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CAPÍTULO 5. MOVIMENTOS DE MULHERES CAMPONESAS: AUTONOMIA E

5.1. Camponesas e Feministas?

Neste capítulo coloco alguns aspectos da relação entre movimentos de mulheres camponesas e feminismo, buscando fazer algumas aproximações e distinções entre os movimentos de mulheres e feministas. Estes aspectos serão explorados, principalmente, a partir dos movimentos de camponesas brasileiros e da trajetória do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC/Brasil), privilegiando a sua organização estadual em Santa Catarina50. O destaque dado ao MMC se deve a maior capacidade de mobilização e de abrangência deste movimento (tema tratado anteriormente) em relação aos movimentos pesquisados na Argentina. Também se deve a maior disponibilidade de informações (na internet e publicações impressas) sobre os movimentos brasileiros e o MMC e a dificuldade com a qual me deparei para encontrar informações sobre a trajetória dos movimentos pesquisados na Argentina de forma sistematizada, o que restringiu as informações, muitas vezes, a aquelas obtidas nas entrevistas realizadas durante as pesquisas de campo.

50 O MMC/Brasil está presente com estruturas formais de diretorias (regionais, municipais e estaduais) em quase todos os estados brasileiros (exceção de Rio de Janeiro e São Paulo). A unificação é feita pela Coordenação Nacional (responsável por dar as linhas políticas ao MMC nacional, articular e coordenar as atividades e fazer a relação garantindo os encaminhamentos com seus Estados), que é composta por duas companheiras de cada Estado; e pela Direção executiva (que implementa e viabiliza as decisões da Coordenação Nacional), que é composta por 10 pessoas da coordenação nacional e reunirá as coordenadoras das equipes de trabalho. Informações disponíveis no site do MMC/Brasil http://www.mmcbrasil.com.br/, em “organização”.

Os movimentos autônomos de mulheres camponesas no Brasil têm manifestado como uma de suas principais motivações para a formação de grupos exclusivos de mulheres a falta de espaço político dado às mulheres e seus temas no interior de outros movimentos sociais. O trabalho de Esmeraldo (2008) com as mulheres dentro do Movimento dos Trabalhadores Sem- Terra (MST)51 descreveu como a formação de grupos de mulheres dentro de movimentos camponeses foi impulsionada inicialmente pela relação de poder desigual e falta de representatividade nestes movimentos. Segundo a autora, as mulheres teriam iniciado o grupo de mulheres para terem apoio e liberdade para construir um discurso político que problematizasse o sentido de uma luta da classe trabalhadora que não inclui nem considera a luta das mulheres.

A decisão de reunirem-se sem a presença de homens sempre foi motivo de críticas, tanto por parte de sindicalistas, como de movimentos como MST, que consideravam este comportamento sectário e contraditório com o princípio de igualdade entre homens e mulheres. No entanto, as pesquisas de campo realizadas para este trabalho e as leituras apontaram que a formação de grupos autônomos e exclusivos de mulheres não tem gerado sectarismo. Pelo contrário, os movimentos de mulheres e o ponto de vista feminista dentro de movimentos mistos estariam contribuindo para uma visão mais abrangente e radical.

As integrantes do MMC entrevistadas e também as mulheres de movimentos camponeses argentinos abordaram as dificuldades enfrentadas pelas mulheres dentro de movimentos mistos e como isso contribuiu para formarem os movimentos autônomos. Uma das integrantes do MMC de Santa Catarina, em entrevista, contou que no início das reuniões com grupos apenas de mulheres era comum em alguns momentos uma “choradeira”. Segundo ela, as companheiras compartilhavam as dificuldades vivenciadas em suas trajetórias de vida no grupo e se emocionavam; momentos com este seriam impensáveis nos grupos mistos.

51 É interessante notar que os movimentos camponeses parecem estar gradualmente incorporando as questões de gênero e outras pautas relacionadas à sexualidade e identidade. Algumas reportagens recentes, publicadas em de fevereiro de 2014 no site do MST, indicam esta “tendência”. Como a manifestação de solidariedade aos movimentos LGBT e quilombolas nas reportagens: “MST, quilombolas e movimento LGBT marcham por direitos humanos” e “Sem Terra LGBT lutam por uma sociedade sem preconceitos”. Da segunda, cito as seguintes falas de integrantes do MST: “Muita gente no MST tem essa opção (homossexualidade). As relações no Movimento são mais próximas, aí a gente acaba se descobrindo mais e se aceitando também. A vivência no MST permite a gente ter uma aceitação melhor, tanto pessoal quanto coletiva”; “Não tem essa de pensar sobre isso só lá na frente. É agora que se planta as sementes da nova sociedade. Se a gente quiser colher abacate, precisa plantar abacateiro, se a gente quiser uma sociedade libertária, onde todos e todas possam participar com igualdade, tem que plantar aqui e agora”. Em abril de 2013, o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA, presente em 15 estados brasileiros) criou a primeira Escola Feminista. O Movimento de Trabalhadores Sem-Terra (MST) também possui há muitos anos um grupo de trabalho de mulheres e gênero

Para mulheres, além da luta capitalista e contra esse modelo de exclusão também tem a luta contra o patriarcado. Foram gerações e gerações no sentido de dominar e submeter a mulher aos homens. Nesse sentido houve a necessidade de criar espaços para as mulheres colocarem suas dificuldades (...). Não acredito que é culpa dos homens, não é simples, é culpa de um modelo de sociedade que para eles acabou ficando muito cômodo. Por isso a gente trabalha no sentido de libertação das mulheres e de construir essas novas relações entre homens e mulheres. (...)

Na definição do MMC estão elementos de uma identidade coletiva múltipla e complexa - mulher, camponesa, classe trabalhadora, militante - que mostram a influência de matrizes ideológicas socialistas e feministas. A complexidade e singularidade deste movimento mostram algumas facetas das identidades construídas por mulheres pertencentes às classes populares e não urbanas: ribeirinha, quebradeira de coco, assentada.

No site do MMC (item “lutas”) estão descritas as características do projeto de agricultura camponesa almejado com igualdade entre mulheres e homens e respeito à natureza: “as tecnologias desenvolvidas pelas trabalhadoras e trabalhadores com o auxilio da ciência possam ser voltadas aos interesses das camponesas e dos camponeses, facilitando a produção de alimentos saudáveis; a organização coletiva do grupo familiar seja voltada à construção de novas formas de vivência e convivência de maneira a superar as relações da família patriarcal e machista; a construção coletiva de espaços de poder partilhado de mulheres e homens, tanto nos espaços privados quanto nos públicos; mudança nas relações humanas, construindo uma visão ampla e integral da vida, do ser humano e de desenvolvimento sustentável do planeta; respeito à diversidade étnico-racial, de gênero, econômica, cultural, ecológica e de espiritualidade”.

Dialogar com esta identidade “camponesa/mulher”, que muitas vezes52 (mas nem sempre) coincide com “camponesa-feminista” torna necessário colocar ainda outras questões de fundo. O MMC/Brasil afirma uma “mística camponesa e feminista enraizada na luta popular e no desejo de felicidade e justiça53”, mas a forma como o feminismo é incorporado por este movimento apresenta singularidades interessantes. O MMC de Santa Catarina, em 2010, realizou uma Assembléia Estadual, com o tema: "Identidade Camponesa e Feminista", sobre este evento o

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O MMC de Santa Catarina, em 2010, realizou uma Assembleia Estadual, com o tema: "Identidade Camponesa e Feminista", sobre este evento o próprio Movimento afirmou em divulgação posterior: “Nós, mulheres lutadoras, construímos o nosso movimento autônomo, de classe, camponês e feminista. Em todos os momentos lutamos pela libertação da mulher contra todo o tipo de opressão e exploração, pela construção do projeto de agricultura camponesa agroecologica e a transformação da sociedade”. Assim, para o MMC esta relação entre feminismo e luta das camponesas aparece de forma bastante direta. Porém, o que pretendo pontuar, é que esta relação não é igual em todos os coletivos de mulheres rurais.

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Publicação do MMC/Santa Catarina “Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina. Uma história de lutas e conquistas” (s/d, p. 20).

próprio Movimento afirmou em divulgação posterior: “Nós, mulheres lutadoras, construímos o nosso movimento autônomo, de classe, camponês e feminista. Em todos os momentos lutamos pela libertação da mulher contra todo o tipo de opressão e exploração, pela construção do projeto de agricultura camponesa agroecologica e a transformação da sociedade”. Assim, para o MMC esta relação entre feminismo e luta das camponesas aparece de forma bastante direta.

Porém, o que pretendo pontuar, é que esta relação não é igual em todos os coletivos e movimentos de mulheres camponesas. A mesma relação entre luta camponesa e feminismo não foi observada no caso dos movimentos de mulheres camponesas argentinos com os quais tive contato, na verdade o feminismo apareceu poucas vezes como uma referência direta, embora algumas as questões de gênero tenham sido colocadas pelas entrevistadas com mais freqüência.

Ao tratar da relação entre movimentos de mulheres e movimento feminista uma primeira questão de fundo diz respeito à distinção/aproximação entre os movimentos de mulheres e os movimentos feministas. Embora existam convergências inquestionáveis entre movimentos feministas e os movimentos mulheres, eles não podem ser tomados simplesmente como sinônimos, como discutirei a seguir.

A segunda é a necessidade de questionar uma ideia bastante difundida de que “os movimentos de mulheres são fenômenos essencialmente modernos relacionados à difusão das ideias ilustradas, com papel importante dos nacionalismos e socialismo” (Molyneux, 2003). Esse tipo de pressuposto reproduz um pensamento que desconsidera as mobilizações de mulheres fora do eixo Europa/Estados Unidos, que recebeu diversas críticas dos “feminismos das pós- colonialidade”. Também tende a desconsiderar a participação de grupos de mulheres nos primeiros movimentos de luta camponesa, indígenas ou mesmo a perseguição/resistência das mulheres perseguidas como “bruxas” na Idade Média.

Tanto no passado, quanto na atualidade, é ambivalente o sentido da Ilustração para os movimentos populares latino-americanos. Do ponto de vista dos colonizados há de se considerar que a Modernidade Ilustrada muitas vezes foi determinante para dominação e imposição de critérios de racionalidades eurocêntricos a esses povos. Como analisa Segato (2011), o ideário dos direitos humanos universais - que segue sendo um importante componente ideológico/ético das políticas públicas e ações de organismos internacionais - deve ser analisado de forma crítica. De certo modo, essa defesa de direitos universais para povos e “minorias” estaria “dando com uma mão o que foi tirado com a outra”. Uma tentativa de reestabelecer (e às vezes impor)

comportamentos e formas de sociabilidade pelos mesmos países e Estados que foram responsáveis por destruir toda rede social anterior que tornava a vida comunitária possível e protegia seus diversos membros, entre os quais, as mulheres.

Segundo Alvarez (1990 e 2000) devido ao contexto específico da América Latina, os primeiros movimentos de mulheres tiveram uma forte ênfase nas questões de responsabilidade coletiva, uma espécie de “feminismo social”, vinculado à luta de trabalhadores (direitos trabalhistas e por terra) e ao catolicismo social de esquerda. No Brasil, Argentina e outros países da América Latina, a vinculação com o catolicismo de esquerda, principalmente com a vertente da Teoria da Libertação, é descrita como determinante para a constituição inicial de movimentos camponeses mistos e também para os exclusivos de mulheres.

Ainda hoje existem visões contrapostas sobre os temas e abordagens que dariam singularidade a um movimento autônomo de mulheres. Existem movimentos claramente identificados como feministas a partir de uma visão do feminismo europeu e norte-americano - como pelo sufrágio, aborto, direitos a saúde reprodutiva/familiar e diversos temas relativos ao “respeito à diferença” em termos de sexualidade. Outros, porém, possuem fundamentos mais generalistas e/ou distintos, que não pertencem ao escopo deste “feminismo hegemônico”.54 É o caso de temas como luta contra o uso de agrotóxicos, êxodo rural, ética dos cuidados, etc.

No estado do Paraná, por exemplo, região próxima à sede de Formação do MMC na qual realizei as entrevistas, a organização de mulheres agricultoras não teria ocorrido a partir da especificidade de ser mulher, mas devido a necessidades de atividades exercidas enquanto agricultoras e em defesa dos direitos da agricultura familiar (ALVES DOS SANTOS, 2010). As entrevistas com as mulheres integrantes do MMC de Santa Cantarina, do Madres de Ituzaingó, da Associação de Mulheres Agricultoras de Goya e das Mulheres Agricultoras de San Martín (todos argentinos) apontaram nesta mesma direção, de que as mobilizações das mulheres camponesas, ao menos a princípio, seriam motivadas pela conquista de direitos para os trabalhadores e trabalhadoras do campo e temas como saúde e educação.

Entre os coletivos de mulheres camponesas e entre as mulheres militantes também se encontram posturas de distanciamento com relação ao que entendem por feminismo. Os argumentos para este afastamento são múltiplos, um dos principais é o de que a luta camponesa envolve toda família e que centrar em “temas feministas” seria um viés urbano; e que a luta mais

importante estaria em viabilizar a produção familiar e melhoria das condições gerais de vida no campo e não das condições apenas das mulheres.

Entre os movimentos de mulheres, não apenas camponesas, também existem aqueles cujas demandas estariam mesmo em conflito com as do feminismo. São os casos de dos movimentos maternalistas; movimentos em defesa do cuidado, sensibilidade e empatia como “atributos femininos”; movimentos vinculados à “proteção da família” (família definida de acordo com uma normatividade heterossexual e que mantém divisão sexual do trabalho).

Algumas das tentativas de definição dos movimentos de mulheres utilizaram critérios como: autonomia (em relação ao Estado e sindicatos); atuação anti-sistema; e incorporação de questões gênero. Porém, essas tentativas também acabaram se mostrando vagas e pouco representativas da heterogeneidade real desses movimentos. O “movimento social de mulheres”, à semelhança de outros movimentos sociais, aparece mais como um conceito analítico, que abarca um imenso guarda-chuva, abrigando ações coletivas diversas, com diferentes significados, alcances e durações (PAOLI, 1995). No entanto, como abordado ao longo deste trabalho, na luta das mulheres-camponesas, existem alguns componentes comuns como a busca pelo reconhecimento social dos fazeres e saberes camponeses, a contraposição ao modelo agroindustrial e uma concepção singular e comprometida com a natureza e a vida.

Maria Ignez Paulilo (2010) observou em seu trabalho, por exemplo, que os discursos de desmercantilização de integrantes do MMC apresentavam componentes religiosos e/ou espirituais, que se relacionavam com sua crítica ao pensamento racionalista instrumental ocidental em relação à vida e à natureza. Segundo a autora, a postura crítica do Movimento de Mulheres Camponesas seria resultante da experiência pessoal destas mulheres enquanto agricultoras com a destruição do meio ambiente e com o perigo dos agrotóxicos, uma vivência reforçada por uma religiosidade tradicional para o qual as mulheres, a vida e a natureza são “dons de Deus”. Uma religiosidade ou cosmovisão que não é exclusiva das mulheres camponesas.

Não só as agricultoras identificam o ato de plantar, colher e dar à luz a novos seres humanos como um dos principais esteios da sobrevivência do planeta Terra, identificando assim a mulher com uma natureza normativa que tem como fundamento a igualdade e o livre acesso aos direitos humanos (PAULILO, 2010, p. 933).

No mesmo artigo, Paulilo “confessa” ter sentido “desconforto como feminista e militante” ao escutar de algumas participantes do MMC “firmes convicções essencialistas” que “não encontravam ressonância” em suas “próprias convicções e ideias desconstrutivistas” (PAULILO,

2010, p. 935). Esse estranhamento da pesquisadora encontra paralelo de forma implícita ou explícita em vários olhares acadêmicos sobre alguns movimentos sociais de mulheres e também sobre algumas vertentes do pensamento ecofeminista identificadas como espiritualistas ou místicas.

Como sintetizou Puleo (2011), já foram feitas várias críticas, com razão, dentro do próprio Ecofeminismo aos riscos de abordagens que reforçam uma mística da feminilidade com traços essencialistas ou mesmo a reprodução de noções idealizadas de matriarcado. A sociedade matriarcalé um termo usualmente aplicado para definir formas ginecocráticas de sociedade, ou seja, as sociedades nas quais os papéis de liderança e poder são exercidos pelas mulheres. No entanto esta definição é questionada principalmente pela discuta ou negação dos significados de poder em sociedades “liderados por mulheres”.

Noemí Maza (2014), em seu artigo sobre a existência ou não do matriarcado, analisa alguns pontos da construção de “um mito sobre o matriarcado” fruto da burguesia ocidental europeia que relaciona as mulheres às sociedades selvagens, primitivas, a natureza; que se contrapõe ao patriarcado que associa com uma sociedade civilizada, política, industrializada. Um mito que também serviu para dominação dos povos originários pelos colonizadores. Neste artigo, Maza cita as antropólogas Peggy Reeves Sanday e Henrietta L. Moore como duas autoras que criticaram a influência do etnocentrismo (medir com parâmetros ocidentais a noção de poder e política) nas noções construídas sobre o matriarcado.

Segundo Maza (2014), muitos antropólogos e mesmo algumas feministas buscariam, por exemplo, uma sociedade na qual as mulheres controlam todos os aspectos da vida cotidiana, incluindo o governo, o que não se encaixa muito bem em culturas não ocidentais. O matriarcado não deveria ser entendido simplesmente como o patriarcado ao contrário, assim como o feminismo não é sinônimo de machismo ao contrário, ou seja, de uma sociedade na qual todos os poderes e recursos se encontram nas mãos das mulheres. Assim, o matriarcado usado em algumas teorias ou idealizações ecofeministas, quando entendido de uma forma não idealizada, teria condições de questionar a própria visão ocidental sobre o poder.

Segundo Puleo (2005) o sentimento de muitas feministas de uma ameaça eminente do pensamento essencialista em relação às mulheres seria um dos principais motivos para as teorias ecofeministas construtivistas serem vistas como muito mais sólidas e capazes de evidenciar o androcentrismo de nossa imagem de ser humano e os dualismos hierarquizantes sobre os quais

foi constituída nossa cultura. No entanto, a autora também reconhece a força e poder de mobilização do feminismo espiritualista. Para ela, em situações complexas, uma maior solidez teórica pode acabar significando também uma maior fragilidade prática em termos de capacidade de mobilização (PULEO, 2005, p. 31).

Ser chamada de essencialista é sem dúvida um dos piores insultos para uma teórica e/ou militante de qualquer uma das vertentes do feminismo. É preciso, contudo, olhar de forma cuidadosa estes julgamentos de que tal ou qual teoria ou discurso ou reivindicação é essencialista. É disto também que se trata uma perspectiva parcial/situada: de procurar reconhecer o ponto de vista situado do outro, a vivência a partir da qual seus pensamentos e posicionamentos foram gerados e significados. Algumas vezes, estas classificações surgem de julgamentos com viés “universalista” e “colonialista” que podem persistir ou florescer mesmo dentro dos feminismos.

Por isto, a minha proposta é de seguir outro caminho, penso que seria possível aproximar aspectos de algumas vertentes ecofeministas e também dos movimentos de mulheres camponesas de “proposições de vanguarda” do “feminismo pós-gênero”, como o Feminismo Queer. Por exemplo, a desconstrução dos limites entre a própria natureza/humano e a constituição de uma ética ontológica comum para todos os seres, que aprofundarei no Capítulo final. Para a Teoria Queer, não somente o gênero, mas o próprio sexo é construído. A representação do que deve ser entendido como material (natureza, corpo, sujeito etc.) é anterior à matéria mesma, porque o que a regulamenta é o discurso que a constrói que, além disso, naturaliza essa construção (GABRIEL, 2011).

De fato existem autoras que já propõem o Ecofeminismo Queer. Para elas, tornar o ecofeminismo queer seria um movimento de ampliação do próprio ecofeminismo e o “resultado lógico de uma política ecofeminista radical”. Segundo Alice Gabriel (2011, p.168), para tornar o ecofeminismo mais amplo, ele tem que se tornar queer, dedicar-se a pensar nas relações entre as fêmeas humanas e de outras espécies e questionar a heteronormatividade55 do mundo. A perspectiva ecofeminista queer, segundo esta autora, questionaria a projeção de uma heterossexualidade à ‘natureza’ como extensão do processo de naturalizar a heterossexualidade como o natural para o humano, também o estendemos ao mundo de forma ampla.

55 O conceito de heteronormativide pode ser entendido como “o estabelecimento, através de um sistema científico de diagnóstico e classificação do corpo que estabelece uma linearidade causal entre o sexo anatômico (genitais femininos ou masculinos), gênero (aparência, rol social ou performance feminina ou masculina) e sexualidade (heterossexual ou perversa). (PRECIADO, 2008: 96)

(...) passamos a enxergar uma estrutura política e social (e sexual) específica de um momento histórico de uma parcela da população humana e generalizá-la para outras espécies. A sociobiologia é boa nisso, em fazer paralelos entre nossas organizações sociais e políticas e entre as organizações (sociais e políticas também!) de outros animais – o que poderia ser muito interessante se conseguisse ver além da reprodução do padrão hegemônico de comportamento humano. (GABRIEL, 2011, p. 169).

Para Gabriel, algumas autoras que propõem uma educação ambiental queer, desafiam as imagens tradicionais de ser homem, ser mulher e das relações humano-animal, humano-natureza. Acredito que explorar estas possibilidades de diálogo é importante no sentido de vislumbrar as