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3 CAPÍTULO 2 – “ARRAIGAR-LHES NOS CORAÇOENS HUM SANTO AMOR E

3.4 Almas puras entre os espinhos da torpeza

Ainda que, nos relatos dos jesuítas, tenham predominado os exemplos de casos em quepara se salvar as almas humanas foram travadas verdadeiras batalhas contra o inimigo comum do gênero humano, épreciso registrar os episódios nos quais a sociedade colonial manifestou já ter interiorizado, de forma intensa, os preceitos cristãos. Na já citada carta enviada pelos jesuítas ao provincial Francisco de Matos, Jozeph Bernadino e Domingos de Araújo contam que mesmo não tendo faltado trabalhos e dificuldades a serem vencidos, as asperezas e dificuldades dos caminhos, a falta de água e sustento, principalmente na quaresma, uma vez que nos sertões a oferta dos alimentos adequados àquele tempo era pequena. Sendo que o trabalho foi contínuo, alongando-se até as noites, e mesmo entre todas estas indisposições não faltaram motivos para consolação, edificação e admiração “porq. como em toda parte tem Deos seos escolhidos, entre as espinhas e abrolhos dos peccados, q. por este Sertão hiamos arrancar, encontramos com muitas, e mui singulares flores das virtudes, q. Deos nos corações de muitos tinha plantado”143

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Segundo os religiosos, dentre as singulares flores das virtudes encontradas nos momentos das confissões, estavam a pureza de muitas almas que mesmo tendo enfrentado, em muitas oportunidades, os espinhos da torpeza, não havia se perdido. Destacaram também a existência de alguns casais que viviam fraternalmente em estado de continência por consentimento de ambos e pelos votos que tinham feito a Deus. Parece, nesse caso, que os missionários se encontraram com alguns exemplos de vida cristã que eles almejavam para os leigos. Mais uma vez, chama-se a atenção para o fato das descrições dos jesuítas estarem eivadas pelos seus ideais e as suas aspirações da desejada comunidade cristã. Mesmo assim, o dado sobre a experiência ou tentativa de castidade entre cônjuges revela bastante sobre a vida colonial baiana, uma vez que demonstra que alguns leigos interiorizavam e experimentavam modelos de vida piedosa e casta.

Cabe observar que, provavelmente, a decisão dos casais de viver em estado de continência não tenha sido incentivada por aqueles visitantes, ainda que estes tenham

demonstrado satisfação com o fato, uma vez que tal ocorrência sugere a disseminação entre os leigos do ideal de uma vida pia, na qual a castidade era uma condição necessária para aqueles que radicalizavam e tentavam se aproximar ao máximo do estilo de vida de um religioso. Seguiram esse caminho, por exemplo, algumas beatas que decidiram viver fora do século, em uma vida quase contemplativa. No período colonial, muitas mulheres órfãs, solteiras ou viúvas viveram na clausura em seus próprios lares, sendo que, em algumas situações, foi verificado o agrupamento de mulheres com o objetivo de buscar uma vida pia. Riolando Azzi observa que esse modelo de reclusão domiciliar ocorreu não apenas por haver uma pequena disponibilidade de conventos e recolhimentos na colônia, ou mesmo pelas qualificações sociais exigidas das requerentes, mas também porque nem toda mulher que deseja uma vida devota pretendia se recolher a um instituto religioso tradicional como um convento144.

Tamanho sacrifício feito pelos referidos casais, não aponta, obviamente, para uma vida contemplativa, mas para a busca de um modelo ideal de vida cristã, pelo menos, foi isso que os inacianos sugeriram. É interessante notar que na condição de casados, os consortes relatados pelos inacianos estavam liberados para ter uma vida sexual plena, e, ainda que regrada, deveria ser efetivada, pois era condição necessária para o nascimento de novos cristãos e súditos d’El rei.

Os religiosos não informam a faixa etária dos casais, se haviam tido filhos antes do início da abstinência sexual, nem a extensão dessa contenção dos impulsos sexuais. Se alguns pontos referentes às consequências das ações dos colonos não estão devidamente expostos no relato, o mesmo não ocorre em relação ao motivo, pois o celibato indica a renúncia dos desejos carnais e a preocupação com a elevação do espírito. Como as sociedades que possuem os valores cristãos têm o entendimento que os pecados mais graves são os ligados à carne, a renúncia dos desejos carnais realizada por leigos, no período colonial, representava um elevado sacrifício e demonstração de amor a Deus.

Outro caso que os missionários apontaram como amostra de vida virtuosa laica, foi o de uma mulher casada que ao tomar conhecimento da infidelidade do esposo permaneceu nutrindo por ele os mais puros sentimentos e sendo fiel ao laço sagrado estabelecido no casamento, perdoando-o pelos agravos e desprezos que sofria por aquele “viver de portas

144 Riolando Azzi. A vida religiosa no Brasil: enfoques históricos. São Paulo: Paulinas, 1983, p.56. Sobre o tema, confira ainda: Natalie Zemon Davis. Nas margens: três mulheres do século XVII. São Paulo: Companhia da Letras, 1997; Leila Algranti. Honradas e devotas: mulheres da colônia, condição feminina nos conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro: José Olympo; Brasília: EDUNB, 1993.

adentro com as occaziões de suas torpezas”. De acordo com as informações prestadas pelos jesuítas, quando se deparou com a traição do marido, a esposa se recolheu no interior de sua casa e se “ocupava em se encomendar à Deos, e rogar-lhe se compadecesse de seo marido pedindo-lhe fosse servido perdoar-lhe não os agravos q. a ela fazia, mas as ofensas q. cometia contra sua divina Magestade, q. era o q. lhe cauzava maior sentimto”145.

Na argumentação dos religiosos, a esposa atestou a sua postura virtuosa quando renunciou a sentimentos de ódio e de vingança diante da situação ultrajante. Ofereceu amor, piedade, misericórdia e perdão para aquele que a ofendia, e assim, seguiu aos ensinamentos bíblicos que pregam que se deve amar ao próximo como a si mesmo e perdoar aos agressores. É possível que a mulher descrita, nesse relato, tenha sido, pelo menos em parte, idealizada. Trata-se da mulher compreensível que entende a suposta fraqueza do marido e perdoa, além de carregar a responsabilidade de manter a família unida. Com este tipo de documentação dos jesuítas é difícil analisar eventuais contradições em relação às informações prestadas, o que no máximo pode ser feito são conjecturas. Por exemplo, se a esposa deixou de contar aos missionários eventuais emoções negativas em relação ao esposo que a traía é porque sabia que tais sentimentos eram inapropriados para uma mulher cristã, e portanto, piedosa. Cabe, aqui, observar que neste trabalho não se busca uma hipotética “verdade” nos fatos narrados, mas sim entender o porquê das informações prestadas pelos sujeitos históricos.

Tendo em vista os dois casos analisados, é possível perceber que alguns colonos perseguiam o ideal de uma vida santa. Se a condição humana os fazia, inevitavelmente, pecadores, o amor ao próximo, o desapego aos desejos da carne, o sacrifício, e a busca contínua por uma vida proba faziam com que esses indivíduos se aproximassem dos modelos de perfeição de uma vida católica, mesmo “vivendo no século”. Para os jesuítas,aquelas vidas exemplares encontradas no interior da Bahia, eram flores que brotavam nas vinhas do senhor, sendo motivo de grande contentamento, já que, às vezes, os jesuítas advertiam que a terra da colônia era pouco produtiva pela influência perniciosa do demônio.

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