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PARTE I: SEPARANDO O JOIO DO TRIGO

3. A imprensa “amiga” do carnaval

A imprensa era meio de sobrevivência, arma de crítica social e “amiga” do carnaval. Quando tratou da festa, seja em suas crônicas ou mesmo no seu livro História do Carnaval Carioca (1958), Eneida nunca apresentou um olhar crítico sobre a participação da imprensa na transformação do Carnaval popular tão defendido por ela. Não foi capaz, ou não quis tratar da imprensa como um dos lugares onde se travou uma luta pela existência possível de uma cultura popular que era amplamente combatida em fins do XIX .Ou seja, os jornais e cronistas ao tratarem do carnaval popular deram chance do carnaval de negros, mulatos e pobres de existir, mas ao mesmo tempo, também foram importantes instrumentos de controle desse carnaval limando sua faceta mais “violenta” e indesejável como o entrudo e os cordões.

A imprensa já reconhecia a cultura popular e o povo como sujeito cultural. Agora cabia a ela a busca de um consenso, a construção de uma cultura comum, do nacional-popular. Ao simplificar o debate colocando a imprensa como parceira inconteste do carnaval, Eneida deixou de refletir sobre sua própria atividade de cronista, que junto com os jornais tinham uma relação

58 MORAES. Eneida de. Aruanda. Série: Lendo o Pará. Belém: SECULT;FCPTN,1989, p.128. 59 Idem. Ibidem. p.162.

dialética com a cultura popular. Foram ao mesmo tempo espaço negociado de existência e possibilidade dos dominados de construção da memória, mas também trataram de adequar a festa a um padrão burguês aceitável e no fundo “oficializaram” a festa muito antes do Estado varguista entrar em ação (alvo de críticas constantes de Eneida como discutiremos mais adiante).

Curioso notar que uma cronista com uma história de militância no partido comunista tenha considerado símbolo do carnaval “original” aquele em que era possível ver personagens da commedia del’arte como Arlequim, Pierrô e Colombina, já que eles sempre foram identificados com um carnaval fidalgo e burguês. Em homenagem a esses personagens, Eneida dedicou-se pessoalmente a partir de 1957 na organização de bailes que procuravam reviver os velhos carnavais chamados de “Baile dos Dominós” e, a partir de 1958, organizou anualmente o Baile do Pierrot. Em críticas e depoimentos sempre tratava o carnaval do subúrbio como último reduto desse carnaval de “antigamente” porque lá ainda se podia encontrar mascarados.60

Aos olhos de Eneida a imprensa foi uma das responsáveis pela grandeza do carnaval carioca, para sua “evolução” até a “conquista que hoje ostenta: o mais belo carnaval do mundo”. Assim se refere à sua importância no livro História do Carnaval Carioca:

Muito e muito deve o povo carioca à imprensa do passado. Os jornais de várias épocas não apenas se encarregavam- como os de hoje- de noticiar festas, batalhas, descrever o esplendor dos bailes ou a alegria das ruas. Fizeram mais: promoveram concursos, criaram inovações, estimularam grupos e cordões; iam, muito antes da chegada de Momo, correr sedes de clubes, entrevistar foliões, interessando o povo, despertando entusiasmos adormecidos, mortos ou amolecidos de carnavalescos, provocando e incentivando a alegria da população.61

60Em depoimento à Miécio Tatit para a série “Ciclo de Intelectuais brasileiros” em 22/2/1967

Eneida reafirma essa posição ao ser perguntada sobre como reviver carnavais antigos: “Quem então quiser ver o carnaval do passado (...) esse carnaval continua no subúrbio(...) há três anos atrás fui a Madureira, uma beleza. Você querendo encontrar os mascarados de antigamente estão lá todos em Madureira.”

61 ENEIDA. História do Carnaval Carioca. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 1958.

Eneida cita o combate ao entrudo por parte do O Jornal que em 1886 se intitulava o “paladino do carnaval chic” e da importância de O país para aumentar os dias de festa. Faz referência aos primeiros cronistas carnavalescos como Machado de Assis, Olavo Bilac, João do Rio, em fins do século XIX, para em seguida listar o nome daqueles cronistas que falavam exclusivamente de carnaval como Vagalume, Efegê, Perú dos Pés Frios, Bocage e tantos outros. Segundo ela, esse grupo constituiu a “turma dos Cronistas Carnavalescos”, depois “Centro de Cronistas Carnavalescos” e finalmente “Associação dos Cronistas Carnavalescos”. Lamenta que ao contrário do início do século XX, em fins da década de 1950, os “homens de letras” não mais declarassem seu amor pelo carnaval. Tudo leva a crer que dentro dos jornais já era possível perceber a divisão entre os cronistas/críticos de rodapé, que se dedicavam a assuntos mundanos e a um gênero literário considerado “menor”, daqueles que faziam crítica a partir de espaços institucionais como a universidade ou cronistas dedicados aos assuntos “sérios”:

Ainda no nascer deste século, os escritores tinham coragem de vir de público dizer seu amor pelo carnaval. O progresso, a chamada civilização, vestiu os homens em geral e também os escritores de tolos preconceitos. Poucos, muito poucos os homens de letras e os artistas que tem hoje em dia a coragem de vir de público declarar entranhado amor ao carnaval; pelo contrário: para não parecerem banais se sentem no dever de negá-lo, de acusá-lo de nojento, de considerá-lo obsceno, que sei lá! (...) Isso hoje, porque ontem o povo carioca sempre contou com seus escritores para os folguedos e as folias carnavalescas.62

Dá destaque ao jornal Gazeta de Notícias que em 1906 anunciava “(...) pela primeira vez nesta cidade e ao que parece no mundo, porque nós somos originais e não mendigamos ideias, vai efetuar-se um concurso entre os grupos, as sociedades, clubes, etc.”63 Foi o primeiro jornal a promover

concurso entre cordões, clubes e sociedades carnavalescas e foi assim pelo menos até 1930. Em seu relato, Eneida segue descrevendo o apoio dos

62 ENEIDA. História do Carnaval Carioca. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 1958.

p.202.

principais jornais da época para a realização do carnaval, inclusive ajudando na arrecadação de dinheiro para que os cordões e clubes pudessem desfilar. Não é possível negar que graças a esse apoio esses grupos podiam brincar o carnaval sem medo de apanhar da polícia, mas para isso tiveram que atender alguns requisitos e se submeter às regras impostas por esses veículos da imprensa no intuito de “disciplinar” a festa. Uma das estratégias mais conhecidas, sem dúvida, foi a “entrega dos estandartes” nas redações dos jornais. Como destaca Eduardo Granja Coutinho eles estavam realizando na verdade uma “pré-oficialização” da festa:

Antecipando o governo Vargas, os jornais realizaram uma espécie de ‘pré-oficialização’ da festa. Assim como aconteceria a partir dos anos 1930, quando o Estado tratou de hegemonizar os movimentos sociais e a cultura das camadas baixas, a imprensa desde o início do século XX se ocupou do Carnaval popular, reconhecendo-o, mas reinterpretando e integrando seus signos ao sistema de valores da cultura dominante. (...) Desde os primeiros anos do século XX, era praxe, dias antes do Carnaval, que os jornais expusessem, em seus saguões, os estandartes dos ranchos e cordões que iriam desfilar e participar das competições. Essa prática tinha uma clara intenção pedagógica, na medida em que só se dava acolhida e visibilidade aos grupos que acatassem os padrões disciplinares difundidos pelos jornais.64

O curioso é que embora fosse crítica ferrenha da oficialização do carnaval após 1930, Eneida muito possivelmente não arriscou esse tipo de interpretação, por depender da imprensa para sobreviver. Ela não viu a atuação da imprensa como forma de controle e disciplinarização da festa limitando-se a reproduzir como os jornais antigos noticiavam esse evento e a enaltecer a importância dos periódicos para o sucesso do carnaval:

Muito antes da semana carnavalesca, os cordões começavam a ensaiar; (...) No sábado à tarde começavam a ‘batucar’ e só silenciavam na quarta-feira, com o sol nascendo. Mas faziam uma pausa no batuque para ainda no sábado gordo irem buscar, na redação dos jornais, os seus estandartes que ali estavam em exposição (...) os estandartes eram o ponto alto na

64 COUTINHO, Eduardo Granja. Os cronistas de Momo: imprensa e Carnaval na Primeira República. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006. p.63.

vida de um cordão. Pela sua confecção, pela maneira com que seriam apresentados, os associados de um clube muitas vezes brigavam às sérias. Pintados ou bordados à mão, com fios de ouro e alegorias, os estandartes representavam tanto aos cordões que os jornais chegavam a descrever suas minúcias.65

Eneida lamenta que os carnavais do presente não recebam mais o incentivo da imprensa. Para que o nosso carnaval, segundo ela, recuperasse o brilho, o esplendor, a alegria e o entusiasmo do passado era preciso que nossos jornais voltassem a estimular os foliões, já que “com seus prestígios na massa popular e suas forças orientadoras da opinião pública”66 eles foram

essenciais para a implantação dos folguedos de Momo no Rio de Janeiro.