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PARTE II: DISCURSO HISTORIOGRÁFICO E CONTRUÇÃO DA MEMÓRIA

18. Carnaval Popular: politização, utopia e resistência

Depois de fazer breve relato sobre o carnaval no mundo clássico Eneida chega rapidamente ao carnaval português. A autora fala do entrudo em Portugal e baseia sua explicação na reprodução de trechos de um artigo de Júlio Dantas, publicado na Gazeta de Notícias em 21 de fevereiro de 1909. Segundo ela, “ninguém melhor do que um português para falar de seu carnaval”. Quando o “porco e brutal” entrudo chega ao Rio de Janeiro espantava vários viajantes estrangeiros que aqui chegavam “sem considerar que estávamos apenas refletindo e repetindo hábitos de nossos colonizadores.”

283 ENEIDA. História do Carnaval Carioca, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1958,

Finalmente no alvorecer do século XX, em 1904 com a abertura da Avenida Central, o entrudo chegava ao fim. Nessa passagem Eneida surpreendentemente endossa o discurso higienista em voga na grande imprensa de então e na intelectualidade republicana que pretendia transformar o Rio de Janeiro na Paris dos trópicos284:

O novo século trazia uma nova mentalidade; o Rio civilizava- se. A recém construída Avenida Central dava-nos a consciência de criaturas civilizadas, cidadãos moradores numa grande cidade. O entrudo português porco e brutal foi desaparecendo lentamente. Novos brinquedos carnavalescos estavam surgindo. 285

Mesmo assim, Eneida alertava para o fato de que o intrudo insistia em sobreviver em pleno século XX. Era possível ver à venda limões vazios e seringas de plástico. Como era próprio dela, ao falar da permanência do entrudo, emenda com uma crítica a falta d’água na cidade: “Água continua não havendo na cidade, mas- quem sabe?- se não tomarmos cuidado acabaremos molhados, sujos, enlameados como nos tempos de nossos avós?” 286 Isso

ocorre durante todo o livro, quase sempre seus comentários não tem relação com a matéria musical em si. A história do carnaval serve como pano de fundo para comentários de natureza política como ilustra a passagem em que trata do sucesso dos primeiros bailes carnavalescos do Hotel Itália promovidos por uma sociedade chamada “Constante Polca”.

Eneida passa a explicar ao leitor porque a primeira sociedade carnavalesca, aquela que foi iniciadora dos bailes de mascarados tinha esse nome: “Os cronistas da época declararam que a mocidade de então ‘já indistintamente rebelde às fumaças da aristocracia artificial’ sentia na polca um ‘habeas corpus’”. 287Não há qualquer menção sobre a fonte em que Eneida

retirara a citação, mas o curioso é que ela explica o sucesso da polca, dança

284 C.f. SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnicas, ritmos e ritos do Rio. História da Vida Privada No Brasil; organizador do volume Nicolau Sevcenko.-São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.513

285 ENEIDA. História do Carnaval Carioca, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1958,

p.28.

286 Idem. Ibidem.

287 ENEIDA. História do Carnaval Carioca, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1958,

de “peignoir” a substituir as danças de “anquinhas”, fazendo uso da história, mais precisamente da Revolução Francesa:

O vento da revolta contra a tirania que a Grande Revolução Francesa violentamente soprara sobre o mundo, a lição das necessárias liberdade, igualdade e fraternidade que ela transmitiu a todos os povos modificando-lhes hábitos e pensamentos, atingiu as danças e até mesmo o nosso carnaval.288

Se para Eneida, como foi visto, a atividade jornalística era uma arma de luta política, sua “trincheira”, ou seja, uma forma de denunciar as agruras de quem vivia na então capital federal, especialmente a camada mais humilde. Escrever sobre carnaval também era uma forma de luta, de denúncia, mas também ao mesmo tempo, de superação das misérias cotidianas através da inversão de papéis que a festa carnavalesca proporcionava.

É possível perceber logo no início que a questão da “luta de classes” também chegara ao carnaval. Como ilustra a passagem em que a autora descreve os bailes particulares, aqueles realizados pelas grandes sociedades a partir de 1888:

[...] flores artificiais que pareciam naturais de tão belas que eram, champanha a rodo (até 1930 o champanha era obrigatório em todos os carnavais) e mais: franceses legítimos [...] concertos de piano ou violino antes dos bailes [...] São tantos os clubes familiares que em 1896 os jornais informam: ‘bailes públicos só para o Zé povinho’. 289

Em seguida denunciou como ficou impossível, diante da alta do custo de vida, a manutenção desse tipo de festa. Novamente o carnaval serve como pano de fundo para a crítica social:

Eram assim as ceias de carnaval até uns vinte anos passados. Depois, ora depois a vida cresceu; tudo se tornou mais caro. Os salários ficaram os mesmos enquanto os gêneros aumentavam de preço. Nem mesmo os bailes da burguesia

288 ENEIDA. História do Carnaval Carioca, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1958,

pp.30-31.

brasileira terão hoje um cardápio como esse do Cassino Atlântico, se bem que sejam altíssimos os preços das entradas, das mesas, dos ‘couverts’.290

Todo tipo de observação, por mais simples que fosse, parecia exigir de Eneida um comentário ácido com relação à realidade em que vivia. Os jornais não mais publicam a relação de todos os bailes que acontecem na cidade? Culpa dos anúncios caríssimos que tomavam o espaço dos jornais. Falta de fantasia nos bailes? Falta de dinheiro: “Hoje qualquer roupa serve. O que enfraqueceu, ou melhor, diminuiu a beleza de nossos bailes carnavalescos foi ainda e sempre a falta de dinheiro que nos impede de fazer fantasias...” 291

Com relação ao carnaval do povo, cujas origens Eneida começou a descrever com a chegada do Zé Pereira, a autora utiliza como fonte duas obras do historiador Vieira Fazenda intituladas “Antiqualhas” e “Memórias do Rio de Janeiro”. Segundo ela, “todos os autores que se referem ao Zé Pereira e contam suas diabruras nesta cidade fazem-no baseados em Vieira Fazenda”, dessa maneira justifica a utilização da mesma fonte: “Fiquemos com Vieira fazenda porque ficaremos muito bem.” 292

O fato é que no meio da “miséria reinante” havia o Zé Pereira. O carnaval popular como fator sublimador:

Ele foi essencialmente o carnaval do pobre. Tão fácil, no meio da miséria reinante, nessa crise que parece acompanhar e perseguir o brasileiro através dos anos, sair à rua com bombos e tambores, uma camisa qualquer, uma calça de qualquer espécie e fazer barulho, alegrar com um ritmo efusivo as ruas e os bairros, andar por aí ao som de ruídos, rindo e divertindo os outros enquanto se divertem a si mesmos, com o tumulto de um ruído que nem sequer é música mas proclama alegria, que conclama os foliões para os devaneios e as loucuras carnavalescas. 293

Parece que o carnaval para Eneida era também uma espécie de “Pasárgada”, onde os prazeres negados no cotidiano são proporcionados pelo

290 ENEIDA. História do Carnaval Carioca, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1958,

p.41

291 Idem. Ibidem. 292 Idem. Ibidem. p.43 293 Idem. Ibidem. p.48.

ambiente utópico do carnaval em que se instala um processo de inversão. Talvez viesse daí a grande importância que ela dava ao uso das fantasias, inclusive nos bailes que organizava. Elas subverteriam a ordem social; fantasiados todos estavam nivelados; as hierarquias sociais desapareceriam, opondo-se ao mundo real massacrante e hierárquico:

No carnaval, a vestimenta apropriada é a fantasia, um artefato que nos revela um duplo sentido, pois tanto se refere às ilusões e idealizações da realidade [...] Assim, a fantasia carnavalesca revela muito mais que oculta já que uma fantasia representa um desejo escondido, faz uma síntese entre o fantasiado, os papéis que representa e os que gostariam de representar. 294

Foi o mundo literário que despertou em Eneida o gosto pelo carnaval. No final dos anos 1920, estreia em livro publicando “Terra Verde”, exaltando o contexto amazônico. Os versos livres foram inspirados em Manuel Bandeira, de quem lia com especial predileção o livro “Carnaval” publicado em 1919, especialmente Canção das lágrimas de Pierrot, Arlequinada, Rondó de colombina, Sonho de uma terça feira gorda e Poema de uma quarta feira de cinzas. O primeiro poema citado acima evidencia a contradição entre a alegria exterior da festa carnavalesca e a tristeza sem fim do eu-lírico que chora suas amarguras:

Ai dele! E essa alegria, Aquelas canções, aquele Surto não é mais, ai dele! Do que uma imensa ironia Fazendo à cantiga louca Dolorido contracanto,

Por dentro borbulha o pranto Como outra voz de outra boca.

O carnaval para Eneida era uma forma de resistência. Apesar da tormenta interna, da miséria, das crises, da violência policial, o carnaval persistia, ainda que internamente sobrasse dor: “Grande e bela lição acaba de

294 DA MATTA, Roberto da. Carnavais, malandros e herois: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ed. Rio de Janeiro. Rocco, 1997. p.61.

dar- mais uma vez- o povo carioca. Miséria, fome, vida cada vez mais cara, falta de tudo, e há muitos anos não tinha o carnaval uma força tão grande, uma tão pujante alegria.” 295

Alguns anos depois, em crônica publicada no Diário de Notícias na década de 1960, ela reafirmou a resistência do carnaval e ao mesmo tempo seu caráter utópico. Pelo menos durante o carnaval era como se estivéssemos “no melhor dos mundos”:

O carnaval está aí, minha gente. As músicas são ruins? O dinheiro é pouco ou nenhum? As proibições são tremendas? A situação do país é calamitosa? Nada importa. Quem é carnavalesco sai em frente, samba, canta, dança, como se estivéssemos no melhor dos mundos.296

Como é possível perceber, muitas vezes as crônicas carnavalescas corroboram o discurso presente no livro História do Carnaval Carioca a respeito do carnaval popular como forma de resistência. Mas como já foi sublinhado na primeira parte, a Eneida cronista tinha como função primeira a denúncia. Justamente pelo “frescor” próprio da crônica com seu olhar revelador sobre o cotidiano, o que não parece ser a função primordial do livro, uma obra mais perene. Há a preocupação em ressaltar o caráter combativo do carnaval, mas tudo leva a crer que a autora pretendia com o livro fundamentalmente preservar a memória desse carnaval e dar visibilidade ao seu trabalho de pesquisa. Voltando a questão da ligação da historiografia de Eneida com a poética de Manuel Bandeira, podemos remontar sua origem quando a jovem Eneida, ainda no Pará, ligou-se ao movimento modernista. Quando se mudou para o Rio teve como amigos mais próximos gente do mundo literário como Carlos Drummond, Antônio Bandeira, Carlos Ribeiro e Jorge Amado. De Manuel Bandeira, de quem foi vizinha de porta, além dos versos livres, herdou certa predileção em sua historiografia e em suas crônicas pelos desvalidos e humildes. E era somente no carnaval que se podia representar naqueles dias de folia a utopia, o mundo ideal, que Eneida queria construir.

295 ENEIDA. Crônica publicada em 18/2/1959 no Jornal Diário de Notícias. Fonte: Hemeroteca

Digital da Biblioteca Nacional.

296 Idem. Crônica publicada em 18/2/1966 no Jornal Diário de Notícias. Fonte: Hemeroteca

Essa proximidade com Bandeira revela-se também sob a forma de poema. Ele foi fruto de uma visita do poeta a um festival de violeiros e tudo leva a crer que estava na companhia de Eneida e de outros ícones do modernismo e da Comissão de Folclore. Depois de ouvir Otacílio Batista, Bandeira diz que não era poeta não, poeta era quem tinha capacidade de improvisação, ou seja, o cantor e compositor popular. A cultura erudita do poeta se rendia ao popular, vetor importante para a definição nacional incorporado pelo pensamento modernista:

[...]

A Eneida estava boba, O Cavalcanti bobão,

O Lúcio, o Renato Almeida, Enfim toda comissão. Saí dali convencido Que não sou poeta não; Que poeta é quem inventa Em boa improvisação [...]297

Mas o carnaval tinha outra faceta: era através dele que se podiam denunciar as mazelas sociais. Isso desde o aparecimento das primeiras Sociedades Carnavalescas. Depois de uma pequena introdução em que Eneida se dedicou a contar a origem dessas sociedades, “confiando na informação de vários historiadores” (que ela não diz quais são) e numa crônica publicada por José de Alencar em 14 de janeiro de 1855 no Jornal Correio Mercantil ela assegura que a primeira sociedade nascera nesse mesmo ano e chamava-se “Congresso das Sumidades carnavalescas”.

Na reconstrução dessa história esbarra nas dificuldades de acesso às fontes já que a maioria dessas sociedades não tinham seus próprios arquivos ou os mantinham incompletos, dessa maneira reconhece que a única fonte disponível era mesmo a imprensa:

297 BANDEIRA, Manuel. Poema intitulado “Saudações aos cantadores” publicado no Jornal do Brasil em 11/12/1959. Bandeira teve uma relação frutífera com músicos populares que como ele frequentavam o ambiente boêmio e musical da Lapa. Via em Sinhô o símbolo por excelência da cultura carioca.

Difícil é, no entretanto, restabelecer hoje a história de cada um desses clubes; somente os Tenentes do Diabo possuem um arquivo, se bem que ele não represente nem a metade do que seria necessário para o levantamento do passado baeta. Pode–se conhecer agora apenas a história de nossos grandes clubes através do noticiário dos jornais de várias épocas. 298

E através das notícias de antigos jornais que Eneida revela a atuação política dessas sociedades carnavalescas. O carnaval era fuga, utopia, mas também resistência e luta já que estava desde os primeiros tempos junto do povo e defendendo causas democráticas:

Tinham muita razão os jornais do passado quando intitulavam os grandes clubes carnavalescos- Tenentes, Democráticos e Fenianos- de “heróis do carnaval”. Defensores vigilantes e combativos da nossa festa máxima, souberam eles, defendendo-a, tomar partido ao lado do povo pelas causas democráticas. Entre risos, guizos e galhofa, viveram os graves momentos políticos do país.299

Em fins do século XIX, esses clubes se envolveram pessoalmente na questão abolicionista e republicana. A vida política e carnavalesca se confundia, é sob essa perspectiva que se pode entender melhor a historiografia de Eneida. Seu discurso passa pela defesa das “raízes do samba” que ela considerava serem os ranchos, as grandes sociedades e clubes carnavalescos. Pelo elogio ao carnaval do subúrbio, pela ideia de que o samba não deve ser conspurcado por fatores externos como a influência estrangeira, nem por fatores internos como a interferência do Estado na oficialização da festa, bem como um espaço de resistência ,utopia e também instrumento de protesto: “Estamos na beira de um abismo... e em torno de sua boca escancarada brincamos com ou sem pandeiros cantando os sambas desse nosso momento de miséria e desventuras.”300

298 ENEIDA. História do Carnaval Carioca, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1958,

p.61.

299 Idem. Ibidem. p.68.

300 Citado em SANTOS, Eunice Ferreira dos. Eneida: memória e militância política. Belém:

No livro ela destaca ainda a permanência do traço combativo do carnaval carioca: “O ânimo de luta arrefeceu nas sociedades carnavalescas? Apesar da grande divisão hoje existente entre os homens, apesar das profundas divergências políticas de nossa época, ainda nesse ano de 1957, os Tenentes distribuíam esses versos”:

Brasil de mil e quinhentos Brasil do Império e de agora, Dá ao teu povo alimentos, Lembra-te que o povo mora No chão, sem teto e sem água! O povo, em troca, dará

Em vez de queixa ou de mágoa, Ouro, trabalho e maná!

Então um lustro, de fato Valerá dez vezes mais!301

E Eneida reitera: o que querem os tenentes? “O progresso do Brasil, a ordem, de que o país necessita para garantir a construção do seu progresso. Como todos nós os carnavalescos cariocas ainda lutam pelas liberdades democráticas. Momo os abençoe.”302 Ou seja, o carnaval era

definitivamente uma festa popular e politizada.

Continua a destacar o caráter politizado da festa agora nos pufes espécie de desafio em versos que as sociedades e clubes como Fenianos, Tenentes e Democratas publicavam nos jornais no sentido de exaltarem a si próprias e diminuir o mérito das adversárias. Esses versos não eram assinados ou muitas vezes recebiam pseudônimos. Por isso Eneida não conseguiu chegar à conclusão de quem os fazia. Diz que ainda seria uma pesquisa por fazer principalmente para aqueles entendidos de poesia. Isso porque dentro das seções carnavalescas dos jornais, a crônica e os pufes correspondiam a sua parte mais literária. A representação do carnaval nos jornais, não se dava de forma puramente objetiva, distanciada e jornalística. Sendo o próprio cronista um mediador entre o hegemônico (já que trabalhava para a grande

301 ENEIDA. História do carnaval carioca. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1958.

p.71.

imprensa) e o subalterno (dava visibilidade ao carnaval popular), as crônicas e os pufes também resultavam um tanto ambíguas. Eram presas à realidade já que muitos desses pufes faziam críticas sociais (como destaca Eneida), descreviam os bailes e préstitos, mas eram completamente abertas ao lirismo e ao devaneio convocando com linguagem jocosa os foliões à orgia, à loucura e ao prazer.303

Embora dissesse que “nem só de política viviam os foliões”, nesse jogo de lembrar e esquecer que faz parte da história, Eneida deu maior destaque e transcreveu pufes que tinham teor de crítica social. Como aqueles que defendiam o fim da escravidão, voto feminino ou, nas palavras da autora, tinham “tiradas sociológicas”, como ilustra o pufe abaixo:

Honrada burguesia! Heróico proletariado! Donzelas que julgais o mundo uma magia Poetas que aceitais um mundo imaginário Padrecos que abraçais o trono e a fidalguia...304

É bom lembrar que a imprensa foi um dos espaços da sociedade civil onde se tratava a luta pela cultura. Se de um lado a imprensa e seus cronistas ajudaram a transformar o carnaval popular em cultura comum, nacional-popular, por outro, sendo um veículo movido a interesses econômicos e políticos particulares, permitia e aceitava determinada crítica social não toda crítica social. Eneida, escrevendo para veículos da grande imprensa, não coloca isso em discussão. Se a imprensa ajudou os dominados a reconstruir a sua memória a partir da mediação desses cronistas também impunha barreiras seguindo seus próprios interesses.

A questão econômica determinou o fim dos pufes publicados em jornais de grande circulação. Eles passaram a cobrar pela publicação dos pufes fazendo com que os próprios clubes carnavalescos os publicassem em jornais particulares a serem distribuídos para o público nos dias de folia.

303 Cf. COUTINHO, Eduardo Granja. Os cronistas de Momo: imprensa e Carnaval na Primeira República. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006.

304 ENEIDA. História do Carnaval Carioca. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1958,

Diante desse cenário, em tom um pouco nostálgico, Eneida conclui: “Tudo ficou muito difícil nesta cidade.”305

Ainda falando sobre as sociedades, os carros de críticas tinham papel importante no caráter politizado do carnaval carioca que Eneida quis enfatizar. Embora, novamente em tom nostálgico, percebesse que [...] “hoje aparecem mais fracos, menos combativos. Há uma certa acomodação no povo brasileiro, até mesmo nos tão destemidos carnavalescos cariocas.” E aproveita e critica duramente os governantes que ameaçavam a liberdade de expressão:

O direito à liberdade de crítica sempre foi neste país um espantalho para os governantes. Mas as sociedades carnavalescas vieram, através de diversos governos e até mesmo da ditadura, fazendo desfilar sob censura, seus carros de crítica.306

Ao escrever a história dessas sociedades, Eneida buscava, assim como Mariza, as raízes do “verdadeiro carnaval carioca”. Mas diferente dela que procurava essas raízes numa espécie de atavismo étnico, cujas origens remontam as senzalas e num segundo momento projeta essas origens sobre a modernidade urbana num samba higienizado, Eneida defende um projeto de cultura popular específico que se confronta e pretende ser vitorioso em relação a esse. Uma cultura popular vitimada pelo capitalismo; pela carestia; pela falta de liberdade política; pela forte ordenação do Estado na organização da festa; pela repressão policial, enfim, isso nos leva a analisar criticamente a aparente unicidade do termo cultura popular e raízes populares, ou mesmo, do que era considerado o verdadeiro samba. Havia na verdade uma intensa disputa entre esses discursos, já que o debate intelectual nesse período foi marcado por

305 José Ramos Tinhorão também trata do desaparecimento dos pufes: “Com a decadência a

partir da década de 1950, dos clubes promotores da exibição de carros alegóricos- acelerada nos anos 60 pela transformação dos desfiles das escolas de samba no principal evento do