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A jurisdição do bispo e a ação dos missionários

4 CAPÍTULO 3 – OS ESPINHOS E OS ABROLHOS ENCONTRADOS PELOS

4.3 A jurisdição do bispo e a ação dos missionários

Como já foi destacado no segundo capítulo desta dissertação, Cândido da Costa e Silva explica que no século XVIII, já não se admitia mais a realização de missões itinerantes sem a autorização do bispo. Até o final do século XVII, uma liderança local poderia solicitar, diretamente, aos missionários que realizassem uma missão, deixando o bispo e até mesmo o pároco alheios ao processo.183 Desde o início do século XVI, as ordens regulares contaram com o amplo apoio da Coroa portuguesa e do próprio papa, condições estas que as fez adquirirem grande proeminência na América portuguesa. Soma-se a este fato, a precária organização diocesana e aí, talvez, seja possível entender por que os missionários regulares parecem ter gozado, em algumas situações, de uma autonomia que não estava previsto no ordenamento legal da Igreja no qual o bispado representava o centro organizacional da cristandade.

Pedro Paiva, tomando como exemplo a geografia diocesana de Portugal no período moderno, observa que

o espaço religioso era atravessado por vários sedimentos, criadores de uma rede extremamente densa, cujas fronteiras, quando existiam, nem sempre, são fáceis de delimitar, onde vários níveis se sobrepunham, em função dos múltiplos poderes, lugares sagrados e representações mentais que nele confluíam184.

O historiador deixa claro que sua incursão limita-se à organização administrativa da diocese, e que é preciso ficar atento para o fato de o episcopado não ser a única força a estruturar o espaço sagrado ou da esfera das instituições vinculadas à ação da Igreja. Existiam, portanto, outras forças como a Inquisição, as diversas ordens religiosas, as confrarias, as igrejas, os locais em que albergavam relíquias, etc. Partindo do diagnóstico feito por José Pedro Paiva sobre o fato da ação da Igreja católica em Portugal no período moderno ter sido desenvolvida a partir diversas forças; bem como, da constatação de que, após o Concílio de Trento, o bispado tornou-se o centro organizador da vida cristã, procura-se analisar, aqui, tensões aparentes entre os missionários jesuítas na América portuguesa e a mitra.

183

Cândido da Costa de Silva. Roteiro da vida e da morte: um estudo do catolicismo no sertão da Bahia. –São Paulo Ática, 1982, p.36.

184 José Pedro Paiva. “Geografia diocesana”. IN: Antonio Camões Gouveia, David Sampaio Barbosa e José Pedro Paiva (coord.). O Concílio de Trento em Portugal e nas suas conquistas: olhares novos. Lisboa: CEHR- UCP, 2014, p.187.

Em 19 de julho de 1732, D. João V enviou uma carta ao seu general de mar e terra do Estado do Brasil, Conde de Sabugoza, tratando de algumas questões referentes às missões e os missionários do arcebispado da Bahia. Na correspondência, o monarca disse ao vice-rei que por meio de uma carta do arcebispo daquele Estado, Dom Luís Álvares de Figueiredo, tomou conhecimento de que havia naquele arcebispado 24 paróquias com o nome de missões, administradas e curadas por religiosos da Companhia de Jesus, do Carmo, de São Francisco, capuchos italianos e carmelitas descalços. O prelado deixou clara a sua insatisfação com a autonomia que os religiosos regulares desfrutavam, pelo menos, essa era a sua visão; assim queixou-se que os religiosos “insentos que se achão intrometidos pelo meyo dos distritos das parochias sujeitas a jurisdição ordinária, e tão insentos que em nada reconhessem, nem a elle arcebispo como prelado dessa diocese, nem aos religiosos parochos.185

O arcebispo lamentou-se ainda que os religiosos não respeitavam a sua jurisdição, e mais, não lhe davam conta de como administravam os sacramentos, não cumpriam as obrigações paroquiais e não se sujeitavam à sua visita ordinária. Destacou, também, que os índios paroquianos agiam de forma semelhante, “não procur[am] jurisdição ordinária porque não recorrem a elle arcebispo para couza alguã, nem ainda para as despenças matrimoniaes, e se não sogeit[am] a vizita do ordinário”.186 Como última reclamação, o arcebispo afirmou que os missionários regulares se consideravam tão isentos de sua autoridade que administravam os sacramentos da penitência aos súditos daquela diocese sem a sua aprovação.

Para resolver a matéria em questão, D. João V determinou que fosse criada uma junta de teólogos e juristas. Foi ordenado ao vice-rei que avisasse ao arcebispo sobre as providencias tomadas, além disso, deveria comunicar aos religiosos regulares que o rei tinha decidido interinamente que as referidas religiões dessem jurisdição ao arcebispo. Também determinou que se fosse encontrado pároco culpado, ignorante ou insciente na língua, nos momentos de visitas do arcebispo ou de seus visitadores às igrejas administradas pelos regulares, o arcebispo deveria removê-los e remetê-los aos seus prelados que deveriam escolher outros religiosos que atendessem as exigências.

185 Carta do rei de Portugal ao vice-rei do Brasil sobre a apresentação que lhe fez o arcebispo dessa capitania a respeito das missões e dos missionários. Arquivo Público do Estado da Bahia- APEB. Seção colonial- Ordens régias. Livro vol.28, Doc. 94, f.1.

186Carta do rei de Portugal ao vice-rei do Brasil sobre a apresentação que lhe fez o arcebispo dessa capitania a respeito das missões e dos missionários. Arquivo Público do Estado da Bahia- APEB. Seção colonial- Ordens régias. Livro vol.28, Doc. 94, f.1.

Talvez, a autonomia dos missionários que tanto desagradava ao arcebispo tenha sido fruto do fortalecimento das ordens regulares que, após séculos na colônia, conseguiram amealhar riquezas e influência política no seio da sociedade. Somam-se a isso, as inúmeras dispensas concedidas pelos Sumos Pontífices e os diversos monarcas portugueses “para que os regulares pudessem exercitar o officio de curas, administrando os sacramentos aos índios”187

, como afirmou D. José I na carta enviada ao Conde dos Arcos em maio de 1758. As reclamações feitas por Dom Luís Álvares de Figueiredo, em 1732, sinalizam para o fortalecimento da mitra em relação a outras instituições religiosas que atuaram na colônia, como foi o caso da Companhia de Jesus que embora submetida à autoridade do arcebispo, sempre gozou de privilégios. Também é importante destacar que, no século XVIII, a presença da Companhia na América e a sua forma de atuação foram bastante questionadas, o caso do donato Diogo da Conceição, analisado no segundo capítulo desta dissertação, é bastante ilustrativo desse contexto de tensão pelo qual os inacianos passaram. Dentre várias constatações feitas a partir da análise daquele episódio, uma merece destaque, para alguns colonos, os jesuítas representavam um obstáculo à exploração plena da mão de obra indígena. Assim, verifica-se que na primeira metade do século XVIII, os obstáculos à ação missionária da Companhia de Jesus na América Portuguesa estavam em processo de aglutinação. Às vezes, as diferenças de interesses políticos, econômicos e sociais colocavam a Coroa e os colonos de um lado e a Companhia do outro, nesses casos, na ótica dos inacianos, a Coroa e os colonos tornavam-se verdadeiros espinhos nos seus caminhos até as “vinhas do Senhor”.

No século XVIII, a Coroa Portuguesa intensificou os esforços para otimizar a exploração da sua colônia na América, e isso exigiu, inclusive, reorientar o projeto que se tinha para os indígenas naquela organização social; isso afetou a forma de assistência religiosa prestada a essa população. Para a segunda metade do século XVIII, Fabrício Lyrio Santos explica que a transformação das aldeias em vilas e a afirmação do ideal de “civilidade” expresso nas leis vigente na colônia na década de 1750 apontam para uma mudança na lógica que orientou o projeto colonizador até aquele momento; a partir da segunda metade do século XVIII, o objetivo fundamental da política colonizadora passou a ser transformação dos índios em vassalos cristãos e civilizados. A ação do missionário tinha como objetivo principal a catequese e, para esse fim, os religiosos desenvolviam uma disciplina mínima, antes do ensino

187Carta do rei de Portugal para o Conde dos Arcos, na qual declara que lhe pertence o provimento das igrejas que se erigirem no estado do Brasil. Arquivo Público do Estado da Bahia- APEB. Seção colonial- Ordens régias. Livro vol.61, Doc. 96, f.1.

dos preceitos da doutrina cristã, porém, a legislação criada, na década de 1750, expressa uma mudança no projeto colonizador que passou a ter a “civilização” com objetivo principal. Nesse novo projeto, a ação do missionário seria apenas um instrumento para a “civilização” dos povos indígenas.188

188

Cf., SANTOS, Fabrício Lyrio. Da catequese à civilização: colonização e povos indígenas na Bahia. – Cruz das Almas: EDUFRB, 2014, p.264.