra em sustentar sua energia dramática e, comentam que nesses momentos o cantor deveria aumentar seu fluxo de energia para que não impliquem em um esmorecimento de sua personagem. 132

Não só a energia cênica do cantor se compromete nesses momentos, mas também a sua concentração. Bean (2007, p. 170) aponta que:

No canto, nossas palavras são desaceleradas através da extensão do tempo. O que acontece a nossos pensamentos? Eles querem saltitar rapidamente em tempo real! Por causa desta discrepância temporal, quando nós cantamos, nossos rápidos pensamentos têm uma dificuldade em conectar com nosso texto lento-meloso. Ao invés disso, a mente fica muito mais livre para se distrair na performance. É necessário, um aumento na concentração para manter a mente focada na tarefa dramática à mão e conectada às palavras da nossa canção. 133

128 “As a general rule, time will flow in a natural, horizontal manner in ensembles situations and

will expand vertically in aria situations”.

129 Sobre conjuntos que levam a ação para adiante, ver também Kerman (1990). 130 (...) “is left alone on stage to sustain the actions for five or ten minutes”. 131 Pelo menos nas peças de teatro tradicionais.

132 Contudo, esta solução pode apresentar o risco do cantor buscar o sentimento pelo sentimento,

resultando em tensão corporal.

133 “In singing, our words get slowed down through time extension. What happens to our thoughts?

They want to keep bouncing along quickly in real time! Because of this temporal discrepancy, when we sing, our rapid thoughts have a hard time connecting to our molasses-like text. Instead, the mind feels

Na tentativa de solucionar estas dificuldades que a extensão temporal traz à atuação cênica na ópera, Balk (1981, p. 79) sugere que o cantor encontre “progressão nos momentos de expansão lírica e um sentido de profundidade lírica nos momentos de desenvolvimento narrativo”134. O autor complementa que o texto já teria sua própria progressão psicológica que às vezes faz cumprir o tempo de extensão musical, mas nem sempre isto ocorre e, quando faltam as palavras, ou quando elas constantemente se repetem, geralmente este senso de progressão é dado pela música.

Assim, a organização dos elementos musicais pode criar uma ordem de motivação através de um prévio estabelecimento de subtextos e pensamentos internos da personagem adaptados a frases e trechos musicais. Deste modo, seria possível o cantor traçar variações dentro do humor e sentimento geral pré-estabelecido pela ária, mostrando o mesmo sentimento de várias maneiras, como as diversas gradações que uma única cor possui. Isto deixaria a experiência temporal mais dinâmica através de uma constante re-motivação da personagem, e evitando a monotonia interna de estar constantemente sob a condição de um único sentimento ou ação interna. Neste caso, o desenvolvimento musical funcionaria como um fio condutor motivacional para o cantor continuar presente como sua personagem, sem se distrair.

Bean (2007, p. 169) ainda defende que estes momentos de extensão temporal podem ser “uma benção, permitindo ao cantor ir mais fundo e mais longe dentro do sentimento da canção do que ele poderia ir num monólogo falado”135. Isto se deve ao fato da música cumprir a mesma função da poesia dramática no teatro, como afirmado anteriormente, ou seja, a de estimular a imaginação do público e, sem dúvida, também a do intérprete. A linguagem musical rompe a barreira da intelectualidade necessária na linguagem verbal, e por meio disso, o cantor de ópera pode mais facilmente concentrar- se e envolver-se com as circunstâncias emocionais da personagem.

Outra solução para estes momentos de extensão temporal seria criar uma ação secundária para a personagem, ou seja, realizar uma atividade cotidiana enquanto canta sua ária. Para se entender melhor esta questão, comparemos as árias ou momentos de

much freer to be distracted in performance. Increased concentration is needed to keep the mind focused on the dramatic task at hand and connected to the words of our song”.

134 (...) “progression in the moments of lyric expansion and a sense of lyric depth in the moments of

narrative development”.

135 (...) “a blessing, enabling the singer to go deeper and longer into the feeling of the song than he

suspensão temporal na ópera com os monólogos no teatro falado. Para a atriz Uta Hagen (2007, p. 161-162), um monólogo consiste sempre em uma “personagem falando consigo mesmo em voz alta ou com personagens ausentes ou objetos ao redor em tempo e lugar determinados, por uma razão específica num momento de crise”. Sendo o conteúdo verbal do monólogo os pensamentos das personagens, “às vezes, é trabalho do ator persuadir a si – e ao público – de que essas palavras, ou algumas delas, poderiam de fato ser inaudíveis”.

A autora ainda observa que o principal motivo que nos impulsiona a falarmos com nós mesmos é a necessidade de ganhar controle sobre as circunstâncias, ou seja, “para lidar com o tédio de uma tarefa rotineira ou chata; para lidar com o fato de sermos aturdidos pelo tempo ou por outras pressões, como frustração e problemas emocionais etc” (HAGEN, 2007, p. 162-163). Assim, aconselha o artista a determinar o que a personagem está fazendo fisicamente enquanto conversa consigo mesmo, pois “uma vez determinada a tarefa física, será fácil entrar em contato com os objetos internos e externos que vão impulsioná-lo à verbalização” (HAGEN, 2007, p. 166).

Ryngaert (1996, p. 10-11) observa que nas peças teatrais isto é um recurso comum. Segundo o autor,

A encenação moderna tem cada vez mais assumido o que pertence à ordem do “agir”, fazendo com que a personagem execute várias tarefas na representação, mesmo que estas não tenham ligação direta com o que é dito. Não é raro vermos espetáculos nos quais uma personagem se entrega a um longo monólogo ao mesmo tempo que executa trabalhos de limpeza ou de cozinha, sem relação visível com o discurso. É certo que há uma “ação” em cena, mas ela não decorre de uma necessidade evidente inscrita no texto.

Hagen (2007, p. 166) comenta que estas “atividades podem ser temporariamente detidas pela vida verbal”, e a personagem pode inclusive ser desviada de uma tarefa para outra. O que importa aqui é que a inclusão destas ações físicas secundárias forneceria credibilidade de que o que está sendo dito, ou cantado, poderia estar sendo pensado, e estes pensamentos direcionam o modo como estas ações são executadas tendo assim o artista a fisicalidade da personagem como ferramenta expressiva, não somente a voz e as palavras. 136

136 É claro, a opção por estabelecer uma tarefa física enquanto o cantor canta sua ária deve ser

decidida junto ao diretor de cena, de acordo com a proposta da encenação, pois como Balk (1981, p. 80) afirma, existem duas escolas de encenação operística: uma que enfatiza “a progressão no tempo real”, o

A ação exterior secundária dá energia física à personagem, fornecendo também uma base mais sólida para os artistas sentirem-se nas circunstâncias do enredo e auxiliando- os quanto à sustentação de sua energia no palco bem como quanto a sua concentração na cena. Junto às ações secundárias, é possível criar uma progressão no sentimento. Como observa Lucca (2007, p. 117), por exemplo, no dueto de Marcelo e Rodolfo no Ato IV de La Bohème de Puccini, Rodolfo está escrevendo e Marcello pintando enquanto tentam esquecer o sentimento que ambos sentem sobre suas amadas. Contudo chega o momento em que é impossível resistir e a intensidade do sentimento força-os a parar com suas atividades, exatamente como aconteceria na vida real.

A vantagem da inclusão de uma ocupação secundária às personagens é que esta solução aproximaria o espetáculo de ópera a uma estética mais naturalista proporcionando mais dinamismo ao espetáculo em si.