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CAPÍTULO 5: APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS

5.4 Os adolescentes entrevistados e a vivência no pós-medida

Um dado significativo para análise da vivência no pós-medida e que marcou o percurso metodológico desta pesquisa consiste na dificuldade em acessar os adolescentes um ano após o cumprimento de medida socioeducativa. Para realizar essa discussão, retoma-se, aqui, a Tabela 1, que ilustra a situação final de contato com os adolescentes:

Tabela 1

Contato com os adolescentes

Entrevistas realizadas 4

Recusa em participar da pesquisa 4

Números errados/não existentes/chamada encaminhada para a caixa postal 4 Telefone não informado no processo e não obtido posteriormente 1 Familiares usuários da conta telefônica – impossibilidade de acesso aos

adolescentes

5

Outros casos 2

Total 20

45 Sabe-se que a permanência na educação formal não significa, necessariamente, um fator protetivo para o adolescente, principalmente quando se leva em conta o modo precário e descontextualizado como o ensino escolar vem funcionando. No caso, não se admite que o estudo, em si, seja capaz de diminuir situações de vulnerabilidade na vida do adolescente; mas, sim, que o abandono escolar está frequentemente associado à outras vivências que denotam vulnerabilidades, como a necessidade de trabalhar para complementação de renda familiar, o envolvimento com drogas e a gravidez na adolescência. A associação entre permanência na educação formal e menor vulnerabilidade, feita no parágrafo, parte desta premissa.

Conforme já mencionado, ao final das tentativas de contato com 20 adolescentes, apenas oito puderam ser acessados – incluindo os que aceitaram e os que recusaram a participação na pesquisa. Nesse total, aliás, já se inclui os contatos obtidos após visita a serviços da rede socioassistencial, a fim de se conseguir números telefônicos atualizados. Não fosse essa estratégia, só se teria obtido acesso direto a cinco dos 20 adolescentes.

Longe de ser uma dificuldade especificamente local, estudos realizados com egressos em outras cidades brasileiras também demonstraram dificuldade em acessar esses adolescentes, encontrando, quando da busca por eles, casos de troca de número telefônico e endereço, morte e reincidência, com consequente retorno ao sistema socioeducativo ou passagem para o sistema prisional (Beretta, 2010; Marinho, 2013; Prado, 2014).

Outras pesquisas realizadas com egressos em Natal também encontraram esse desafio. Evangelista (2008), que realizou seu trabalho com egressos da privação de liberdade, apesar de ter desenvolvido seu estudo há quase dez anos, encontrou uma realidade semelhante à atual: os destinos dos adolescentes eram desconhecidos pelas instituições onde haviam cumprido medida socioeducativa; seus endereços mudavam com frequência; e grande parte dos adolescentes já havia morrido. Já Araújo (2015), que retrata, em sua pesquisa, a vida de adolescentes egressos do meio aberto, encontrou realidade semelhante ao deparar-se com o fato de que um dos seus possíveis participantes de pesquisa havia sido assassinado.

A troca constante de contatos telefônicos é algo bastante comum dentre os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa em Natal, conforme indicam relatos de práticas dos profissionais – tanto do serviço de execução de medidas socioeducativas, como dos CRAS e CREAS – em conversas informais com a pesquisadora. Estes atribuem como causa principal desse fato a necessidade de os adolescentes não serem encontrados facilmente, pois, muitas vezes, estão sofrendo ameaças ou sendo perseguidos. Trocar de telefone e de endereço são, então, formas de proteger-se e de manter-se vivo.

Considerando que o período de busca pelos adolescentes ocorreu cerca de um ano após o cumprimento da medida, a frequência de telefones inexistentes, errados ou cuja chamada fora encaminhada para caixa postal (oito casos, inicialmente) denota uma preocupação sobre se esses adolescentes também teriam mudado de contato para protegerem-se de ameaças. Apesar de não ser possível afirmar que esta tenha sido a real causa, a constância com que isso ocorre dentre esses adolescentes faz crer que seja uma explicação provável. E a preocupação advém do fato de que eles, apesar de já terem passado pelo atendimento socioeducativo e terem sido responsabilizados, permanecem desprotegidos.

Os casos dos adolescentes que chegam ao sistema socioeducativo costumam demandar não só responsabilização, mas também proteção. A trajetória infracional pode estar associada a situações de vulnerabilidade que nem sempre podem ser superadas pelas condições de vida do adolescente e de funcionamento da rede de garantia de direitos, mas que põem em risco sua proteção. E, se é uma realidade o “sumiço” ou o desconhecimento do paradeiro desses adolescentes (não só em Natal, mas em outras cidades brasileiras), há motivos para supor que o sistema socioeducativo está se ocupando da responsabilização, enquanto negligencia a proteção desse público e a garantia dos direitos básicos que assegurariam sua integridade física e a manutenção de sua vida. Com ação punitiva eminente, o sistema socioeducativo se faz descumpridor de seus próprios objetivos e tem sido incapaz de contribuir para a interrupção da trajetória infracional.

No momento inicial de busca pelos números telefônicos, foram encontrados dois processos sem nenhum registro de contato. Isso faz pensar que os adolescentes possam estar na situação anteriormente descrita de desproteção, ou que não possuíam aparelho telefônico móvel ou fixo, ou, ainda, que o tinham, mas preferiram não disponibilizar. Fato é que esse aspecto deve ter sido um obstáculo à comunicação da equipe profissional da execução de medida socioeducativa com o adolescente; mas não apenas desse serviço, como também de outros da

rede socioassistencial e intersetorial, inclusive no período posterior ao atendimento socioeducativo, o que pode ter implicações diretas na garantia dos direitos desse adolescente.

No que se refere aos casos de recusa em participar da pesquisa, os motivos denotam uma postura de esquiva em lidar com o assunto, demonstrando desconforto. Assim como aconteceu com Evangelista (2009) e Ferraz (2013), os adolescentes acessados nesta pesquisa não entendiam, de imediato, a razão de estarem sendo procurados para falar sobre o atendimento socioeducativo, quando eles já haviam sido responsabilizados e “já estavam sossegados” – para usar o termo expresso por um deles. Alguns adolescentes e mesmo alguns de seus familiares pensaram, inicialmente, que a pesquisadora fosse alguém do próprio serviço de medida socioeducativa, que os estivesse buscando devido à alguma pendência institucional que deveria ser atendida.

Seguem as respostas desses adolescentes ao convite para participação:

Não tenho interesse em participar não, porque... isso foi uma coisa muito injusta comigo, e eu não quero participar. (Antônio, maio/2016)

O que eu tinha pra dizer, eu já disse lá. Eu gostei, achei justo com o que eu fiz, me trataram bem... não quero participar [da pesquisa] não. Tô sossegado, graças a Deus. (Francisco, junho/2016)

Nos outros dois casos, os adolescentes haviam previamente aceitado realizar a entrevista, mas, depois, mudaram de ideia e cessaram o contato direto com a pesquisadora, tendo sido suas mães as informantes sobre a recusa. Em um dos casos, a mãe avisou que a filha havia desistido de participar da pesquisa, pois “não queria mais tocar nesse assunto”.

No outro caso, a pesquisadora mantinha contato com o adolescente via telefone da mãe deste e, em determinado momento, a chamada passou a não ser mais atendida. Entrando em contato posterior via rede social vinculada ao número de telefone móvel – Whats App –, a mãe

informou que o adolescente desistiu de participar da pesquisa, e, ao ser perguntada pelo motivo para tal, ela não respondeu.

No intuito de discutir sobre a realidade atual de vida dos adolescentes após o cumprimento de medida socioeducativa, serão apresentadas, a seguir, breves caracterizações das condições em que cada um dos quatro entrevistados encontravam-se à época de realização deste estudo.

José46 tinha 17 anos e residia com seus pais na região administrativa sul de Natal. Sua

família vivia com uma faixa de renda mensal situada entre cinco e dez salários mínimos. Ele estava estudando o último ano do Ensino Médio em uma escola pública e se via, no futuro, ingressando em uma universidade, para, então, graduar-se e trabalhar na área escolhida. Enquanto isso, José trabalhava prestando serviço administrativo, buscando ganhar renda extra à familiar para uso próprio. Por ter cometido ato infracional análogo à lesão corporal leve, ele cumpriu medida socioeducativa de PSC durante quatro meses, situação em que, também, realizou serviço administrativo.

João tinha 15 anos e residia na zona oeste da cidade. Morava com o pai e a avó e sua família vivia com uma renda mensal de dois salários mínimos. Sua trajetória escolar vinha sendo contínua e, à época da entrevista, ele cursava o 8º ano do Ensino Fundamental em uma escola pública. João nunca havia trabalhado, mas dizia ter muita vontade de começar a trabalhar. Desejava, para o seu futuro, graduar-se em Direito e, por adorar praticar esportes, dizia querer ser, também, jogador de futebol e lutador de UFC (sigla de Ultimate Fighting

46 Os nomes que identificam os adolescentes entrevistados neste estudo são fictícios, por motivo ético de sigilo sobre as identidades dos mesmos. Os nomes atribuídos consistem naqueles considerados os mais populares do Brasil, segundo o projeto “Nomes no Brasil”, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2016, com base nos dados do Censo realizado em 2010. O propósito dessa atribuição é salientar que a realidade dos entrevistados nessa pesquisa pode representar a de tantos outros brasileiros e brasileiras, em relação a seu (in)acesso a políticas sociais de qualidade, a suas dificuldades de alcance e diálogo com a Justiça, e mesmo a sua condição de vida como egressos do sistema socioeducativo. É provável que, justamente por serem José, João, Maria, Ana, Antônio e Francisco, e não outros, vivam essa realidade.

Championship). Realizou atividades administrativas durante três meses na PSC, a qual cumpriu por ter sido acusado de roubo.

Maria, 18 anos, estava cursando o último nível do Ensino Médio e tinha o sonho de ingressar em uma universidade para estudar Psicologia. Pretendia graduar-se, “viajar o mundo todo” (palavras dela), casar e ter filhos. Morava com os pais e mais seis irmãos em um bairro na zona leste da cidade, onde viviam com um salário mínimo. Durante o cumprimento de PSC, a qual foi atribuída após Maria ter sido acusada por ato análogo a furto qualificado, participou de uma oficina de fabricação artesanal de vassouras, durante dois meses.

Por fim, Ana, 18 anos, morava com sua mãe e seus três irmãos em uma cidade da Região Metropolitana de Natal, onde residiam com um salário mínimo mensal. Quando fora acusada de cometer ato análogo à lesão corporal leve, ela residia na zona leste da capital. Devido ao ato infracional, cumpriu serviços administrativos durante três meses. À época da entrevista, Ana cursava o 2º ano do Ensino Médio em uma escola pública e vislumbrava para si, no futuro, ingressar em uma universidade, mas ainda não havia se decidido quanto ao que iria cursar: se Educação Física, Dança, Engenharia de Petróleo ou Geografia.

Já de início, é possível perceber que os entrevistados apresentam uma realidade que destoa do que é mostrado em outras pesquisas (inclusive localmente), no que diz respeito à escolarização. Ao contrário do que aparece no perfil geral descrito acima, nenhum dos entrevistados deste estudo teve sua trajetória escolar interrompida antes, durante ou depois o cumprimento de medida socioeducativa – até o momento de realização das entrevistas. Suas metas em seus PIAs referentes à trabalho e profissionalização seguiram, inclusive, a prioridade da continuidade dos estudos escolares: o trabalho e a profissionalização foram colocados como secundários, estando o foco na escolarização.

Três dos entrevistados já estavam em vias de finalizar o Ensino Médio, quando alcançar esse nível de escolaridade não é uma realidade para a maioria dos adolescentes que cumprem

medida socioeducativa em Natal. E o prosseguimento na educação formal – mais especificamente, no Ensino Superior –, foi, inclusive, resposta unânime entre os entrevistados, quando perguntados sobre quais eram seus planos para o futuro.

Quando questionados sobre o que pensavam sobre ir à escola ou sobre o que ela simbolizava para eles, responderam:

Eu vejo a escola como um meio de formar, como um meio de... até a universidade também. (José, maio/2016)

Eu vou lá pra aprender! [...] Eu acho importante, que a pessoa vai crescer como, sem estudo? (João, junho/2016)

Ah, muitas coisas, e uma das coisas é a minha realização, né. O meu sonho, que é estudar e me formar, né, na Psicologia. [...] Então a escola pra mim é uma realização, entendeu? Dos meus planos futuros. (Maria, julho/2016)

Pra ter um futuro melhor. Porque a gente só tem um futuro melhor se ir pra a escola. Se eu quiser ter um trabalho futuramente melhor... as coisa melhor futuramente, tem que ter a escola. Tem que frequentar a escola. (Ana, agosto/2016)

Em seus discursos, é possível identificar que à educação formal é atribuída a via única para obtenção de sucesso futuro na vida e o veículo de mobilidade social. Entretanto, é importante considerar que, por trás desse entendimento geral da escola como caminho para o sucesso, existe o engano de se imaginar que a educação formal representa “o ponto zero da competição social por recursos escassos” (Souza, 2011, p. 82), como se todas as pessoas pudessem ser preparadas a partir de chances iguais e, por isso, valesse a lógica da meritocracia. O discurso hegemônico da escola como remédio para todos os males, comumente, não leva em conta as precondições sociais do sucesso escolar e tampouco a má-fé institucional que a rege, e, por isso, encobre e mascara a gênese profunda de injustiças e desigualdades sociais.

Como alerta Jessé Souza, “por mais importante que seja a escola [...] tomada isoladamente, ela apenas legitima desigualdades que começaram muito antes dela” (Souza, 2011, p. 83).

Por exemplo, apesar de os entrevistados neste estudo ou os participantes de outras pesquisas (Baquero et al., 2011; Evangelista, 2008) com adolescentes em situação de vulnerabilidade reproduzirem esse mesmo discurso generalizado sobre a educação formal, é provável que eles estejam em desvantagem em relação a outras pessoas quando da competição por uma vaga no ensino superior ou de trabalho – principalmente, se as famílias desses outros puderam arcar com escolas que apresentem maior qualidade de ensino ou com capital cultural que favorecesse um entrosamento afetivo maior com a escola.

Para os entrevistados, o desejo por trabalhar antes de finalizar os estudos escolares surgiu como necessidade de ganhar dinheiro, seja para complementar a renda familiar mensal, seja para uso próprio. Apenas um entrevistado estava trabalhando e os outros três, apesar não o estarem, afirmaram que gostariam de trabalhar. Como o principal intuito declarado do trabalho, em todos os casos, era conseguir uma renda extra, os entrevistados disseram que aceitariam trabalhar em diferentes âmbitos, não se restringindo a nenhum tipo/área de trabalho em específico.

Nesse sentido, o emprego atualmente requerido por eles tem, ao que parece, caráter diferente daquele que eles vislumbram em seus projetos de vida e que devem se dar em suas respectivas áreas de formação superior: o primeiro gira em torno da subsistência, do autossustento ou da independência financeira, enquanto o segundo, relaciona-se a um senso de identidade e constitui-se enquanto projeto de vida idealizado.

Paulino (2016), ao realizar levantamento bibliográfico sobre estudos que investigaram o sentido do trabalho para jovens, aponta que, de modo geral, as concepções sobre o trabalho para esse público estão associadas, principalmente, à dimensão econômica dessa atividade. Pesquisas que contemplaram jovens que vivem com baixa renda, como as desenvolvidas por

Borges (2010) e Dutra-Thomé, Telmo e Koller (2010), apontam que, para essas pessoas, o trabalho está associado ao sustento e ao consumo, de modo que a subsistência se sobressai frente a outros aspectos, como a identificação e realização pessoal com a função desempenhada. Um dos blocos de perguntas que constituiu a entrevista teve como tema o acesso do adolescente e de sua família à rede socioassistencial e intersetorial de direitos, o qual gerou questões importantes para analisar o entendimento dos adolescentes sobre seus direitos e a garantia ou não destes. Uma das perguntas questionava “como é, atualmente, o seu acesso e o da sua família a direitos básicos, como saúde, educação, trabalho, moradia, cultura e lazer”. Três dos entrevistados responderam, imediatamente, que era “normal”.

Para entender o que seria “normal”, vale analisar as condições objetivas de vida desses adolescentes: eles residem em bairros (ou partes de bairros) com precário acesso a serviços da rede pública de garantia de direitos e, considerando a renda mensal de suas famílias, é provável que não consigam pagar pela totalidade de serviços privados que supram a falta daqueles. Nesse sentido, então, a compreensão de funcionamento “normal” da rede de direitos deve incluir o acesso e a qualidade precários dos serviços. Apesar disso, apenas uma adolescente reconheceu essas dificuldades em seu cotidiano:

A saúde não, né. Porque, pra poder pegar uma ficha [para atendimento na Unidade Básica de Saúde], querendo ou não, se arrisca. Porque tem que ir logo cedo, enfrentar uma fila imensa. Sem falar que não é dentro do posto de saúde, é fora. Aí, já levando pra a segurança, que é no meio da rua e, hoje em dia, todo canto tá perigoso. Então, a saúde e a segurança não tá lá essas coisas. Aí pronto... [...] aí na minha escola, eu já não tenho o que reclamar, porque é uma ótima escola. É ótima minha escola. Faz três anos que eu estudo e eu não tenho o que reclamar não. [...] o que eu queria, no momento, é um trabalho, que... todas as escolas tinha que pelo menos ter um cadastro em alguma coisa de empregos, entendeu, pra jovens, que assim, se precisassem, entendeu,

procurassem a diretoria e explicassem a situação, pra eles vê o que, entendeu, disponibilizar. Mas, fora isso, tá tudo... bem. (Maria, julho/2016)

Tem-se, pois, uma aparente habituação ao modo como são garantidos (total ou limitadamente) ou violados os direitos básicos, associada a uma possível ausência de análise sobre a promoção desses direitos, ou melhor, sobre se eles poderiam acontecer de uma maneira diferente da que vem ocorrendo. Há a naturalização da prestação insuficiente de direitos por não haver uma realidade concreta qualitativamente melhor a servir como paradigma.

Esse fato está diretamente associado ao entendimento, já mencionado neste estudo, de que as políticas sociais, funcionando de modo precarizado e fragmentado, não têm como cerne a superação do fenômeno da desigualdade social em si. Desse modo, essas políticas, por mais que proponham o funcionamento em rede em prol da garantia integral dos direitos sociais, acabam por, na prática, criar dependência por parte da população e esconder o efeito de desmobilização que operam com isso. Configura-se, desse modo, o quadro de “pobreza política” (Demo, 1990), que consiste na marginalização e naturalização da privação de direitos para um grupo de pessoas, as quais, não tendo consciência disso, são coibidas de organizarem- se em defesa de seus direitos.

Os adolescentes também foram perguntados se, diante de alguma demanda explicitada por eles ou por seus familiares, foram encaminhados para algum serviço que suprisse essa necessidade. Durante a medida, uma das entrevistadas foi encaminhada a um CRAS após ter demonstrado interesse em realizar curso profissionalizante. Os outros três adolescentes afirmaram não ter passado por nenhum encaminhamento, apesar de, no PIA de um dos adolescentes, constar que a equipe fez um encaminhamento a uma Unidade Básica de Saúde diante de queixa de dores na coluna.

As perguntas sobre a existência ou não de encaminhamentos buscaram investigar, a partir do fluxo de atendimento, o acesso do adolescente e de sua família aos seus direitos quando

da identificação de demandas. Entretanto, foi possível perceber que a pergunta não era facilmente compreendida pelos entrevistados.

Isso leva a crer, por um lado, que uma formulação inadequada da estrutura e do sentido da pergunta possa ter comprometido o entendimento. De todo modo, o enunciado vinha sempre acompanhado de um exemplo, como na fala transcrita a seguir, feita durante uma das entrevistas: “Tipo assim, você estava com algum problema de saúde e declarou isso, ou com alguma necessidade de complemento de renda e declarou isso e eles foram e encaminharam vocês para outro serviço que atendesse a essa necessidade”.

Por outro lado, entende-se que a dificuldade na compreensão da pergunta também pode advir da não associação desse tipo de prática (encaminhamento para a rede socioassistencial e intersetorial) ao cumprimento da medida socioeducativa, ou melhor, da garantia de direitos e suprimento de necessidades à responsabilização por ato infracional.

Essa não associação, inclusive, é de ordem prática, quando se considera a realidade do atendimento socioeducativo em Natal à época de realização deste estudo: devido à quantidade insuficiente de profissionais compondo a equipe psicossocial, o contato desta com o adolescente resumia-se, muitas vezes, ao atendimento inicial e final, o que impossibilitava o acompanhamento sistemático do PIA do adolescente, de suas necessidades e, consequentemente, da garantia de seus direitos. Em consonância com esses dados, todos os adolescentes afirmaram não perceberem mudanças para si ou para suas famílias em relação ao acesso a direitos, comparando o período anterior ao cumprimento de medida ao momento