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CAPÍTULO 3. DAVI CONTRA GOLIAS: CAMPONESES versus OLIGOPÓLIOS

3.2. A resiliência camponesa

“Existe uma ideia de que certas culturas e povos embora sejam coloridos e diferentes estão destinados a desaparecer, enquanto o mundo real, que é o nosso mundo, segue em frente. Nada poderia ser mais mentiroso. Essas culturas não são fracas ou frágeis. Elas são povos ricos e dinâmicos sendo levados à inexistência por forças identificáveis. Porque isto é importante? É importante porque a cultura não é trivial, não é apenas decorativa. Não é sinos e danças ou mesmo rituais. Cultura é o cobertor de valores morais e éticos com que o indivíduo é coberto. E se vocês querem saber o que acontece quando uma cultura é destruída e um indivíduo sobrevive? Ele se lança a deriva de um mundo alienígena, onde seu destino é simplesmente o grau mais baixo de uma economia que não lhe dá lugar algum. Basta olhar a periferia das grandes cidades dos países em desenvolvimento” (Wade Davis, trecho de entrevista do documentário “Escolarizando o Mundo”, 2010).

A “resiliência” é um conceito utilizado atualmente em diversas áreas de conhecimento, como psicologia e ecologia; sua origem é a física onde é usado para definir a propriedade de que são dotados alguns materiais de acumular energia quando exigidos ou submetidos a estresse, sem que ocorra uma ruptura. Na psicologia a resiliência é definida como a capacidade do indivíduo lidar com problemas, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas - choque, estresse etc. - sem entrar em surto psicológico - a capacidade de resistir a tensões do ambiente, se adaptar e superar. Na ecologia define a capacidade de um sistema restabelecer seu equilíbrio após este ter sido rompido por um distúrbio, ou seja, sua capacidade de recuperação. Segundo os pesquisadores Holling e Gunderson, a resiliência nos ecossistemas se caracterizaria pelas seguintes propriedades: a quantidade de troca que o sistema pode suportar e permanecer, através do tempo, com a mesma estrutura e funções; o grau de auto-organização do sistema; o grau de aprendizado e adaptação do sistema em resposta ao distúrbio.

Ao escolher este termo para introduzir este capítulo sobre a identidade e resistência camponesa quero ressaltar a capacidade de auto-regulação, melhor dizendo, autopoiesis (do grego auto "próprio", poiesis "criação") dos camponeses e das camponesas enquanto indivíduos e identidades coletivas. Entendo que os movimentos sociais camponeses se recriaram através da interação com outros movimentos (como de trabalhadores, ambientalistas e feministas) e com as transformações relacionadas ao meio rural e agricultura. Uma forma de resistir e reagir aos contextos e à pressão. Neste processo de “auto-criação” transformaram também as suas pautas e diversificaram suas ações e estratégia de enfrentamento à conjuntura adversa e cada vez mais “des-sintegradora” de sua identidade. Havia que unir-se e politizar-se cada vez mais, recriar-se em meio aos processos de “modernização” introduzidos no campo. Na Argentina e Brasil surgem

e fortalecem-se movimentos sociais e organizações que colocam como um dos temas centrais o “combate aos transgênicos”, ainda que com formas e intensidade distinta nos dois países39

. No Brasil a agricultura familiar, ainda que venha perdendo espaço em termos de volume de terra ocupada devido à pressão do modelo de agricultura industrial, conseguiu manter-se num lugar de destaque na produção de alimentos para consumo interno e também em termos de número de estabelecimentos rurais e geração de postos de trabalho. Isso pode ser observado no levantamento chamado de “radiografia da agricultura familiar”, elaborado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) em 2009, a partir do Censo Agropecuário de 2006 e de outros levantamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esta radiografia apontou que, comparado ao chamado agronegócio, a agricultura familiar domina as estatísticas em número geração de empregos. Do total de cerca de 5 milhões de estabelecimentos existentes no País, 4,3 milhões são de agricultura familiar (84%) e 807 mil (16%) são de agricultura não familiar ou patronal. Os pequenos ocupam 12,3 milhões de pessoas (74%), e os grandes, 4,2 milhões (26%).

As ações coletivas no meio rural nos últimos 30 anos são parte desta realidade e ao longo do tempo promoveram mudanças em suas formas de fazer resistência e nos conteúdos reivindicações e proposições. Além das lutas históricas por direitos básicos como condições de trabalho dignas, aposentadoria e propriedade da terra; passaram a lutar pelo apoio aos modelos alternativos de desenvolvimento rural, se opondo à agricultura industrial, cultivos transgênicos e uso de agrotóxicos.

Nos anos 90 e 2000 houve uma incorporação do discurso pela defesa da saúde integral e da soberania alimentar e de oposição ao uso de transgênicos e agrotóxicos por movimentos importantes como a Via Campesina Internacional e pelos movimentos exclusivos de mulheres camponesas, como abordarei posteriormente.

A agricultura agroecológica passou a ser colocada como uma alternativa ao modelo de agricultura industrial criticado pelos movimentos. A incorporação desses novos temas está relacionada a mudanças na realidade social e ambiental de maneira mais ampla, mas também à participação mais ativa e visível de outros atores dentro dos movimentos camponeses, como as

39 No levantamento realizado para esta pesquisa, as informações conseguidas reforçavam uma percepção de menor oposição e/ou capacidade de mobilização anti-transgênicos na Argentina em comparação ao Brasil. Segundo Pellegrini (2013), as organizações sociais contra os transgênicos na Argentina, comparativamente ao Brasil e França, por exemplo, seriam bastante menos expressivas.

próprias mulheres, além de uma influência de movimentos ambientalistas e pesquisadores de áreas relacionadas à ecologia, sociologia, saúde coletiva, etc.

No Brasil estas transformações podem ser visualizadas no surgimento de organizações como: Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Terra de Direitos, AS-PTA (Assessoria e Serviços em Projetos de Agricultura Alternativa), esta última deu início em 1999 ao boletim informativo e Campanha por um Brasil Livre de Transgênicos e Agrotóxicos. Entre os movimentos sociais, o Movimento de Trabalhadores Sem Terra (MST), o Movimento de Mulheres Rurais (MMR) e, posteriormente, o MMC também se posicionaram sistematicamente como contrários a disseminação das variedades transgênicas. Na Argentina surgiram organizações como: o Foro por la Tierra y la Alimentación e a Red Alerta Transgênicos e os movimentos sociais Movimiento Campesino de Santiago del Estero (Mocase) , entre outros movimentos de âmbito mais local ou provincial como os movimentos da região NEA citados no capítulo anterior. Em âmbito internacional, amplia-se o papel da Via Campesina Internacional na articulação das mobilizações por todo mundo.

Em muitos países da América Latina na segunda metade do século passado iniciam-se ações coletivas que lutam pelo reconhecimento pelos Estados do direito ao “uso social da terra”: a terra não deveria ser considerada uma mercadoria, mas um direito de quem vive e trabalha nela. De fato essa mobilização logrou conquistas em alguns países que passaram a reconhecer em suas legislações o direto uso social da terra como o Brasil (com o reconhecimento no Estatuto Social da Terra de 1964, posteriormente incorporado na Constituição de 1988), a Bolívia e o Equador. Na Argentina, a Reforma Agrária nunca chegou a ser discutida como parte de um projeto de Estado. No país, em 1994, foi realizada uma reforma constitucional e passou-se a reconhecer a propriedade da terra nos territórios indígenas, no entanto, não se reconheceu o direito ao uso social por parte dos campesinos e outros grupos.

Historicamente a concentração da terra é um dos fatores que geram aumento de conflitos e de mobilização de movimentos populares de base camponesa, como os que estão ocorrendo nas duas últimas décadas em regiões de expansão da fronteira agrícola da soja nos dois países. No Brasil observou-se aumento de conflitos nos Estados de Mato Grosso, Pará e Amazônia. Na Argentina, houve aumento de conflitos agrários na região NEA e outras regiões de fronteira agrícola.