• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3: OS ADOLESCENTES EGRESSOS DO SISTEMA

3.1 O que se espera para o adolescente após o cumprimento de medida socioeducativa

3.1.2 A crença na ressocialização pelo trabalho e pelo estudo

As “ilusões re-” – para usar a expressão cunhada por Batista (2010) – atualmente, sustentam-se na ideia de que o trabalho e a educação formal, aliados ao processo de responsabilização, podem operar transformações na vida dos sujeitos que cometeram atos ilegais. Tanto é que a atual legislação penal brasileira reconhece a remissão de parte da pena

mediante ocupação laboral e estudo28. A associação entre punição corretiva e trabalho é antiga,

havendo registros sobre essa relação desde o século XVI (Lemgruber, 1999, como citado em Julião, 2009).Ela provem de um entendimento igualmente antigo e até hoje vigente que associa o ócio à delinquência. Como explica Lemgruber,

A valoração do trabalho como meio de obtenção de liberdade conjuga-se com a importância que tem essa atividade para o trabalhador por garantir sua subsistência, e nessa interseção se confundem os interesses do trabalhador na prisão com os daquele que se encontra no meio livre. Porém, a aproximação de interesses é relativizada quando percebemos que a condição de subsistência difere da do senso comum, porquanto seu caráter utilitário não se vincula ao lucro nem ao consumo (ao menos não exclusivamente), mas à possibilidade de afastá-los da realidade e de lhes ocupar o tempo livre. O tempo ocioso pode se converter no pior inimigo do recluso, não só porque no entender das autoridades sugere vadiagem e fracasso do tratamento ressocializador, mas também porque favorece o envolvimento em ilegalidades (Lemgruber, 2004, p. 353). A partir da negação do ócio, a associação entre reinserção social e trabalho pressupõe que se está sendo dada a oportunidade aos indivíduos que cumprem penas/medidas socioeducativas, improdutivos, de se tornarem produtivos economicamente, o que é comumente avaliado como algo positivo. Apostando nessa ideia, a quase unanimidade de gestores e agentes operadores de execução penal de medidas socioeducativas acredita que a ociosidade corrompe e, por isso, deve ser eliminada à qualquer custo (Julião, 2009).

Com o termo “à qualquer custo” entenda-se que, em prol da ocupação do tempo dos sujeitos, não importa a existência ou não de propostas teórico-metodológicas que justifiquem ou embasem determinada atividade: acredita-se ser melhor desenvolvê-la do que deixar os

28 Artigo 126 da Lei 7.210/1984: “O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena.”

indivíduos na ociosidade. Por essa desarrazoada ocupação de tempo, quando avaliados os projetos implementados em inúmeros serviços penais e socioeducativos brasileiros, identifica- se, muitas vezes, a inadequação da proposta política a uma estratégia pedagógica teoricamente defendida pelo Estado. Por esse mesmo motivo, independentemente de haver avanços nas discussões sobre implementação de políticas educacionais, laborativas e de capacitação profissional voltadas para a reinserção social, continua-se a investir em práticas já denunciadas e avaliadas negativamente, com a mera finalidade de tirar os sujeitos do ócio, mesmo que essas atividades nada acrescentem a eles (Julião, 2009).

A inserção social medidante o lugar de trabalhador remonta à ideia de que não importa o emprego que se tenha ou quanto se ganhe, trabalhar deve ser a melhor e a única opção. Isso representa um estímulo (ou imposição) estrito a atividades para as quais se exige baixa qualificação. No sistema penitenciário, o trabalho destinado aos internos costuma estar relacionado ao esforço físico em vez do intelectual, não remunera adequadamente, não cumpre condições básicas de trabalho (como higiene e segurança), bem como não garante nem mesmo seguro contra acidentes trabalhistas (Julião, 2009). Seguindo uma lógica semelhante, as atividades de profissionalização desenvolvidas no sistema socioeducativo, comumente, não consistem em trabalhos que os adolescentes julguem como possibilidades quando do desligamento institucional (Araújo, 2015; Baquero, Lemes & Santos, 2011; Gonçalves, 2015; Queiroz, 2010; Volpi, 2001), bem como não contribuem para que os adolescentes encontrem caminhos outros que não o da informalidade.

Em pesquisa realizada em unidades de internação no Brasil, o CNJ apresenta que apenas 61% do total de estabelecimentos pesquisados garantem o direito dos adolescentes de participarem de cursos profissionalizantes (Conselho Nacional de Justiça, 2012). Nos serviços de meio aberto, a dificuldade na inserção dos adolescentes em cursos de profissionalização, trabalho e renda também é apontada em estudo feito pelo IBAM (2014a) em âmbito nacional.

Os desafios colocados ao ingresso ou à permanência do adolescente no mercado de trabalho são os baixos níveis de escolaridade destes (e, em contrapartida, a exigência do empregador por maior escolaridade) e o preconceito para com eles, devido ao histórico de cumprimento de medida socioeducativa.

Somadas a esses obstáculos, pode-se apontar tendências macroestruturais que têm dificultado o acesso da população jovem ao primeiro emprego e a sua permanência no posto de trabalho. Aspectos como o aumento do déficit objetivo de oportunidades de emprego, a precarização crescente das condições de trabalho e o desemprego crônico (Blanch, 2014) tem afetado setores da juventude contemporânea, de modo que as qualificações profissionais e até mesmo o aumento da escolaridade parecem não mais garantir a estabilidade ocupacional (Paulino, 2016).

A população juvenil vem sendo a mais afetada pelo desemprego, pelo déficit de trabalho considerado digno, pelos baixos salários e pela informalidade, como mostra Paulino (2016) em levantamento bibliográfico feito em sua pesquisa com jovens que nem estudam e nem trabalham. O segmento juvenil pertencente a famílias que sobrevivem com rendas baixas está ainda mais propenso a esse quadro. Santos (2008) apresenta que esses jovens convivem em um círculo vicioso: abandonam os estudos para se inserirem em atividades produtivas, quase sempre precárias, informais e com baixa remuneração. Porém, justamente por possuírem baixa qualificação, permanecem por pouco tempo nesses trabalhos, o que configura uma alternância entre períodos de atividade, desemprego e inatividade.

Da mesma forma que nas condições de trabalho, um quadro de precariedade também pode ser visto em relação à educação formal no sistema socioeducativo. O adolescente, ao ingressar no sistema, encontra-se, muitas vezes, fora da escola e não inclui a retomada dos estudos como um de seus objetivos – apesar de essa ser uma das metas a serem cumpridas via PIA e, por isso, poder ser decisiva na avaliação do juiz pela progressão ou não da medida

socioeducativa. A última série cursada por grande parte dos adolescentes antes de parar de frequentar a escola é a quinta ou sexta série do Ensino Fundamental (atualmente denominados sexto ou sétimo ano) e poucos chegam a cursar o Ensino Médio (Conselho Nacional de Justiça, 2012).

O gráfico a seguir mostra que, se a taxa de distorção idade/ano de escolaridade dos adolescentes no Brasil na educação básica é alta, ela é muito mais preocupante dentre os adolescentes que cumprem medidas socioeducativas. No caso, os dados referem-se aos que se encontram em unidades de internação:

Figura 1. Taxa de distorção idade-série.

Fonte: Ministério da Educação (2014)

Do mesmo modo, as taxas de reprovação e de abandono dos adolescentes internos são, no geral, mais elevadas do que a média nacional. Esse fato se diferencia no Ensino Médio, mas o baixo número de adolescentes privados de liberdade que chegam a cursar esse nível de escolaridade torna incoerente estabelecer uma comparação em relação à população geral.

Figura 2. Taxas de rendimento.

Fonte: Ministério da Educação (2014)

Nas unidades de internação, a realidade escolar é ainda mais precária, tendo em vista que as escolas que funcionam internamente aos serviços precisam abarcar os distintos níveis em que os inúmeros adolescentes internos se encontram. A alternativa é, muitas vezes, ministrar aulas multisseriadas, na tentativa de contemplar a todos ao mesmo tempo – o que, muitas vezes, sequer é reconhecido pelas secretarias de educação (Volpi, 2001).

De modo semelhante, o baixo nível de escolarização é uma característica frequente, também, entre os adolescentes que cumprem medidas em meio aberto (Instituto Brasileiro de Administração Municipal, 2014a), os quais, frequentemente, encontram-se fora da escola desde antes do cometimento do ato infracional. Para alguns adolescentes, a educação formal aparece como uma experiência repetitiva, enfadonha e que não conduz a um caminho progressivo que vise a um ganho futuro, ou sequer a um fim.

Apesar das inúmeras dificuldades que a escola encontra na efetivação de seus serviços, ela continua sendo reconhecida, idealizadamente, como veículo de mobilidade social. Prevalece, ainda, a crença de que a educação formal possui poder transformador na vida das pessoas e que ela é a via única de acesso a lugares sociais considerados de sucesso (Evangelista, 2008).

Comumente, a escola é entendida como a instituição-meio para se chegar ao mercado de trabalho, para possibilitar o domínio de novos conhecimentos e para desenvolver uma sociabilidade que ultrapasse a instrução. Entretanto, estudos mostram que, especialmente para jovens provenientes de famílias pobres, a escola, em seu formato atual, não se adequa à realidade, aos interesses e às necessidades de seus estudantes, esvaziando de sentido o engajamento e a participação do jovem na educação formal (Baqueiro, Lemes & Santos, 2011; Gomes & Conceição, 2014). Nessa lógica, a reprovação, a repetência e a evasão escolar podem ser entendidas antes como produções do próprio sistema, do que, propriamente, fracasso do estudante (Freire, 2000; Gadotti, 1992). Sobre esse quadro geral, Volpi observa que “a escola ainda é para as classes sociais mais abastadas o símbolo da legitimação social, enquanto para os excluídos constitui-se apenas uma promessa” (Volpi, 2001, p. 105).

Souza (2011) explica o funcionamento precário da escola voltado a uma classe social determinada – a que ele denomina, provocativamente, “ralé”29 – a partir da má-fé institucional.

29 Em seu livro “Ralé brasileira: quem é e como vive”, Jessé Souza denomina ralé “uma classe inteira de indivíduos não só sem capital cultural ou econômico em qualquer medida significativa, mas desprovida, esse é o aspecto

fundamental, das precondições sociais, morais e culturais que permitem essa apropriação” (Souza, 2011, p.21,

grifo do autor). O autor parte do entendimento de que classes sociais diferenciam-se entre si não só por definição econômica, mas, também, por distinções imateriais, como a herança afetiva familiar, o capital cultural e o habitus (conceito advindo da teoria do sociólogo Pierre Bourdieu). Porém, apesar das distinções existentes, os pressupostos da classe média são universalizados para todas as classes, como se suas condições de vida fossem as mesmas. Isso permite, por exemplo, que se legitime a lógica da meritocracia como justa – e, por isso, também, a lógica da dominação social de uma classe por outra. Assim, as características próprias das vivências de uma classe (a ralé) são desconsideradas e desclassificadas, prejudicando, por exemplo, seu acesso a direitos, como a inserção e a permanência na educação formal e no mercado de trabalho. É com base nessas considerações que o autor, provocativamente, denomina “ralé” esse grupo de indivíduos, para chamar a atenção “para nosso maior conflito social e político: o abandono social e político, ‘consentido por toda a sociedade’, de toda uma classe de indivíduos ‘precarizados’ que se reproduz há gerações enquanto tal” (Souza, 2011, p.21).

Esta seria um padrão de funcionamento da instituição que sustenta a existência de uma oposição entre o objetivo que ela declara ter e o que realmente se opera através dela. Para o autor, a má- fe se articula tanto no âmbito do Estado, como no das relações cotidianas entre indivíduos.

Em relação ao primeiro, ele explica que apesar dos discursos e metas oficiais do Estado pregarem o direito de todos à educação pública gratuita e de qualidade, não é nesse sentido que, historicamente, as ações do Estado vem se direcionando. Através de métodos tradicionais de ensino e avaliação segregadores, baseados na retenção de informações vazias de significado para a maior parte da população, a escola, historicamente, vem segregando e selecionando a parte da população a qual acolhe. Esse sistema de ensino beneficia apenas as classes que possuem, por seu processo de socialização familiar, reforço a algumas disposições que facilitam o entrosamento com esse tipo de educação, como a priorização do autocontrole, da concentração, da disciplina, do sentimento de dever ou responsabilidade moral para com os estudos, do cálculo prospectivo. Faz parte da má-fé institucional da escola pressupor todos esses requisitos como “naturais” a todos os seres humanos, como se eles não exigissem, para sua construção, um tipo de socialização familiar específica.

Sobre o outro nível da má-fé, o micropolítico, o autor explica que, nas relações de poder entre os indivíduos, estes podem mobilizar de forma diferente os recursos materiais e simbólicos que as instituições oferecem, a depender do lugar que ocupam na hierarquia social. A partir disso, a escola individualiza o desempenho, escondendo e negando as desiguais precondições sociais de competição dos sujeitos e reforçando a ideologia do mérito. Ademais, ao oferecer condições de trabalho precárias (como os baixos salários aos funcionários, a falta de material, a burocracia e a pouca qualificação oferecida aos profissionais), a própria instituição tem grande parcela de responsabilidade na violência simbólica que a equipe profissional pode acabar dispensando aos alunos. Assim, o autor conclui que

A crueldade da má-fé institucional está em garantir a permanência da ralé na escola, sem isso significar, contudo, sua inclusão efetiva no mundo escolar, pois sua condição social e a própria instituição impedem a construção de uma relação afetiva positiva com o conhecimento. (Souza, 2011, p. 301)

Na condição de sujeitos que cumpriram ou estão cumprindo medida socioeducativa, os adolescentes enfrentam barreiras adicionais na educação formal. Cruz (2010) apresenta que, ao tomar conhecimento de que o adolescente esteve envolvido em algum ato infracional, a disposição do corpo técnico-pedagógico da escola para com ele é alterada, sendo atravessada pela estigmatização, independetemente de sua história de vida particular. A equipe técnica e profissional passa a classificar a existência de dois públicos diferentes na escola: o dos “marginais, bandidos, drogados” e o daqueles que “não estão nessa prática” (Cruz, 2010, p. 235). E, ao primeiro grupo, é associada a crença de que pode “corromper” ou “contaminar” os colegas na escola (Cruz, 2010, p. 251).

Julião (2009) observa que o reforço às atividades da educação formal para as pessoas em cumprimento de pena/medida socioeducativa atende a duas demandas da sociedade: coibir a ociosidade desses sujeitos e dar a eles a oportunidade de, finalizado o período de responsabilização, dispor de uma opção para o exercício de alguma atividade profissional. Nesse entendimento, a ação de substituir a ociosidade dessas pessoas pela presença em salas de aula, na realidade, não constitui concessão de privilégios, mas uma estratégia para atender aos interesses produtivos da própria sociedade.

Aliás, o entendimento do estudo e do trabalho quando do cumprimento de penas/medidas socioeducativas como “oportunidades” merece algumas ressalvas. Como já exposto, as atividades relativas tanto à profissionalização, como à educação formal tem sido oferecidas de modo precarizado, com uma série de dificuldades e sem muitas garantias de retornos futuros a seus participantes. Bardagi, Arteche e Neiva-Silva (2005) apresentam que a

escolha profissional e o exercício do trabalho nem sempre ocorre de modo organizador ou favorável. O sentido do trabalho para jovens em situação de vulnerabilidade social, muitas vezes, gira em torno da subsistência e possui uma função moral disciplinadora, de modo que trabalhar, nesses casos, não faz parte de um projeto de vida e não se relaciona a um senso de identidade.

Entender que, mesmo sob essas condições, essas atividades laborais devem ser vistas como oportunidades que devem ser “abraçadas” e não podem ser “desperdiçadas” é desconsiderar que o trabalho e a educação de qualidade são direitos de qualquer sujeito e naturalizar a violação dos mesmos. É, assim, regredir a uma lógica caritativa de concessão de favores (em detrimento de direitos) a uma parte específica da população.

Feitas essas considerações, é possível afirmar que não só a ideia da ressocialização, em si, é falaciosa; também o é a crença de que o trabalho e a educação formal, nas condições em que vem funcionando, são capazes de operar transformações efetivas na vida dos egressos dos sistemas socioeducativo e penal.