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A crença jesuíta na incompatibilidade entre liberdade e consciência

3 CAPÍTULO 2 – “ARRAIGAR-LHES NOS CORAÇOENS HUM SANTO AMOR E

3.5 A crença jesuíta na incompatibilidade entre liberdade e consciência

Em 1751, Thomas Lynces, provincial da Companhia de Jesus na Bahia, enviou uma carta para o rei D. José I na qual relatou alguns dos frutos espirituais que segundo o religioso eram comumente colhidos, na província do Brasil, devido ao trabalho dos companheiros de Santo Inácio, tanto através do ensinamento das letras divinas e humanas quanto por meio das pregações e confissões que eram realizadas em seus próprios templos, pelas doutrinas nas praças, nos hospitais e nos cárceres. Lynces observou que, no Brasil, o rebanho de origem europeia estava em menor proporção, por outro lado, predominava a população de ascendência africana conduzida até ali por meio dos negócios com a África e com este segundo grupo humano, o trabalho era incansável, pois tinham de catequizá-lo e prepará-lo para receber a confissão e a comunhão; sendo que o trabalho aumentava ainda mais porque por mandado de alguns párocos assumiam a tarefa de acudir a moribundos e enfermos, principalmente na cidade da Bahia.

Segundo o provincial dos jesuítas, os missionários dos aldeamentos indígenas experimentavam a mesma situação, uma vez que tinham que amparar a todos nos momentos de grande necessidade nos quais eram chamados frequentemente pelos moradores circunvizinhos para

administrarem os sacramentos sendo as vezes as distancias de q. são de mais de 2, e 3 dias de viagem, levando a este fim altar portátil pa. dizer missa, e comungalos depois de confeçalos por cuja cauza necessitão as aldeas de 2 sacerdotes pa. q. nas occaz.es de acudir aos estranhos, não fiquem os de caza desprovidos. A isto se tem posto alguma provida. nos lugares, aonde são mais frequentes estas occazioens e não se tem posto em todas por falta de sogeitos e muito mais agora q. obedecendo a ordem de V. Mage. Forão dous sacerdotes pa. Santa Catharina, dous pa. o Matto Grosso, e dous pa. Goyazes146.

O jesuíta advertiu ao rei quais eram as principais áreas de atuação dos inacianos, a educação nos perímetros urbanos e a assistência aos indígenas no interior da colônia, mas fez questão de destacar que tinha a função de suplementar as ações dos párocos, sendo, portanto, fundamentais em mais esse espaço de ação religiosa. Se mais não fazia, observou o

146

Cópia da carta do provincial da Companhia no Brasil enviada para o rei D. José I, anexada à consulta do Conselho Ultramarino sobre as ações da Companhia de Jesus no Brasil. AHU, CU, Bahia- Avulsos, cx. 110, doc. 8633.

provincial, era por causa de algumas dificuldades que a Companhia tinha que enfrentar, dentre as quais, citou as dificuldades financeiras pelas quais passavam o Colégio da Bahia que estava impossibilitado de formar o número necessário de sacerdotes.

É fundamental destacar que as ações relatadas por Thomas Lynces, nos anos de 1750 e 1751, ocorreram em um Ano da Misericórdia, pois aconteceram 50 anos depois da missão realizada pelos jesuitas Joseph Bernadino e Domingos de Araújo em 1701,ou seja, pela concepção da Igreja católica foi um período ainda mais propício para a realização de missões. Quando o provincial relatou as ações desenvolvidas pelos missionários, não foram pequenos os números de batismos, casamentos, extrema-unção, confissões, reconciliações e pregações, obras estas feitas não apenas na Bahia, mas também, no Ceará, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro. Desta forma, concluiu o jesuíta que muitos eram os frutos das santas missões realizadas pelos “missionários vollantes, q. sahindo dos Collos

. discorrerão pellos Reconcavos das cides; e seos certões mais remotos, e dilatados, por serem os moradores destas partes, os mais necessitados de pasto espiritual pa. suas almas”147.

A partir das informações prestadas pelo provincial Thomas Lynces é possível concluir que os jesuítas atuaram através das missões do interior pelo menos até a sexta década do século XVIII, e também que o objetivo das missões continuou o mesmo, ou seja, disciplinar as condutas morais e religiosas da população colonial através do ensino da doutrina católica. Federico Palomo afirma que este tipo de missão tinha como primeiro objetivo fazer “a conversão interior dos fiéis (e, através dela, a transformação dos seus comportamentos morais e religiosos)”. 148

Controlar os indivíduos e a própria sociedade era uma das finalidades da labuta jesuítica e o argumento apresentado ao governador geral do Brasil, o conde André de Mello e Castro, em 1738, pelo prelado Plácido Nunes em resposta à sugestão de extinção dos aldeamentos indígenas feita pelo irmão Diogo da Conceição corrobora essa interpretação149. Diante daquela, o jesuíta foi bastante enfático ao realizar a sua réplica, afirmou que seria um grave erro colocar os indígenas em liberdade e que menos que isso tinha sido pedido pelos

147 Ibid.

148 Federico Palomo. A contra-reforma em Portugal 1540-1700. –Lisboa: Livros Horizontes, 2006, p.83.

149 Sobre a proposta de extinção dos aldeamentos apresentada pelo donato Diogo da Conceição, ver o capítulo 1 desta dissertação.

huguenotes, na França, e pelos protestantes, na Alemanha, “porq. estes pediam liberdade de consciencia, sendo termos incompatíveis, liberdade e consciencia”.150

Não resta dúvida que o alvitre de Conceição tinha como objetivo facilitar a exploração do trabalho indígena e integrar plenamente os nativos à economia colonial, mas o religioso considerou que tal ideia era um absurdo, pois na sua concepção, os índios precisavam continuar tutelados. A crença do religioso é que tendo a liberdade física, os nativos retornariam aos seus antigos hábitos, cedendo aos instintos naturais, principalmente, os sexuais. Para Plácido Nunes a consciência era estágio mental da vida humana que para ser atingido necessitava que o homem abandonasse as suas tendências naturais enquanto animal e internalizasse os preceitos católicos, este era o caminho que faria com que o homem alcançasse uma vida superior, vivendo de acordo com a palavra de Deus, e consequentemente, portando uma consciência verdadeira.

O prelado foi ainda mais severo em sua arguição referente à necessidade de impor limites ao alvedrio dos homens, e apontou os riscos que o Estado e os próprios homens corriam diante de tal postura, assim, alegou que

mais distantes são ainda entre sy toda liberdade e vassalagem. O jugo de Christo he pago, mas pago que nos põem a nossa liberdade, como disse São Paulo. Porque nos prohibe as liberdades, q. nos arrastam de ser homens a ser brutos151.

De acordo com o religioso, sendo o fim principal da monarquia portuguesa, a aquisição de vassalos para Cristo e para a Igreja, pesava-lhe que naquele momento estivesse em cogitação o aumento do Estado com vassalos conservados em total liberdade e o que era pior é que semelhante ideia tinha partido de uma pena portuguesa. Para arrematar, declarou que “quem não sabe como as leys se fundão e conservão as repúblicas, ainda não sabe que couza é república”152

. O jesuíta lembrou, assim, a importância que a Companhia de Jesus tinha na manutenção do controle da sociedade pela monarquia portuguesa.

Como já foi demonstrado até aqui, a ação missionária jesuítica na América portuguesa não esteve restrita aos nativos nem tampouco à população de origem africana, pois abarcou também o colono de procedência europeia. Evidenciou-se ainda que a posição que cada indivíduo ocupava na hierarquia social foi determinante para a sua relação com a obra

150 Carta contendo a resposta de Frei Plácido Nunes a representação de donato Diogo da Conceição. Arquivo Público do Estado da Bahia- APEB. Seção colonial- Ordens régias. Doc. 104, f.3.

151 Ibid., f. 3. 152

evangelizadora. É inegável, por exemplo, que os indígenas dos aldeamentos e os negros das senzalas sofreram um processo mais severo de doutrinação religiosa do que o colono, assim como, é evidente que alguns colonos que conheciam as regras da doutrina católica poderiam, caso necessitassem, fazer alguns ajustes das suas condutas para evitar reprimendas dos missionários. Por exemplo, os fazendeiros do recôncavo da Bahia extinguiram os casos de concubinatos na iminência da visita dos missionários e, com isso, evitaram alguns problemas.

A missão itinerante parece ter sido uma estratégia eficiente encontrada pela Igreja e por algumas ordens religiosas como foi o caso da Companhia de Jesus para assistir à população do interior da Bahia. Cândido da Costa e Silva afirma que essas missões, “sugiram para suprir a omissão negligente dos párocos e mesmo sua ausência junto às populações rurais”153

. O fato é que esse tipo de ação desenvolvida pela Companhia de Jesus foi decisiva para fazer o enquadramento religioso, se não de toda, pelo menos de uma parte da população da colônia. Portanto, o ato do missionário do interior contribuiu sobremaneira para emoldurar a consciência do homem colonial, assim como foi responsável pela “perspectiva penitencial em que se enquadrou o catolicismo do povo”154

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153 Cândido da Costa de Silva. Roteiro da vida e da morte: um estudo do catolicismo no sertão da Bahia. –São Paulo Ática, 1982, p.33.

154Cândido da Costa de Silva. Roteiro da vida e da morte: um estudo do catolicismo no sertão da Bahia. –São Paulo Ática, 1982, p.34.

4 CAPÍTULO 3 – OS ESPINHOS E OS ABROLHOS ENCONTRADOS