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CAPÍTULO 3. DAVI CONTRA GOLIAS: CAMPONESES versus OLIGOPÓLIOS

3.1. A crítica à privatização dos sistemas agroalimentares

Laymert Garcia dos Santos em seu texto Tecnologia, Natureza e ‘Redescoberta do Brasil’ (2003), utiliza a ideia de “obsessão do descompasso” (cunhada por Alfredo Bosi) para abordar a relação que países como o Brasil estabelecem com as sociedades capitalistas ditas avançadas, uma forma de relacionar-se de certo modo imitativa e subalterna que vem gerando “desintegração” cultural e ambiental. Segundo o autor, “a obsessão do descompasso parece ser a derradeira manifestação da mente colonizada” (Santos, 2003, p. 51). Esse cenário “globalizado/colonizado” latino-americano tem influenciado diretamente os modelos agrícolas adotados e, conseqüentemente, a forma de pensar a relação entre desenvolvimento econômico e meio ambiente na região.

Para adensar esta análise sobre as conseqüências perversas de concepções de desenvolvimento econômico e social que são mimetizadas ou impostas por países de “capitalismo central” aos países de “capitalismo tardio” de uma maneira mais próxima ao tema deste trabalho, introduzirei a seguir as contribuições de Shiva (1995, 2001 e 2008), autora que retomarei em outros momentos deste trabalho. Para Shiva, a manutenção de situações de pobreza nos países do Sul se deve, principalmente, às novas formas de apropriação da natureza e dos conhecimentos gerados pelo Sul. Shiva considera que os modelos comerciais e as regulamentações internacionais (principalmente os direitos de propriedade intelectual) são um instrumento central na atualidade para a apropriação econômica e social desigual e predatória.

A sua obra discute as conseqüências negativas desse processo, principalmente para os povos do Sul e suas mulheres. Segundo ela, o atual paradigma de globalização apresentaria graves distorções, nele as abelhas roubam o pólen, a biodiversidade e sociobiodiversidade dificultam as grandes plantações e os campesinos são inimigos, ameaças que precisam ser combatidas com tecnologias violentas e imposição de tratados comerciais internacionais. O principal tratado internacional com este caráter é o chamado Acordo TRIPS (Aspectos Relacionados ao Comércio e à Propriedade Intelectual), que estabeleceu as bases para os processos de patenteamento35 que permitem incluir a patente sobre variedades comercialmente cultiváveis e sementes geneticamente modificadas (GM).

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As patentes são concessões governamentais de um monopólio temporário sobre uma invenção particular, geralmente por um período de 20 anos. Durante esse período o detentor da patente determina quem pode ou não

Para Christoffoli, autor da tese doutoral O processo produtivo capitalista na agricultura e

introdução dos OGMs: O caso da soja Roundup Ready (RR) no Brasil, o modo como se deu a

alteração da legislação internacional sobre propriedade intelectual teve por objetivo assegurar ao capital a apropriação do valor-trabalho gerado na agricultura. “À medida que se obtiveram resultados no campo científico-tecnológico para a geração dos OGMs, as companhias de biotecnologia buscaram assegurar a captura de ganhos extraordinários” (CHRISTOFFOLI, 2009, p. 60).

Para Shiva, estaria em curso uma verdadeira “guerra” pela produção e controle do alimento e da natureza, conseqüência inevitável de um modelo de globalização econômica coorporativa, no qual umas poucas empresas buscam controlar os recursos da terra e “transformar o planeta em um supermercado onde tudo esteja à venda” (SHIVA, 2008, p. 8).

Ainda com a intenção de promover um diálogo com as vertentes de pensamento crítico ao modelo de produção agroindustrial, é importante ressaltar que existe um conjunto de forças resistentes, voltadas à “democratização da agricultura e a construção de sistemas agroalimentares sustentáveis e equitativos” (ISHII-EITEMAN, 2013). Este conjunto não é formado apenas pelos movimentos sociais camponeses, ONGs e consumidores descontentes. Mas também por um número crescente de cientistas independentes e especialistas em desenvolvimento que, por vezes, integram agências e organizações internacionais (mantendo uma postura crítica e resistente aos transgênicos, mesmo que esta não seja a postura oficial ou direcionamento mais forte de suas instituições) como: IAASTD (International Assessment of Agricultural Knowledge, Science and Technology for Development); UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento); e a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura).

Segundo Marcia Ishii-Eiteman (2013), esta comunidade global de especialistas tem como prioridades fortalecer o segmento da agricultura familiar (com a revitalização de economias rurais locais e regionais) e ampliar a destinação de recursos para o apoio a sistemas agrícolas biodiversos e ecologicamente resilientes36. Além de apontar para a importância do estabelecimento de acordos comerciais mais justos e de regulamentação mais rígida das grandes fazer, usar, ou vender a sua invenção. Segundo Christoffoli (2009, p. 62), o TRIPS estabeleceu a base para concessão de direitos de patente para os OGMs e outros produtos da biotecnologia. “(...) é um sistema que desconsidera os conhecimentos e desenvolvimentos produzidos por comunidades tradicionais, pelos povos indígenas, ou pelos agricultores”, e portando, os acúmulos possíveis depois de séculos de experiências. Os conhecimentos tradicionais são enquadrados no que a literatura inglesa conceitua como “commons” e não constituem objetos de proteção.

corporações multinacionais (ISHII-EITEMAN, 2013, p. 29). A autora aponta como principais obstáculos37 para a transformação destes sistemas, a concentração corporativa nos sistemas alimentares e agrícolas e a influência corporativa sobre as políticas públicas. A crescente concentração dos mercados em várias atividades agrícolas, juntamente com a falta de regulamentação do setor, gerariam níveis sem precedentes de controle corporativo do sistema agroalimentar, com impactos adversos para a agricultura familiar em todo o mundo.

A forma como se configura o atual sistema alimentar tem conseqüências diretas relativas à quantidade e qualidade do acesso ao alimento. Sobre este tema é emblemática a declaração de Maria Emilia Pacheco, presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), durante o Seminário Internacional “Alimento e Nutrição no Contexto dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio”, realizado no dia 7 de maio de 2014. Segundo a presidente do Consea38, entre os fatores responsáveis pela alta no preço dos alimentos e as restrições de acesso pelos grupos sociais mais vulneráveis estão a tomada das áreas cultiváveis para o plantio de biocombustíveis, mudanças climáticas e, principalmente, a especulação realizada pelos mercados financeiros com os alimentos: “A questão da ética é importante em relação aos alimentos. Ao invés de vivermos a era da ética, vivemos no século da biotecnologia”.

Por fim, gostaria ainda de expor um último ponto levantado por Marcia Ishii-Eiteman que está diretamente relacionado ao tema deste trabalho, o seu entendimento do “empoderamento das mulheres agricultoras como uma condição para a democratização dos sistemas agroalimentares”. O emponderamento das mulheres é apontado pela autora com uma estratégia fundamental para democratização dos sistemas agroalimentares. Este entendimento parte do reconhecimento por parte de pesquisadores e pesquisadoras independentes e agências internacionais do protagonismo das mulheres agricultoras para uma mudança paradigmática nas formas de produzir alimentos. O tema da centralidade do empoderamento das mulheres será retomado em capítulos posteriores.

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Os outros obstáculos colocados pela autora são: as falhas do mercado e a necessidade de contabilizar todos os custos envolvidos; os impedimentos legais para a pesquisa e prática agrícola sustentável; e preconceitos institucionais. A descrição detalhada pode ser encontrada em Marcia Ishii-Eiteman (2013, p. 30-33).

38 Declarações obtidas na matéria jornalística “O direito ao alimento como direito político”, disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/531101-o-direito-ao-alimento-como-direito-politico. Acesso em 10 de junho de 2014.