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3 COMPREENDENDO OS DESAFIOS DA ATUAÇÃO CÊNICA NO

3.2 O TEATRO CANTADO

3.2.1 A ESTILIZAÇÃO DO TEXTO DRAMÁTICO

Como visto anteriormente, a ópera é um gênero teatral estilizado e que inevitavelmente não consegue esconder sua teatralidade. Mesmo quando a proposta da própria obra é ser fiel à fonte literária, 141 ou quando a encenação se dispõe a aproximar- se de uma estética naturalista, o fato das personagens se expressarem através da forma estilizada do canto lírico impossibilita retratar no palco uma cena ou situação como seria exatamente na vida real, pois ninguém na vida real se comunica cantando como as personagens de ópera. A utilização do canto lírico como um dos elementos fundamentais do gênero operístico faz com que a ópera não tenha a mesma capacidade de aproximação com a representação naturalista como as peças teatrais possuem. 142 Essa característica da ópera pode trazer ao cantor uma dificuldade em identificar-se com sua personagem ou em sentir-se verdadeiro nas condições do gênero operístico.

No entanto, Bean (2007, p. 167) traz uma solução útil para que o cantor possa compreender e aceitar a presença do canto na ópera como uma expressão verdadeira e natural das personagens, mesmo sendo pensada dentro dos limites da teatralidade imanente ao gênero. O autor afirma que apesar do canto ser uma “comunicação estilizada não encontrada comumente na conversação pessoal cotidiana”143, o público aceita esta convenção estilizada no teatro pelo fato do canto ser “maior que a fala”144. Felsenstein (apud BEAN, 2007, p. 167) ainda explica que:

A música é justificada uma vez que a fala não é mais suficiente, “porque é uma necessidade de comunicação anormal, elevada”. Em outras palavras, a

141 Como por exemplo as óperas Pelleas e Melissandre de Debussy e Wozzec de Berg que não

possuem libreto, o texto das peças teatrais de Materlinck e Buchner respectivamente foram preservados.

142 Sabe-se, certamente, que não são todas as peças e espetáculos teatrais que se predispõem a uma

representação naturalista, porém parte-se aqui da observação que o teatro falado maneja infinitamente com mais facilidade com este tipo de representação. Observa-se também que até mesmo os musicais conseguem manejar melhor com a representação naturalista que a ópera devido à utilização de um estilo de canto menos estilizado e mais próximo ao canto popular.

143 (...) “stylized communication not commonly found in everyday personal conversation”. 144 (…) “bigger than speaking”.

escala emocional exigida a um performer operístico é intensificada pela música e vai além do que é exigido para uma peça de teatro. 145

Por este motivo, a necessidade de uma personagem se comunicar através do canto deve ser mais forte que a necessidade de se comunicar através da fala, pois como complementa David Craig (apud BEAN, 2007, p. 168), a “música dá à fala uma dinâmica muito maior”146. Ou seja, o que quer que o cantor cante deve se entender como algo extremamente importante para a personagem, caso contrário, ele poderia apenas falar 147 (BEAN, 2007, p. 168). Ostwald (2005, p. 86) também ressalta que:

A música é usada no teatro porque ela tem uma fantástica habilidade de elevar a expressão dos sentimentos. Ela pode criar animação e adulação para uma personagem; pode transformar simples palavras na mais profunda experiência. Seja como for, a música, e o canto, em particular, requerem fortes motivações para justificar sua presença, o que é o porquê dos enredos das peças de teatro-musical serem tão cheios de crises. 148

Burgess e Skilbeck (2000, p. 120) complementam que a estilização do texto pela música no gênero operístico cria uma nova realidade que é, ao mesmo tempo, conectada e independente da realidade da vida real e que permite “esfumaçar a linha entre o mundo cotidiano e o maravilhoso”149. O performer da ópera é libertado pela estilização da música e do canto para expressar a personagem mais livremente através de “diferentes planos de consciência, entre os mundos da razão e do sentimento, realidade e surrealidade, o privado e o público, o subconsciente e o consciente”150. Dessa maneira, o performer é responsável por incluir em sua atuação o desejo da personagem de se expressar com a expressão da própria arte. Deve encontrar um modo de apresentar quem é a personagem comparativamente à vida real através da expressão própria das convenções artísticas estilizadas do gênero.

145 “Music is justified once speech is no longer sufficient, ‘because there is an abnormal,

heightened need to communicate’. In other words, the emotional scale demanded from an operatic performer is intensified by the music and goes beyond what is called for in a play”.

146 (...) “Music gives speech a greater dynamic”.

147 No caso específico da ópera o verbo ‘falar’ também pode se entender como ‘recitar’ ou ‘falar

através de recitativos’, relativo à convenção recitativo-ária.

148 “Music is used in the theater because it has an amazing ability to heighten the expression of

feelings. It can create excitement and adulation for a character; it can turn simple words into a deeply moving experience. However, music, and singing in particular, requires strong motivations to justify its presence, which is why the plots of music-theater pieces are so filled with crises”.

149 (...) “to blur the line between the worlds of the daily and the marvelous”.

150 (…) “different planes of consciousness, between the worlds of reason and feeling, reality and

A personagem sempre deve ter um motivo significativo para cantar suas árias, duetos e conjuntos. Dessa forma, Lucca (2007, p. 130) aconselha o cantor a perguntar- se: “O que aconteceu antes da ária? Que emoção, informação, ou regras mudaram para fazer isto impossível de continuar sem usar esta forma de expressão poderosa e pessoal?”151. Como por exemplo,

- O que sua Violetta sente que leva você a cantar ‘é tardi’ (...) com aquelas alturas enquanto deitada no seu leito de morte?

- O que sua Tosca quer de Deus que pode apenas ser suplicado pelo canto

Vissi d’arte?

- Qual é o sentimento específico do seu Conde de Almaviva que improvisadamente se lança na serenata de amor Ecco ridente in cielo? (LUCCA, 2007, p. 12). 152

O cantor deve estudar a relação existente entre as árias ou trechos mais estilizados de sua personagem e os acontecimentos que antecederam estes trechos, e a partir disso, traçar motivações específicas para sua personagem ter intensificado suas emoções. Ostwald (2005, p. 87) acrescenta que como a música irá delinear estas fortes emoções é tudo uma questão de estilo, porém algo se repete em todos os estilos e formas de teatro- musical.

A escolha do acompanhamento musical é parcialmente uma questão de estilo e convenção. Contudo, se a música é um recitativo, ária, ensemble ou interlúdio orquestral, ou se está em um musical, operetta, ou ópera, ela quase sempre aumenta em densidade e ilustra mais fortemente emoções em sincronia com as palavras e ações quando a tensão emocional aumenta. 153

Quanto mais fortes vão se tornando os sentimentos das personagens, mais densa se torna a música cantada. A simples fala se torna canção, o recitativo secco torna-se

recitativo acompagnato, a ária transforma-se em cabaletta e assim por diante.

151 “What happened just before the aria? What emotion, information, or stakes changed to make it

impossible to continue without using this personal and powerful form of expression?”.

152 Grifos no original.

“ - What is your Violetta feeling that demands you sing ‘è tardi’ (…) with those pitches while

lying on your death bed?

- What does your Tosca want from God that can only be beseeched by singing Vissi d’arte? - What are the specific feeling of your Count Almaviva that improvisationally release themselves in your love serenade, Ecco ridente in cielo?”

153 “The choice of musical accompaniment is partly a matter of style and convention. However,

whether the music is for a recitative, aria, ensemble, or orchestral interlude, whether in a musical, operetta, or opera, it almost always increases in density and more forcefully illustrates emotions in synchrony with the words and action as the emotional tension rises”.

Assim, para que um cantor consiga atingir em sua atuação uma ‘verdade cênica’ é fundamental que ele não se fixe em uma concepção extremamente realística da ópera como obra teatral. É preciso partir do princípio de que as personagens na ópera se expressam através do canto, e a estilização do texto significa uma intensificação dramática. Pode não ser natural para uma personagem de uma peça teatral em uma encenação naturalística expressar-se cantando, mas para um personagem de ópera é perfeitamente natural, coerente e verdadeiro devido às convenções do gênero já aceitas pelo público.