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A crítica musical e a preservação da tradição: Revista da Música Popular

PARTE I: SEPARANDO O JOIO DO TRIGO

6. A crítica musical e a preservação da tradição: Revista da Música Popular

O olhar desalentado frente à cena musical dos anos 1950 foi fruto de um movimento folclórico vacilante quanto a uma categorização definitiva do conceito de música popular. O que se tentou com a fundação da Revista de Música Popular foi inventar uma tradição a partir da recuperação dos elementos folclóricos que deram origem a música nacional, junto com a sacralização do samba produzido entre 1930 e 1945. Havia uma preocupação com a questão da autenticidade da música popular urbana associada a expressão de “nossa” identidade nacional. Em função disso, muitas vezes procurou-se associar parte dessa música de entretenimento, como o samba e o choro, ao folclore. Mas não é possível limitar a RMP a essa perspectiva folclorizante, já que a revista tratava da chamada música comercial. A própria colaboração de Mariza Lira intitulada “História Social da Música Popular Carioca” era comprobatória nesse sentido, já que era uma coluna de uma cronista que ao mesmo tempo tratava de folclore, mas que nunca ignorou a música de entretenimento, ao contrário, esteve ligada a ela em sua colaboração na Pranove. 96

Diante do avanço do bolero e da música americana era preciso buscar elementos que pudessem servir de fonte para a construção e preservação de uma cultura brasileira autêntica com raízes no folclore, mas que não virassem as costas à produção urbana, por isso seus colaboradores

96 Essa tensão enfrentada por Mariza Lira dividida entre os estudos de folclore e sua

contribuição na imprensa de entretenimento foi assim sublinhada: “Essa questão era muito presente entre os analistas da música popular, tensionados pela aspiração premente de dar valor à música popular e pelo propósito de construir algo mais elevado e fazer um ‘serviço meritório’, justamente em universo um tanto frívolo e banal como o das artes de entretenimento.” Cf. MORAES, José Geraldo Vinci de. “Lúcio Rangel comendo ‘ovos quentes com Noel Rosa’: a invenção de uma historiografia da música popular.” Rev. Bras. Hist. [online]. Vol.38, n.77, São Paulo. Jan/Abril 2018, pp.125-145.

divulgavam amplamente um panteão de artistas que representariam a tradição urbana brasileira. Os mesmos que haviam sido eleitos por Mariza Lira em sua Galeria Sonora em 1938 na Revista Pranove: Noel Rosa, Pixinguinha, Carmem Miranda, Araci de Almeida (embora com ressalvas), Dorival Caymmi e claro Ari Barroso.

De alguma maneira Mariza Lira já estava querendo preservar no final da década de 30 aqueles personagens que seriam enquadrados nos anos 1950 como “Velha Guarda”. A cronista tinha consciência do papel do jornalismo e do crítico na formação da opinião pública. Agora anos depois, diante do discurso de decadência que tomava conta da cena musical na década de 1950, Mariza participava de um projeto de revista que não buscava o entretenimento e a cobertura dos bastidores do rádio como a PraNove prenunciava e como a Revista do Rádio concretizava, mas que se atribuía como missão a recuperação do passado musical da nação.

Seu alinhamento com a linha editorial da revista além da ligação óbvia com o folclore passava também pela ideia de um rádio em que o comercialismo fosse aliado da qualidade musical (como ficou evidente na sua entrevista para a Fonfon). Mariza Lira compartilhava também com a RMP, a eleição dos mesmos personagens que comporiam a “Era de Ouro” do samba, e o entendimento do jornalismo como veículo de educação e conscientização das massas.

O período em que a revista circulou (setembro de 1954 e setembro de 1956) correspondeu ao auge do movimento folclorista e suas constantes tentativas de institucionalização, que tiveram início em 1945 com a criação da Comissão Nacional do folclore e culminou em 1954 com a organização do Congresso Internacional de Folclore em São Paulo. Mariza contribuiu com 11 artigos quase que exclusivamente reproduzindo estudos folclóricos já publicados em seu livro Brasil Sonoro de 1938.

Ela esteve amplamente envolvida com o grupo que lutou pela fundação da Comissão Nacional do Folclore do qual fazia parte Renato Almeida e cujo sucesso dependia do bom êxito na montagem de uma exposição de folclore no Rio de Janeiro em 1941. Entre 14 de dezembro de 1938 e 20 de fevereiro de 1943, Mariza recorreu por meio de cartas ao mestre

Mário de Andrade tanto para que ele avaliasse sua biografia sobre Chiquinha Gonzaga quanto seus estudos folclóricos que deram origem a exposição.

Apresentava-se sempre como a intelectual diletante diante do “professor severo” que lhe daria escopo. Sua insegurança talvez fosse fruto de um movimento intelectual que embora estivesse alcançando algum sucesso buscava ser visto como ciência. Em carta de setembro de 1940 ela comunica ao Mário o convite para a apresentação de um programa de rádio sobre o folclore brasileiro. Aqui já estavam delineados os vetores que norteariam a ligação do movimento folclórico com a Revista de música popular: pesquisa, proteção e educação.

Fui convidada para contar a história da nossa música popular no rádio. Estou tentando organizar algo um tanto superficial, que agrade ao grande público. Pensei em começar da primeira missa do Brasil, melodias dos Tamoios fixadas por Léry, descrição de instrumentos primitivos, lendas, hábitos e a vaga influência da música indígena na atual música popular moderna. Depois falar da modinha, fado cana-verde etc com história ligeira, anedotário e tudo que me parecer interessante e leve.

Finalmente o negro, ritmos, religiões, danças. Pandegas de rua, Zé Pereira, músicas de dança, bailes (...) arrasta-pés, forrobodós, trovadores, serenatas, choros, carnaval, maxixe, natal, pastorinhas, bumba meu boi, etc etc tango brasileiro, festa da Penha, samba e sua evolução do morro aos domínios norte-americanos (prováveis?) Tudo isso entremeado de histórias, particularidades, desafios, emboladas, perfis, dessa gente simples que canta para não chorar. A sua opinião franca de professor severo dar-me-ia arrimo. Não me perdoariam se fizesse tolice, mas seria fuzilada se quisesse fazer trabalho com pretensões de sabichona. .97

É possível perceber um roteiro cronológico e uma noção de desenvolvimento da música nacional por meio do folclore. Esse roteiro que começa pela contribuição indígena, passa pelos negros, depois a música europeia para acabar no samba e “sua evolução” desde o morro será seguido por ela na sequência de artigos publicados na Revista de Música Popular. O primeiro artigo intitulado “O alvorecer da música do povo carioca”( edição nº3-

97 Arquivo Mário de Andrade. Série Correspondência de Mário de Andrade. Sub série:

correspondência passiva. MA-C-CPL4225 (Caixa 44). Setembro de 1940. Instituto de Estudos brasileiros (IEB-USP).

dezembro de 1954) tratava da música dos Tamoios que habitavam a cidade antes da chegada do europeu, o segundo artigo “Nossos primeiros trovadores” (edição nº4- janeiro de 1955) fala da influência dos lusitanos que “cantaram a nostalgia da pátria distante”, depois dois artigos ressaltando a contribuição do negro “A contribuição do negro- O ritmo” (edição nº9-setembro de 1955) reforçando a contribuição mais rítmica do que melódica e “A música das senzalas” (edição nº10-outubro de 1955). Depois de apresentada a contribuição isolada, os três elementos se amalgamariam no artigo “Música das três raças” (edição nº11-novembro/dezembro de 1955) para dar início ao processo de nacionalização da música com a Modinha e a Polca (assunto dos últimos artigos, edição nº13-junho de 1956 e edição nº14-setembro de 1956 respectivamente).

O programa de rádio, assim como esses artigos, tinham um mesmo objetivo: preservar uma reserva cultural diante da modernização capitalista e a urbanização tendo como parceiros a radiofonia e a crítica musical para que o grande público tomasse contato com o folclore. Nem que para isso fosse preciso “organizar algo um tanto superficial”, no caso do programa de rádio. Só que o projeto da revista e o projeto folclorista esbarravam na dificuldade de organização institucional do movimento folclórico em âmbito nacional assim como em “coletar” esses símbolos da tradição em meio a um cenário citadino dinâmico e de intensas transformações. No início dos anos 1940 Mariza já relatava essas dificuldades a Mário de Andrade. “A nossa sociedade continua em sonhos. O Joaquim Ribeiro foi eleito presidente. O Castro Maia diz que vai nos dar 5:000,$000 para a exposição. O D.I.P prometeu amparar a ideia. Promessas...(...)” 98 Além da falta de apoio

financeiro e institucional parecia haver uma dificuldade no desenvolvimento desses estudos no Brasil o que resulta numa fala um tanto pessimista de Mariza numa carta de 30 de junho de 1941.

Disso e das discussões confusas e discordantes das nossas reuniões, chego a crer que o folclore no Brasil, ainda está a jogar cabra-cega, salvo poucos nomes que acato Mário de

98 Arquivo Mário de Andrade. Série: Correspondência de Mário de Andrade. MA-C-CPL4229

Andrade, Basílio de Magalhães, Lindolfo Gomes e pouquíssimos mais99

Em seguida Mariza relata o desafio de recolher material musical de raiz folclórica no Rio de Janeiro. Ela chegou a ir à Escola de Samba Mangueira na tentativa de recolher um samba “puríssimo”, mas reconheceu que nessa escola de samba “tudo é citadino” e confessa que “a música está me apavorando”. Seus parceiros não pareciam estar dispostos e ser capazes de ajuda-la na organização da exposição:

O Luiz Heitor (Luiz Heitor Correa de Azevedo), o Sr. Conhece bem, é ponderado, mas, não lança iniciativas, demais vai para os Estados Unidos. O Itiberê (Brasílio Itiberê) é impreciso e meio doente. O Renato (Renato Almeida) é valioso, diplomata e não sabe música embora escreva no momento uma volumosa História da Música. Eu só tenho o curso de teoria e solfejo. O Sr. terá algo que nos possa ceder, (...) documentação ou ideia? Ficaria sobre nossa responsabilidade. É um favor.100

Dificuldade de coletar material, falta de financiamento, de apoio institucional e de seus pares, tudo isso resultava num enorme medo de fracasso e revela um campo de estudos que ainda tateava por reconhecimento: “Sei que abuso de sua bondade, mas, compreenda a minha situação de tesoureiro de 5:000,000 que o Castro Maia nos deu para uma exposição que mesmo sendo tentativa não pode ser um fracasso.”

Mais adiante ela relata em carta a Mário de Andrade que a exposição havia sido um sucesso e que diante disso foram recebidos pelo então presidente Getúlio Vargas no Palácio do Catete e que saíram de lá com a promessa da construção de um “Museu do povo”. Por estar tão pessoalmente envolvida com as dificuldades que o folclore encontrava para se firmar como ciência em meio às outras ciências sociais, é possível entender a filiação de Mariza Lira a linha editorial de uma revista como a Revista de Música Popular. Ela levou a crítica musical a outro patamar já que pretendia ser um veículo de

99 Arquivo Mário de Andrade. MA-C-CPL4231 (Caixa 44), junho de 1941. Instituto de Estudo

Brasileiros (IEB-USP)

100 Arquivo Mário de Andrade. MA-C-CPL4231 (Caixa 44), junho de 1941. Instituto de Estudo

crítica especializada não uma revista de entretenimento. A contribuição da jornalista e folclorista Mariza Lira sublinhava o sentido de preservação das raízes de “nossa” cultura popular e a divulgação daquele que seria o repositório da tradição, justificado com uma linha evolutiva que nos levaria ao samba dos anos 30, lugar idílico onde se fazia música por amor.