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Efeitos do cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto: uma análise a partir da perspectiva de adolescentes egressos em Natal-RN

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Academic year: 2021

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(1)Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. EFEITOS DO CUMPRIMENTO DE MEDIDA SOCIOEDUCATIVA EM MEIO ABERTO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA PERSPECTIVA DE ADOLESCENTES EGRESSOS EM NATAL-RN. Allana de Carvalho Araújo. Natal 2017.

(2) i. Allana de Carvalho Araújo. EFEITOS DO CUMPRIMENTO DE MEDIDA SOCIOEDUCATIVA EM MEIO ABERTO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA PERSPECTIVA DE ADOLESCENTES EGRESSOS EM NATAL-RN. Dissertação elaborada sob orientação da Prof. Dr. Ilana Lemos de Paiva e apresentada ao Programa de PósGraduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia.. Natal 2017.

(3) Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes CCHLA Araújo, Allana de Carvalho. Efeitos do cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto: uma análise a partir da perspectiva de adolescentes egressos em Natal-RN / Allana de Carvalho Araújo. - 2017. 180f.: il. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ilana Lemos de Paiva.. 1. Políticas públicas. 2. Adolescente em conflito com a lei. 3. Problemas sociais. 4. Direitos humanos. I. Paiva, Ilana Lemos de. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA. CDU 343.91-053.6(813.2).

(4) ii. Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar. (Bertolt Brecht – Nada é impossível de mudar).

(5) iii. Agradecimentos À vida, por ter permitido a caminhada até a construção deste trabalho e, com ela, tantas outras construções e desconstruções. À UFRN, que me acolheu desde o início da minha trajetória acadêmica até aqui, e que “me falou que o mal é bom, e o bem, cruel”. Ao CNPQ, por ter proporcionado condições materiais para a realização deste estudo. A Ilana, por ter apostado neste trabalho e por ter caminhado comigo nesses dois anos. A Maria de Lurdes Trassi e Ana Vládia Holanda Cruz, pelas contribuições significativas feitas a este trabalho durante as qualificações. A Isabel Fernandes e Ana Vládia Holanda Cruz, por terem aceitado participar da banca de defesa desta dissertação e pelas valiosas contribuições. Aos professores e demais funcionários do PPGPsi, gratidão pelo apoio e pelo comprometimento com a formação de todos os pós-graduandos. A Severina e Júnior, mãe e pai, ouro de mina. Obrigada pelo amor incondicional de sempre, pelo cuidado que não cessa, pela paciência, pela compreensão e pela confiança. Obrigada por tornarem mais essa conquista possível. A Mayara, que, dentre um sem número de qualidades, é minha irmã, amiga, companheira, mestre jedi, mediadora dos meus conflitos de forma não-violenta, inspiração, orgulho. Gratidão por tudo, inclusive por, muitas vezes, apostar mais em mim do que eu mesmo. Sou muito grata pela sua existência, e por ela afetar direta e positivamente a minha, e tudo o que eu faço – inclusive esta dissertação. Todo agradecimento que eu pudesse te fazer aqui, ainda seria pouco. A Felipe, por tanto amor, companheirismo, cumplicidade, paciência e compreensão. Sou muito grata à vida pelo nosso encontro, pela convivência e pelos aprendizados diários. Obrigada pela leveza e por ter levado esse mestrado como um projeto nosso..

(6) iv. A Jane, pelo acompanhamento importante durante esses dois anos (e além deles), pelo amparo, pelo cuidado e por conhecer de perto as faces não-escritas deste trabalho. A toda a equipe da I Vara da Infância e da Juventude de Natal – especialmente a Neurizete, Paula, Marisa, Klesida, Simone, Isa e Flor –, pela acolhida aberta, paciente e despretensiosamente solícita. Vocês foram peças fundamentais neste trabalho. Aos adolescentes e familiares que, de alguma maneira, participaram desta pesquisa. Gratidão pela disponibilidade e por tanto aprendizado proporcionado em encontros de poucas horas. A Fábio, Luna, Mariana, Nara, Rebecka e Roberta, presentes do mestrado para a vida! Vocês trouxeram leveza e sorriso fácil pra o dia-a-dia nesses dois anos. Gratidão pela amizade despretensiosa! Sigamos! A Amanda e Alessandra, as pilhas alcalinas. Gratidão pelo sorrir e pelo sofrer junto. Nossos poucos encontros valem muito! Ao Núcleo Socioeducativo do OBIJUV, que muito engrandeceu este estudo por meio das discussões e do trabalho conjunto. Muitas das problematizações e inspirações que constituem este trabalho nasceram dos encontros do Núcleo. Especialmente, a Daniela Rodrigues, pela pessoa inspiradora que é e que sempre suscita movimento; e a Anna Luiza, pela amizade e pelo carinho construídos. Gratidão!.

(7) v. Sumário Lista de siglas ..........................................................................................................................vii Resumo ..................................................................................................................................... ix Abstract ..................................................................................................................................... x INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11 CAPÍTULO 1: A INFÂNCIA E A ADOLESCÊNCIA COMO ALVO DA INTERVENÇÃO DO ESTADO ............................................................................................ 15 1.1 Trajetória das políticas sociais de atendimento a crianças e adolescentes no Brasil: do “menor” ao adolescente autor de ato infracional ....................................................... 15 1.2 Sistema socioeducativo para quem? Reflexões sobre Estado, políticas sociais e criminalização da juventude pobre ................................................................................... 26 CAPÍTULO 2: A POLÍTICA DE ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO.................... 40 2.1 Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo ........................................................ 40 2.1.1 Violações de direitos no sistema socioeucativo.................................................... 48 2.2 Medidas socioeducativas executadas em meio aberto ............................................... 52 2.2.1 Violações de direitos e outros desafios na execução das medidas em meio aberto. .............................................................................................................................. 58 2.3 Plano Individual de Atendimento ............................................................................... 63 CAPÍTULO 3: OS ADOLESCENTES EGRESSOS DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO ............................................................................................................. 69 3.1 O que se espera para o adolescente após o cumprimento de medida socioeducativa .............................................................................................................................................. 69 3.1.1 A falácia da ressocialização. ................................................................................. 73 3.1.2 A crença na ressocialização pelo trabalho e pelo estudo. ................................... 76 3.1.3 A ressocialização sustentada na ideia de “novos projetos de vida”. ................. 85 3.2 Como estão os egressos do atendimento socioeducativo? ......................................... 88 CAPÍTULO 4: MÉTODO...................................................................................................... 94 4.1 Pesquisa documental .................................................................................................... 94 4.2 Participantes da pesquisa ............................................................................................. 96 4.3 Entrevistas ..................................................................................................................... 97 4.4 Aspectos éticos............................................................................................................. 100 4.5 Procedimentos de análise de dados ........................................................................... 100 CAPÍTULO 5: APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS ................................. 103 5.1 Caracterização do funcionamento do atendimento socioeducativo em meio aberto em Natal-RN...................................................................................................................... 103 5.1.1 Perfil dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto no município de Natal. ..................................................................................... 112 5.2 Análise da situação processual do cumprimento de medida socioeducativa ........ 114.

(8) vi. 5.3 Perfil dos adolescentes que iniciaram e finalizaram o cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto em 2015 ......................................................................... 122 5.4 Os adolescentes entrevistados e a vivência no pós-medida ..................................... 126 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 151 REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 156 APÊNDICES ......................................................................................................................... 166.

(9) vii. Lista de siglas. CNAS. Conselho Nacional de Assistência Social. CNJ. Conselho Nnacional de Justiça. CONANDA. Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adoelscente. CRAS. Centro de Referência de Assistência Social. CREAS. Centro de Referência Especializado de Assistência Social. ECA. Estatuto da Criança e do Adolescente. FUNABEM. Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor. FUNDAC. Fundação Estadual da Criança e do Adolescente. IBAM. Instituto Brasileiro de Administração Municipal. IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. LA. Liberdade Assistida. PAEFI. Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos. PAIF. Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família. PIA. Plano Individual de Atendimento. PNAS. Política Nacional de Assistência Social. PNBEM. Política Nacional de Bem-Estar do Menor. PSC. Prestação de Serviços à Comunidade. SAM. Serviço de Assistência ao Menor. SCFV. Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. SEMTAS. Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social. SDH/PR. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. SGD. Sistema de Garantia de Direitos.

(10) viii. SINASE. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. SUAS. Sistema Único de Assistência Social. TALE. Termo de Assentimento Livre e Esclarecido. TCLE. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. UFRN. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. VIJ. Vara da Infância e da Juventude.

(11) ix. Resumo Os egressos do sistema socioeducativo não só convivem com os mesmos desafios pré-existentes ao cumprimento de medida, como, por vezes, lidam com estigma e o preconceito relacionados ao cometimento do ato infracional. Apesar disso, inexiste, nacionalmente, um atendimento sistemático voltado ao egresso. Nesta pesquisa, investigou-se as contribuições proporcionadas pelo cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto ao egresso em Natal. Para tanto, a construção dos dados foi realizada em duas etapas: pesquisa documental e entrevista com os adolescentes. A primeira visou caracterizar o cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto no município para compreender o contexto no qual os adolescentes estiveram inseridos. As entrevistas buscaram investigar mudanças e permanências na vida dos egressos proporcionadas pelo cumprimento de medida socioeducativa. Na análise dos resultados, foram feitas articulações entre os dados obtidos nas duas etapas. Identificou-se que a experiência socioeducativa, no município, tem sido reduzida à responsabilização. A duração processual vem sendo bem maior que a esperada, gerando um quantitativo de adolescentes remanescentes vinculados ao serviço. Há indicativos de que diferentes manifestações de violência permanecem atravessando a vida dos adolescentes no pós-medida. Nesse cenário, os entrevistados relatam não associar o atendimento socioeducativo à garantia de direitos nem a mudanças positivas em suas vidas e, no geral, sentem-se injustiçados. Esses dados estão associados ao funcionamento precário tanto do atendimento socioeducativo, como de outros serviços do Sistma de Garantia de Direitos da criança e do adolescente. Palavras-chave: políticas públicas; adolescente em conflito com a lei; problemas sociais; direitos humanos..

(12) x. Abstract Adolescents who have participated of socio-educational measures, not only deal with the same pre-existing challenges while in this program, but sometimes they suffer to the stigma and the prejudice related with having committed an infraction. Nevertheless, does not exist, nationally, a systematic care for the former participant. In this research, it was investigated the contributions provided by the fulfillment of a socio-educative measure without freedom restraint in the city of Natal. To do so, the data collection was separated in two stages: documentary research and interviews with adolescents. The first one aimed to characterize the fulfillment of socio-educational measures in a service without freedom restraint in Natal, to understand the context in which the adolescents were inserted. The interviews sought to investigate changes and permanence in the lives of these adolescents provided by the fulfillment of socio-educational measures. In the analysis of the results, joints have been made between the data obtained in these two steps. It was identified that socio-educational experience in the municipality has been reduced to accountability. The procedural duration has been much higher than expected, generating a number of remaining adolescents linked to the service. This study shows signs that different manifestations of violence continue to permeate the lives of adolescents in the post-measure. In this scenario, the adolescents do not make associations between the socio-educational service with the guarantee of their rights nor with positive changes in their lives and, in general, feel wronged. These data are associated with the precarious functioning of both the socio-educational service and other services of the Child and Adolescent Rights Guarantee System. Keywords: public policy, adolescent in conflict with the law; social issues; human rights..

(13) 11. INTRODUÇÃO. O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) é a política pública responsável pelo atendimento, acompanhamento, proteção e responsabilização do adolescente autor de ato infracional no Brasil. Seu funcionamento estrutura-se em torno da ideia de socioeducação, a qual, partindo do entendimento de que a educação tem caráter fortemente social, prioriza a afirmação e efetivação dos direitos humanos e o compromisso com a emancipação e autonomia de cada sujeito em sua relação com a sociedade (Bisinoto, 2015). Para o adolescente autor de ato infracional, o sistema socioeducativo prevê não só a responsabilização como medida punitiva, mas também que sejam asseguradas condições para promoção do seu desenvolvimento como pessoa (por exemplo, que sejam garantidos seus direitos). Entretanto, o SINASE vem enfrentando dificuldades na implementação do atendimento socioeducativo (Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2013a; Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2013b; Silva & Oliveira, 2015). Tem-se, por exemplo: dificuldade em realizar um trabalho articulado dentro do próprio SINASE ou entre este e outros serviços do Sistema de Garantia de Direitos da criança e do adolescente; insuficiência de recursos humanos e materiais; carência na formação e capacitação dos profissionais; ausência de projeto político-pedagógico em grande parte das unidades socioeducativas; violações dos direitos dos adolescentes em cumprimento de medida, principalmente de internação. Esses e outros desafios tem implicado em consequências diretas na qualidade do atendimento e acompanhamento socioeducativo e nas reais contribuições destes na vida dos usuários do serviço. Pesquisas com adolescentes egressos (Araújo, 2015; Evangelista, 2008; Gonçalves, 2015; Marinho, 2013; Queiroz, 2010; Volpi, 2001) apresentam que, após.

(14) 12. finalizarem o cumprimento de medidas socioeducativas, os egressos têm encontrado, de modo geral, os mesmos desafios que já enfrentavam antes de cometerem ato infracional, além das dificuldades advindas do fato de terem feito parte de unidades socioeducativas, como preconceito e discriminação. Ou seja, as influências da medida socioeducativa para o sujeito que a cumpre têm rumado por caminhos distintos – e, por vezes, contrários – aos previstos pelo SINASE. Diante desse quadro, este estudo insere-se na temática do adolescente autor de ato infracional, especificamente naquele que não está mais ligado a uma unidade de atendimento socioeducativo, mas que já finalizou o cumprimento de medida – aqui chamado “egresso”. O tipo de medida socioeducativa aqui estudada é a executada em meio aberto, a qual, de acordo com SINASE, deve ser prioritária frente àquelas de privação e restrição de liberdade. A pesquisa aqui apresentada investigou como estão os jovens egressos que cumpriram medida socioeducativa em meio aberto em Natal/RN, no ano de 2015, e quais as contribuições do processo socioeducativo para a vida dessas pessoas. Para isso, utilizou-se, como ferramentas metodológicas, da pesquisa documental e de entrevistas individuais com os egressos. Por meio deste estudo e no papel de pesquisadora, não se pretende falar por nenhum dos participantes da pesquisa. A intenção foi apreender falas silenciadas e proporcionar um espaço de visibilidade ao traduzi-las de forma compreensiva a pessoas que, até então, não as ouviam. Mesmo teorias voltadas à valorização da experiência do oprimido não costumam avaliar criticamente o papel histórico assumido pelo intelectual (Spivak, 2014). Assim, concordando com Spivak, tem-se que a intenção deste estudo foi oportunizar espaços em que essas falas sejam ouvidas. Além disso, os discursos dos entrevistados refletem o funcionamento da política pública de atendimento socioeducativo e permitem analisar sua efetividade, seus desafios e suas conquistas..

(15) 13. As questões que levaram à realização deste estudo foram produzidas no decorrer de um percurso próprio da autora, em sua formação como psicóloga, na área dos direitos humanos e de políticas públicas, que conduziram a uma aproximação temática com o campo das medidas socioeducativas. Através de um vínculo de estágio em um Centro de Referência em Direitos Humanos, a autora pôde participar do planejamento e da execução de uma intervenção em unidade de privação de liberdade feminina para adolescentes. A experiência de estágio gerou questões diversas, dentre elas, o que, de fato, o processo socioeducativo estaria produzindo na vida das adolescentes. Essa ideia foi readequada nos moldes de uma pesquisa acadêmica e resultou na realização do estudo aqui apresentado. A mudança de foco do atendimento socioeducativo do meio fechado para o meio aberto ocorreu devido a, após pesquisa bibliográfica, ter-se percebido que poucas pesquisas se voltavam a estudar os egressos deste último âmbito. Os referenciais teóricos que ancoram este trabalho estão organizados em três capítulos iniciais. O primeiro, “A infância e a adolescência como alvo de intervenção do Estado”, inicia com um breve resgate histórico do atendimento voltado para adolescentes autores de ato infracional no Brasil, até chegar aos atuais Estatuto da Criança e do Adolescente e Sistema de Garantia de Direitos. Nesse percurso, explicita-se os aspectos contextuais principais que embasaram cada uma dessas práticas. Em seguida, são discutidos o papel do Estado e o das políticas sociais na intervenção voltada às crianças e aos adolescentes pobres. Emergem, daí, discussões sobre a criminalização dos jovens pobres e negros no Brasil e a associação entre juventude e violência. No segundo capítulo, a política de atendimento socioeducativo é discutida mais detalhadamente, sendo apresentados princípios e características do SINASE, incluindo as lamentáveis violações de direitos que ocorrem nos serviços. Trata-se, também, de aspectos específicos ao atendimento socioeducativo em meio aberto e da contextualização de seu.

(16) 14. funcionamento na política setorial de assistência social. Por fim, é apresentado o Plano Individual de Atendimento como ferramenta pedagógica essencial na organização e na condução do atendimento socioeducativo. O terceiro capítulo aborda o tema específico deste estudo: os egressos do sistema socioeducativo. É feita uma discussão sobre o que consta nos documentos e normas sobre o assunto e qual a atual realidade nacional de atendimento ao egresso. Em seguida, são brevemente analisados alguns aspectos que atravessam o entendimento de ressocialização. No final do capítulo, apresenta-se um panorama geral da realidade dos adolescentes no momento pós-medida socioeducativa, feito a partir de um levantamento bibliográfico que contemplou pesquisas empíricas realizadas com egressos. Na continuidade do trabalho, o capítulo quatro descreve as características metodológicas da pesquisa, o qual inclui a especificação sobre as duas etapas deste estudo – pesquisa documental e entrevistas –, os critérios de definição dos participantes, os aspectos éticos e os procedimentos de análise de dados. Por fim, são apresentados e discutidos os resultados deste estudo..

(17) 15. CAPÍTULO 1: A INFÂNCIA E A ADOLESCÊNCIA COMO ALVO DA INTERVENÇÃO DO ESTADO. 1.1 Trajetória das políticas sociais de atendimento a crianças e adolescentes no Brasil: do “menor” ao adolescente autor de ato infracional. Antes de adentrar na discussão sobre as especificidades do modo de funcionamento do SINASE e sobre os egressos desse sistema, será discutido, de maneira breve, como, historicamente, se deu a atenção à criança e ao adolescente considerado em conflito com a lei no Brasil. Essa contextualização é imprescindível para que se compreenda as bases que fomentaram a construção do modelo vigente de responsabilização do adolescente e que reforçam seu atual modo de funcionamento. Além disso, é, também, essencial para entender quem são os adolescentes que chegam, hoje, a esse sistema e alguns elementos que sustentam o modo como eles são vistos e interpretados atualmente. Os modos de lidar com a infância e a adolescência historicamente refletem e são reflexo de diferentes entendimentos sobre esses sujeitos. Pode-se dizer que, durante os mais de três séculos em que o Brasil foi colônia de Portugal, as ações de atenção à infância pobre no país eram, quase todas, de caráter religioso (Arantes, 2011). Não existia a noção de direitos de crianças e adolescentes e tampouco a questão da responsabilização desses sujeitos tinha maior expressão. Mendez (2006) identifica que, até o início do século XX, as pessoas consideradas “menores de idade”, ao infringirem leis penais, eram tratadas, basicamente, da mesma forma que os adultos que estivessem em situação semelhante. As únicas exceções diziam respeito às pessoas de sete a dezoito anos, que tinham diminuídas em um terço suas penas, e aos menores de sete anos, que, com base na tradição do direito romano, eram considerados incapazes e.

(18) 16. tinham seus atos equiparados aos de animais não-humanos. Por isso, o autor caracteriza esse período como “penal indiferenciado”. No início do século XX, com o princípio da República no Brasil, o país passa por transformações decorrentes do processo de urbanização e a medicina ganha, progressivamente, espaço na vida social. Entram em cena conhecimentos médicos sobre higiene, controle e prevenção de doenças infecto-contagiosas e epidemias, os quais tinham na figura do higienista a sua autoridade. Mas, para além do meio médico, o movimento higienista penetra em toda a sociedade brasileira, aliando-se a especialistas de diversas áreas, como pedagogos, arquitetos, urbanistas e juristas. O cerne do higienismo no Brasil esteve ligado ao darwinismo social, a teorias racistas e à eugenia, colocando-se abertamente contra negros e mestiços, por mais que estes representassem a maior parte da população brasileira. Suas propostas visavam ao “saneamento moral” do país, que pode ser traduzido como a limpeza social para eliminação da pobreza e de todo os males a ela atribuídos. Para o movimento higienista, os vícios e as virtudes eram, em grande parte, heranças familiares. Ou seja, deveriam ser tomadas medidas contra as pessoas consideradas provenientes de famílias “com moral duvidosa” – leia-se, os pobres (Coimbra & Nascimento, 2003). Nesse ínterim, são definidos e evidenciados padrões de normalidade e patologia, de doença e cura e de diagnóstico e prevenção, a partir dos quais a higiene médica intervém na intimidade das famílias e instaura práticas disciplinares. São disseminados, então, padrões para a normalização das condutas na esfera física, psíquica e sexual, por meio de valores típicos e exclusivos do universo burguês. Era criada, com isso, a figura do indivíduo polido, contido e idealmente reprimido (Costa, 1989). É por esse viés higienista que se ampliam os olhares voltados à criança e ao adolescente, sobretudo aos que viviam em situação de pobreza. Novas práticas cotidianas de controle são.

(19) 17. recomendadas a esse público, com base em dispositivos normativos médicos, sociais e assistenciais, em nome da preservação da segurança. Em consequência, os atos que infringissem essas regras de higienização passariam a ser punidos (Passeti, 1995). O entendimento de que há parâmetros de normalidade a serem socialmente seguidos está intimamente relacionado à ideia de que é possível moldar o comportamento de uma pessoa e transformá-la a partir desses padrões. Ou seja, em uma dimensão mais ampla, passa-se a entender que, a depender do tratamento dado a alguém enquanto criança, poder-se-ia transformá-la em um “homem de bem” ou em um ser “degenerado e vicioso”. Investir na infância passa a ser sinônimo de investir no adulto em que ela se tornará – e, logo, no progresso da nação constituída por esses adultos. A criança passa, daí, a ser alvo de investimento social e político, pois zelar por ela correspondia a zelar pela ordem e pela paz social (Rizzini, 2011). Nesse contexto, a infância torna-se alvo de vigilância do Estado, passando a ser concebida como objeto de proteção e de defesa, no intento estatal de prevenir a sociedade de um mal futuro. Surge a necessidade de se pensar em um sistema de proteção à infância e à adolescência, principalmente àquelas que poderiam oferecer algum tipo de perigo à ordem social. As ações centrais nesse intuito consistiam em retirar crianças e adolescentes dos meios considerados atentatórios à moral, como as ruas, e levá-los a instituições, onde, reclusos, eles se distanciariam dos perigos até então oferecidos. O modelo de atendimento asilar assumia a internação como forma de “recuperação” dessas crianças e adolescentes para o convívio na ordem social. Acompanhando o debate internacional sobre sistemas de proteção à infância e convencido da necessidade de salvar a criança para salvar a nação, o Brasil inicia, nas primeiras décadas dos anos 1900, a formalização dos modelos de atendimento assistenciais propostos pelo Estado. Em 1927, é instituído o Código de Menores, o qual buscou organizar e direcionar as ações de tutela e coerção do Estado para com os chamados menores. Esse Código incorporou.

(20) 18. tanto a visão higienista de proteção do meio e do indivíduo, quanto uma visão jurídica repressiva e moralista (Faleiros, 2011). Dentre outras disposições, o Código permitia intervir no abandono físico e moral dos menores e retirar o pátrio poder 1 nos casos em que fosse julgado pertinente; internar os socialmente abandonados; e repreender e instituir a liberdade vigiada aos jovens autores de infração penal (Perez & Passone, 2010). Essa legislação tinha como característica o enfoque corretivo, voltado para as práticas disciplinares e punitivas, mantendo a internação como principal proposta de intervenção, com o objetivo declarado de reeducar e readaptar a criança e o adolescente à sociedade. No capítulo referente aos “menores delinquentes”, artigo 86, inciso 4º, o Código dispõe que “Si o menor não tiver sido preso em flagrante, mas a autoridade competente para a instrucção criminal achar conveniente não o deixar em liberdade, procederá de accôrdo com os §§ 2º e 3º”. Isso implica que todas as crianças e adolescentes de que tratava o Código de Menores eram passíveis, em alguma medida, de serem sentenciadas como irregulares e enviadas às instituições cabíveis, mesmo que fosse por uma simples suspeita ou por sua aparência física. Ou seja, o Estado passa a poder declarar como “irregular” parte da população e tomar para si o papel de lidar diretamente com essa irregularidade. E quem eram as crianças e adolescentes de que tratavam o Código? Ora, tendo em vista que as situações consideradas “irregulares” não eram comuns às classes média e alta, o Código de Menores direcionava suas orientações, então, para os filhos das famílias mais pauperizadas, tendo respaldo legal para criminalizar as estratégias de sobrevivência dessas famílias.. 1. Durante a vigência do Código Civil de 1916, o homem (pai) era detentor de poder absoluto e exclusivo sobre os filhos, situação que designava o termo “pátrio poder”. A partir do Código Civil de 2002, esse termo foi substituído por “poder familiar” e passa a abranger os direitos e deveres atribuídos aos pais visando a garantia de direitos e de bens dos filhos durante a infância e a adolescência. O poder familiar é instituído no interesse dos filhos e da família, não em proveito dos pais..

(21) 19. Com o Código de Menores de 1927, o termo “menor” passa a ter nomenclatura jurídica (baseada na faixa etária) e começa a ser popularizado e incorporado na linguagem comum. Entretanto, pelo caráter das intervenções do Código e pela seletividade da aplicação das mesmas a apenas uma classe social específica, esse termo passa não a designar qualquer pessoa em uma mesma faixa de idade, mas a apenas diferenciar um segmento – o pobre – do resto da população (Coimbra & Nascimento, 2003). O “menor” passa a denominar uma categoria de infância e adolescência pobre e marginal que representava perigo para a futura sociedade. Por trazer consigo esse entendimento, o Código de 1927 manifesta uma oscilação constante entre, por um lado, a defesa à criança e ao adolescente e, por outro, a defesa da sociedade contra essa criança e esse adolescente, os quais configuravam ameaça à ordem pública (Rizzini, 2002). A formalização de um sistema de atendimento voltado para o menor segue durante o governo de Getúlio Vargas. Em 1941, é criado o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), na tentativa de centralizar, sistematizar e orientar a assistência a esse público. Até então, as questões relativas aos menores vinham sendo tratadas, principalmente, pela esfera jurídica, através dos Juízos de Menores. O SAM surge, então, como órgão centralizador da organização e do controle dessas ações de assistência, retirando-as da alçada dos juízes. Esse Serviço apresentava princípios e propostas baseadas na educação e formação profissional como vias de combater a criminalidade e “recuperar” os menores. Em termos práticos, permaneceu com o modelo básico de atuação voltado à internação dos menores “desvalidos” e “transviados” (Rizzini, 2011, p. 264). À despeito de sua proposta, o SAM revelou-se uma instituição violadora dos direitos de seus usuários, marcada pela prática de corrupção e maus tratos, como uso de violência física e psicológica. Com a assunção do golpe civil-militar em 1964, o SAM foi extinto, mas seu patrimônio material e suas ações cotidianas foram incorporados por uma nova estratégia com propósito semelhante: a Política Nacional de Bem-Estar do Menor (PNBEM), que introduziu a rede da.

(22) 20. Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (FUNABEM). Seguindo esse novo modelo, em cada estado da federação foi criada uma Fundação de Bem-Estar do Menor (FEBEM), unidade física responsável por receber os adolescentes autores de ato infracional e aqueles cujos vínculos familiares estavam rompidos ou fragilizados. A PNBEM partia do pressuposto de que o cometimento de atos contrários à ordem vigente era decorrente de uma absorção falha dos valores universais da sociedade por parte do sujeito. O papel das instituições era, portanto, corrigir e reeducar os menores, integrando-os ao mercado de trabalho (Cabral & Sousa, 2004). Porém, assim como o SAM, a FUNABEM acabou por reproduzir os mesmos modelos anteriores de atendimento, baseados na repressão e na punição. No ano de 1979, um novo Código de Menores é instituído, mas permaneceu considerando a criança e o adolescente como objetos de intervenção, ao invés de sujeitos de direitos. O Código de 1979 também teve caráter repressivo e retrógrado (Rizzini, 2002) e reforçou a ideia do “menor em situação irregular”, contribuindo para reafirmar o rótulo em torno da parcela de crianças e adolescentes pobres e para diferenciá-los do resto da população. Especificamente, eram considerados em situação irregular os menores privados de condições essenciais a sua subsistência, vítimas de maus-tratos, em “perigo moral”, “com desvio de conduta” e os autores de “infração penal” (artigo 2º da Lei 6.697/79, o Código de Menores de 1979). Apesar do caráter repressivo do Código de 1979, seu surgimento se deu em um contexto político nacional de resistências populares contra a ditadura e em prol da expansão de direitos sociais, políticos e trabalhistas. Ao longo da década de 1970 e, principalmente, na de 1980, ganham força vários movimentos que tiveram papel essencial no processo de abertura política do Brasil e na luta por direitos, como as “Diretas Já”, o novo sindicalismo e o movimento pela anistia..

(23) 21. No contexto da atenção à população infanto-juvenil, são criadas entidades nãogovernamentais, como a Pastoral do Menor (1979), que apresentaram alternativas comunitárias de cuidado a esse público. Um movimento significativo nesse âmbito foi o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), que surgiu em 1985 e “buscava através do engajamento e da participação das próprias crianças, a conquista e a defesa de seus direitos de cidadania” (Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, 1994, como citado em Cavalcante, 2014, p. 34). Essa e outras entidades, junto a ativistas dos direitos da criança e do adolescente e a alguns juristas, construíram uma mobilização da sociedade e de alguns setores do Estado em prol da implementação da doutrina da proteção integral (Faleiros, 2004). Ademais, no cenário internacional, a preocupação com a proteção integral à criança e ao adolescente já era pauta em discussão e sustentava a necessidade de construção de proteção especial e diferenciada para esse público. Esse novo paradigma vinha sendo defendido e reforçado por documentos internacionais, como a Declaração de Genebra de 1924, a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948), a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de São José, de 1969) e as Regras Mínimas das Nações Unidas para Administração da Justiça da Infância e da Juventude – Regras de Beijing (1985) (Correa, 2007). Essa nova doutrina materializa-se em lei, no Brasil, primeiramente, no artigo 227 da então nova Constituição Federal, de 1988, que dispõe ser dever da família, da sociedade e do Estado o cumprimento de uma série de direitos da criança, do adolescente e do jovem. Afirma, ainda, que assegurar esses direitos é prioridade absoluta e que esse público deve ser colocado a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Além desse, os dois artigos constitucionais seguintes trazem outras mudanças na atenção a esse público: o 228 dispõe que são penalmente inimputáveis as pessoas menores de 18 anos e que elas devem estar sujeitas à legislação especial; e o artigo 229 prevê que é dever dos pais assistir, criar e educar os “filhos menores”..

(24) 22. Desse contexto emerge o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei 8069/1990, instituído como instrumento legal que visa dispor sobre a atenção à criança e ao adolescente no Brasil. A partir do ECA e da Constituição de 1988, a responsabilidade legal pela garantia dos direitos desse público no Brasil passa a ser dividida entre a família, a comunidade, a sociedade e o poder público em geral. Passam a ser direitos considerados fundamentais de toda criança e adolescente, segundo o Estatuto, o direito à vida, à saúde, à liberdade, ao respeito, à dignidade, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, à profissionalização e proteção no trabalho e à convivência familiar e comunitária. Tem-se, então, uma redefinição do lugar e da representação da criança e do adolescente na sociedade. Se, antes, eles eram objetos de intervenção do Estado apenas em situações de irregularidade, agora, passam à condição de sujeitos de direitos que se encontram em situação peculiar de desenvolvimento e que devem ser considerados com prioridade absoluta. Em consonância com essa proposta, o ECA não mais adota o termo “menor” em seu texto legal, substituindo-o por designações que, de fato, possam representar todo o público a que se destina – como “infância”, “criança” e “adolescente”. Ademais, o Estatuto passa a diferenciar as crianças e os adolescentes vítimas de violações de direitos daqueles que cometeram atos infracionais, impossibilitando legalmente a reclusão e a destituição do poder familiar por motivos de condição socioeconômica. No intuito de respaldar as normativas do ECA, o Conselho Nacional dos Direitos da Crinça e do Adolescente (CONANDA) publicou a Resolução 113/2006, instituindo o Sistema de Garantia dos Direitos (SGD) da criança e do adolescente. Este consiste na articulação e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil em prol da promoção, defesa e controle da efetivação dos direitos infanto-juvenis nas três esferas de governo (federal, estadual e municipal/distrital). O funcionamento do SGD propõe zelar pela integralidade da atenção a partir da organização de diferentes políticas sociais em objetivos comuns e pelo.

(25) 23. compartilhamento de responsabilidades. Ou seja, o trabalho integrado, articulado, dinâmico e intersetorial deve ser a base de toda e qualquer política voltada ao atendimento da criança e do adolescente, de modo que o funcionamento inadequado de um dos integrantes do Sistema tende a acarretar consequências em sua totalidade. O Estatuto inaugura um sistema de responsabilização voltado para adolescentes que cometeram atos infracionais, o chamado Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), o qual será discutido de forma mais aprofundada no próximo capítulo deste estudo. Entende-se por ato infracional a conduta tipificada legalmente como crime ou contravenção penal e praticada por criança ou adolescente. Quando da prática por crianças, são aplicadas medidas protetivas a elas e seus pais ou responsáveis. Já no caso de atos praticados por adolescentes, são aplicadas medidas socioeducativas 2, as quais se pretendem ser modos de responsabilização do adolescente e de engajamento do mesmo em um processo social e educativo 3 . Tais medidas, a depender das circunstâncias de vida do adolescente e do cometimento do ato infracional, podem ser de seis diferentes tipos: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e privação de liberdade. Passados quase 27 anos de vigência do ECA, há mudanças positivas consideráveis na vida de crianças e adolescentes brasileiros. Porém, permanecem muitos desafios na concretização de alguns direitos e na abrangência do Estatuto. Mesmo sendo uma lei com pretensões universais ao público a que se destina, o cumprimento do ECA, como o dos Códigos de Menores, permanece não atendendo a todos de uma mesma maneira, sendo mais precarizado. 2. Importante esclarecer que as medidas de proteção são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos no ECA forem ameaçados ou violados (artigo 98 do Estatuto). Logo, os adolescentes que cometeram ato infracional e que estão nessa situação também devem receber medida protetiva, além da socioeducativa. 3 Vale ressaltar que, mesmo muitas vezes considerado um documento provocador de uma mudança paradigmática no âmbito dos direitos da criança e do adolescente, o ECA permanece assentando-se em bases estruturantes da Justiça Retributiva, que submete os processos infracionais de adolescentes a rituais de condenação, baseados na punição (Araújo & Silva, 2015)..

(26) 24. àqueles que estão em situação de maior vulnerabilidade. Por exemplo, como aponta o documento do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) publicado em comemoração aos 25 anos do ECA, mais de três milhões de crianças e adolescentes estão, hoje, fora da escola e esse grupo é formado, principalmente, por pobres, negros, indígenas e quilombolas (Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2015). Esse mesmo documento apresenta os homicídios sistemáticos de adolescentes como uma trágica face das violações de direitos que permanecem ocorrendo mesmo durante a vigência do ECA. Apesar de ter se tornado referência mundial na redução da mortalidade infantil, o Brasil, desde o Estatuto, dobrou o número de homicídios de pessoas com até 19 anos, ocupando, atualmente, o segundo lugar no ranking dos países com maior número de homicídios de adolescentes. Nas três últimas décadas, a mortalidade de crianças e adolescentes por causas naturais (enfermidades e deterioração da saúde) tem diminuído de forma contínua e acentuada. Entretanto, a participação das causas externas (acidentes, homicídios, suicídios etc.) tem crescido lenta, mas continuamente, dentre os motivos das mortes desse público. Na faixa etária entre 16 e 17 anos, os homicídios representam quase metade da mortalidade e há tendência de aumentar ainda mais sua frequência no futuro. Por um lado, o declínio nas taxas de mortes por causas naturais pode ser explicado por fatores como a ampliação do acesso da população a serviços de saúde, saneamento básico e educação no país; por outro, as causas externas crescem associadas a um problema que tem sido a maior causa de letalidade dos adolescentes e jovens brasileiros: a violência urbana (Waiselfisz, 2015). As vítimas dos homicídios têm cor, classe social e endereço: são, em sua maioria, pessoas negras e pobres que vivem nas zonas periféricas e regiões metropolitanas dos grandes centros urbanos. Como agravante desse fato, não se conhecem os autores da maior parte dos casos de assassinatos de adolescentes devido à falta de investigação, o que reforça a impunidade.

(27) 25. aos agressores e a violência contra os adolescentes. No relatório produzido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (2015), é mencionado que, segundo a Associação Brasileira de Criminalística, entre 92% e 95% dos homicídios em geral cometidos no Brasil não são solucionados. Ademais, os homicídios de meninos negros e pobres da periferia, por mais que sejam cotidianos, não causam a mesma comoção que a morte de meninos brancos e isso contribui para a naturalização do problema, bem como para a associação generalizada e equivocada dos assassinatos a conflitos entre facções rivais e por tráfico de drogas. O Mapa da Violência publicado em 2016, ao trazer dados sobre homicídios ocasionados por armas de fogo no Brasil, apresenta que, apesar de a população jovem de 15 a 29 anos representar, aproximadamente, 26% dos brasileiros em 2014, ela correspondeu a 60% das vítimas por armas de fogo daquele ano. O número de homicídios por armas de fogo dentre a população nessa faixa etária cresceu, de 1980 a 2014, em 699,5%. O pico da concentração de mortalidade nas idades jovens é aos 20 anos de idade, mas a escalada da violência começa aos 13 anos, quando se quadruplica a incidência da letalidade em relação aos 12 anos e passa a crescer de forma contínua até a idade de 20 anos. Esse documento também reforça a cor das vítimas dos homicídios. Entre 2003 e 2014, as taxas de homicídios por armas de fogo com vítimas brancas caíram 27%, enquanto que, dentre os negros, esse índice aumentou em 9,9%. A “vitimização negra”4 do país duplicou nesse período, de modo que, hoje, morrem 2,6 vezes mais negros que brancos vitimados por armas de fogo no Brasil (Waiselfisz, 2016). No caso específico dos adolescentes, a taxa de homicídios entre os negros é quase quatro vezes maior que a taxa entre os brancos (Datasus, 2013 como citado em Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2015).. O Mapa da Violência de 2016 entende a “vitimização negra” como sendo “a relação entre as taxas de homicídio por armas de fogo de brancos e as taxas de homicídios por armas de fogo de negros” (Waiselfisz, 2016, p. 60). O índice positivo indica o porcentual a mais de mortes de negros que de brancos, e o índice negativo, o contrário.. 4.

(28) 26. Esses dados apresentam apenas uma das faces que explicitam como o Estatuto da Criança e do Adolescente, dentre tantas outras leis, não abrange da mesma maneira a toda a população infanto-juvenil. Como pressuposto teórico da pesquisa aqui apresentada, tem-se o entendimento de que essa cobertura desigual do ECA não é algo sem propósito, fruto de um desenrolar natural da história. Compreende-se, ao invés disso, que a seletividade de público assumida pelas políticas sociais é uma das facetas de um projeto de sociedade que visa reproduzir desigualdades sociais ao atender os interesses de apenas uma parcela da população. Esse projeto garante, por exemplo, que, apesar de diferentes adolescentes cometerem atos infracionais, alguns deles (os pobres, negros e de periferia) pareçam mais merecedores de responsabilização que outros, sejam mais estigmatizados por isso e sejam os que, de fato, são direcionados ao sistema socioeducativo. É o que será discutido no tópico a seguir.. 1.2 Sistema socioeducativo para quem? Reflexões sobre Estado, políticas sociais e criminalização da juventude pobre Neste estudo, parte-se do entendimento de que o Estado, expressando as contradições das relações sociais e de produção vigentes, expressa, também, os interesses da estrutura de classe inerente a essas relações. No final do século XIX, por exemplo, quando da transição do capitalismo concorrencial para o financeiro, as modificações na dinâmica e no ordenamento econômico implicam em incidências necessárias na estrutura social e política das sociedades. O capitalismo monopolista passa a necessitar de uma instância extra-econômica que pudesse garantir e sustentar a sua existência e esse papel é assumido pelo Estado, que, consequentemente, tem seu funcionamento redirecionado. Passa a ser papel do Estado, a serviço dos monopólios, propiciar o conjunto de condições necessárias à acumulação e à valorização do capital monopolista (Netto, 2005)..

(29) 27. E que condições seriam essas? Passa a ser função estatal essencial a preservação, a manutenção e o controle da força de trabalho, ocupada e excedente, bem como a regulação de suas possibilidades de consumo. Para tal, era necessário que, para continuar exercendo sua função econômica, o Estado agisse em prol da generalização e institucionalização de direitos e garantias cívicas e sociais. Assim, o capitalismo monopolista cria condições para que o Estado por ele capturado seja “permeável a demandas das classes subalternas, que podem fazer incidir nele seus interesses e suas reivindicações imediatas” (Netto, 2005, p. 29). Nessas circunstâncias, o Estado burguês passa a intervir contínua e sistematicamente nas expressões dos problemas políticos, sociais e econômicos que são decorrentes do surgimento da classe operária no processo de constituição da sociedade capitalista – ou melhor, nas expressões do que se chama de “questão social”5. Lança-se mão, então, de políticas sociais, no intuito de administrar as consequências da “questão social”6. As políticas sociais, apesar de terem como funcionalidade essencial a preservação e o controle da força de trabalho no sentido de assegurar as condições adequadas ao desenvolvimento monopolista, acabam por oferecer um mínimo respaldo à imagem do Estado como social. Porém, não consideram a “questão social” a partir da totalidade processual em que ela se insere, já que isso significaria remetê-la à relação capital-trabalho e, consequentemente, questionar a ordem social vigente.. No entendimento aqui exposto, a “questão social” consiste na manifestação da contradição capital-trabalho no cotidiano da vida social. Ela é constitutiva do desenvolvimento do capitalismo, de sua dinâmica societária. A cada novo estágio de desenvolvimento desse modo de produção, ela instaura expressões sócio-humanas diferenciadas e mais complexas, decorrentes da intensificação das relações de exploração. (Netto, 2005) 6 Apesar disso, é importante salientar que, como explicitado por Netto (2005), não se deve entender a funcionalidade da política social no âmbito do capitalismo monopolista como uma “decorrêcia natural” do Estado burguês. A vigência do monopólio coloca a possibilidade dessa insurgência, mas a concretização das políticas sociais é contingenciada, também, pela luta de classes. Segundo o autor, “não há dúvidas de que as políticas sociais decorrem fundamentalmente da capacidade de mobilização e organização da classe operária e do conjunto dos trabalhadores, a que o Estado, por vezes, responde com antecipações estratégicas” (Netto, 2005, p.33). 5.

(30) 28. Sendo assim, a intervenção estatal sobre a “questão social” se realiza de forma fragmentada e parcializada, de modo que a política social deve constituir-se, necessariamente, em políticas sociais, no plural. As sequelas da “questão social” são recortadas na intervenção estatal e enfrentadas como problemáticas particulares – políticas de combate à fome, de combate ao desemprego, política educacional, habitacional etc. Assim, as prioridades no campo social são definidas a partir de políticas setorizadas. Se as políticas sociais não dão respostas ao fenômeno da desigualdade social em si, elas apenas repõem sobre novas bases o processo de produção e reprodução do capitalismo, mas não o superam. Por isso, concorda-se aqui com Lacerda Jr (2015) que essas políticas são incapazes de produzir emancipação às pessoas que dela se utilizam. Isso associa-se a algo para que Demo (1990) chama a atenção: na prática, é incoerente que o Estado planeje sua própria superação e, por isso, de modo geral, as políticas sociais não preveem a auto-sustentação das comunidades. Pelo contrário, buscam criar dependência por parte da população, domesticá-la, e esconder o efeito de desmobilização que operam com isso. Com base nisso, Pedro Demo (1990) apresenta o conceito de “pobreza política”, cujo significado diz respeito à “dificuldade de formação de um povo capaz de gerir seu próprio destino” (Cruz, 2010, p.112). Esse termo anuncia a existência de um grupo de pessoas que, de modo naturalizado, é marginalizado e privado de direitos, pois vive em estado de manipulação e dependência sem que tenha consciência disso – ou seja, é coibido de organizar-se em defesa de seus direitos. O caráter político da pobreza, logo, diz respeito não apenas à falta de acesso satisfatório a recursos capazes de suprir necessidades básicas, mas também ao fato de serem minadas as possibilidades de organização social para reversão desse quadro..

(31) 29. Mesmo assim, é importante apostar na defesa das políticas sociais como uma forma necessária de resistência à ofensiva neoliberal7. É certo que, via políticas sociais, abre-se apenas o espaço para a reforma, em vez da transformação de um modelo societário propriamente dita. Porém, a partir delas é possível estabelecer condições que podem viabilizar mudanças sociais significativas (Demo, 1990). No atual contexto de neoliberalismo, além das características de fragmentação e parcialização, as políticas sociais sofrem a influência da regressão do gasto público no setor social 8 e são “refuncionalizadas” 9 , o que significa dizer que passam por um processo de precarização e privatização dos serviços. A precarização se dá por duas vias: pela descentralização, na qual a responsabilidade pela oferta dos serviços é transferida aos níveis locais de governo, o que contribui para a deterioração e para os poucos financiamentos dos serviços; e pela focalização, a qual realiza um corte discriminatório na oferta dos serviços sociais básicos, passando a ser necessário atestar “condição de pobreza” para utilizá-los. Por sua vez, a privatização dos serviços transforma-os em mercadorias, inserindo-os em uma lógica de consumo mais que de direitos, e devolve-os, total ou parcialmente, ao cargo da filantropia, transferindo para o âmbito da sociedade civil parte da responsabilidade pela oferta deles (Yamamoto, 2007). As consequências desse processo se traduzem em um atendimento. 7. Os pilares do neoliberalismo são a minimização do Estado (garantidor de direitos sociais e políticos; mas a maximização do Estado à serviço do capital) e a liberdade de mercado. Diante da necessidade de liberalizar os mercados, o projeto neoliberal tem, como um de seus desdobramentos, a (contra)reforma do Estado, ou seja, o esvaziamento de conquistas sociais, trabalhistas, políticas e econômicas desenvolvidas anteriormente. Para os neoliberais, os gastos sociais contribuem com a condução a uma situação geral de crise econômica e política, sendo necessária a redução da intervenção estatal no financiamento e na operacionalização das políticas sociais. Propõese, nesse contexto, a substituição das políticas sociais por programas de combate à pobreza, trocando a universalidade pela focalização das ações (Montaño & Duriguetto, 2011). 8 É necessário ressaltar que, concordando-se com Yamamoto e Oliveira (2010), considera-se inadequado interpretar os governos de Luís Inácio Lula da Silva (como também o de Dilma Rousseff) como meras continuidades dos governos anteriores (de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso), de caráter abertamente neoliberal. São inegáveis as modificações positivas nas condições de vida de parte da população, especialmente as que, historicamente, têm seus direitos violados mais frequente e sistematicamente. Entretanto, no tocante às políticas sociais, não houve, nesses governos, uma ruptura com a priorização de programas focalizados e compensatórios em detrimento dos universalistas e redistributivos. 9 Como discutido por Montaño (2002) e por Yamamoto (2007)..

(32) 30. segmentado que proporciona serviços de qualidades diferenciadas a depender da capacidade de pagamento do usuário (Yamamoto & Oliveira, 2010). Como acréscimo a essas questões, Wacquant (1999) apresenta uma outra característica associada à lógica neoliberalista e à decadência do Estado keynesiano10: o fortalecimento das forças repressivas estatais é concomitante e complementar à retração dos gastos públicos sociais. Em seu livro “Punir os pobres” (Wacquant, 2003), o autor, a partir de uma análise da realidade carcerária dos Estados Unidos desde a década de 1970 até o final da de 1990, explica que a diminuição nos gastos com políticas sociais gerara, naquele país, um fluxo crescente de famílias e indivíduos sem acesso a empregos e sem condições mínimas de vida nas periferias das cidades. Essas pessoas, muitas vezes, lançavam mão de meios considerados ilegais para complementação de renda e suprimento de suas necessidades básicas e, em resposta a isso, o Estado passou a desenvolver suas funções repressivas e usá-las em substituição às caritativas para punir tais sujeitos. Nessa lógica, o Estado passa a punir mais e por mais tempo atos que antes não eram passíveis de penas. Disseminam-se teorias que sustentam a penalização em massa, como a “teoria das janelas quebradas”11, a qual defendia enfaticamente a necessidade de se punir os pequenos delitos para prevenir futuras infrações mais graves. A partir desse entendimento, a. 10. O Estado keynesiano é caracterizado por intervir na economia a partir da assunção de papel protagônico no sistema de regulação social. Em prol da sustentação das condições para acumulação capitalista, o Estado passa a se ocupar: da criação das condições gerais de produção (como os meios de transporte e de comunicação); da repressão às ameaças ao modo de produção e acumulação (via polícia, sistema judiciário e penitenciário, por exemplo); e da integração das classes subalternas e da legitimação da ordem (mediante o desenvolvimento da lógica vinculante da democracia). Sendo assim, o Estado keynesiano, por exemplo, ocupa-se em oferecer políticas sociais (visando recompor a população como força de trabalho) e manter as condições de consumo em massa, retirando parcialmente a responsabilidade do capitalista com os custos de reprodução da força de trabalho (Montaño & Duriguetto, 2011). 11 A Broken windows theory foi formulada em 1982 por James Q. Wilson e George Kelling e sustenta que é impedindo ou punindo as pequenas infrações cotidianas que se previne as grandes patologias criminais. Essa teoria, apesar de servir de álibi ao programa da tolerância zero, que se espalhou dos Estados Unidos para a Europa e a América Latina, nunca foi comprovada empiricamente (Wacquant, 1999)..

(33) 31. atividade policial é reorganizada com base no programa da “tolerância zero”: eleva-se massivamente o orçamento policial e aumenta-se o seus poderes e liberdades no agir “para perseguir agressivamente a pequena delinquência e reprimir os mendigos e os sem-teto nos bairros deserdados” (Wacquant, 1999, p.16). A reorganização policial que se embasa nessa proposta tem o objetivo de refrear o medo das classes médias e superiores a partir da perseguição permanente dos pobres nos espaços públicos, como se a presença destes já fosse, por si só, um indício de criminalidade. Amplia-se a sensação de insegurança e, ao mesmo tempo, faz-se parecer que se está lutando incessantemente contra ela. Diante da necessidade de encontrar novos perigos que justifiquem a intervenção policial, busca-se, desesperadamente, por um inimigo, o qual é personalizado nos “pequenos passadores de droga, as prostitutas, os mendigos, os vagabundos e os pichadores. Em suma, o subproletariado que suja e ameaça” (Wacquant, 1999, p.17). Opera-se, então, uma “política estatal de criminalização das consequências da miséria de Estado” (Wacquant, 2003, p. 27), em que este pune parte da sociedade por uma problemática que ele mesmo contribuiu para causar. Para isso, transformam-se os serviços sociais em serviços de vigilância e de controle das “novas classes perigosas” (Wacquant, 2003, p. 28) e usa-se o encarceramento como recurso maciço e sistemático, aumentando-se a duração da detenção e o volume dos condenados à prisão. Tem-se, pois, uma nova forma de governar a miséria, em que “a criminalização da marginalidade e a ‘contenção punitiva’ das categorias deserdadas faz as vezes de política social” (Wacquant, 2003, p.19). Ou seja, ao “menos Estado” social sucede o “mais Estado” policial e penal. Nessa lógica, a pobreza é identificada, automaticamente, como classe perigosa e agente do crime, assim como as regiões onde habita são consideradas áreas “de risco”. Com base nisso, justifica-se uma diferenciação de determinada parte da população enquanto “outro” inferior,.

(34) 32. que merece um tratamento repressivo e punitivo porque, aparentemente, é dele que provêm todas as mazelas sociais. Como afirma Zaffaroni: A essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o direito lhe nega sua condição de pessoa. Ele é considerado sob o aspecto de ente daninho ou perigoso. Por mais que a ideia seja matizada, quando se propõe estabelecer a distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não-pessoas), faz-se referência a certos seres humanos que são privados de certos direitos individuais, motivo pelo qual deixaram de ser considerados pessoas (Zaffaroni, 2007, p.18). O encarceramento em larga escala alimenta uma indústria cultural do medo dos pobres, a qual é amplamente difundida pela mídia e contribui para uma verdadeira demonização de grupos sociais periféricos. Wacquant fala sobre os habitantes dos guetos estadunidenses algo que se assemelha ao que ocorre, também, no Brasil, em relação a alguns grupos sociais: Sua demonização permite que seja simbolicamente isolado e descartado, justificando assim uma política de Estado que combina medidas punitivas, como os programas de trabalho forçado, a “Guerra às drogas” (que é acima de tudo uma guerrilha contra os viciados e os traficantes das áreas de gueto) e políticas penais que levaram à duplicação da população prisional (...) É principalmente a “sensação de animosidade, de desconfiança e de desprezo” inspirada pelos negros do gueto no restante da sociedade norte-americana, que serve para consolidar essa categoria (Wacquant, 2008, p.50). Apesar de as análises de Wacquant basearem-se na experiência e na história estadunidense, esse modelo de encarceramento em massa e de leis penais cada vez mais rígidas tem servido de inspiração e tem se concretizado no Brasil. O cenário brasileiro tem a agravante peculiaridade da tradição de controle dos miseráveis pela força, a qual remonta à escravidão e aos conflitos agrários..

(35) 33. Aqui, a intervenção da força policial vem cumprindo, historicamente, o papel de conceder o aval do Estado em penalizar a miséria e, a partir disso, tornar invisível e assentar a dominação étnico-racial. A violência policial apoia-se num viés hierárquico e paternalista de cidadania que opõe os “cultos” e os “marginais”, de modo que a manutenção da ordem de classe e a manutenção da ordem pública se confundem. Assim, o conjunto de classes sociais tende a identificar a defesa dos direitos do homem com tolerância à “bandidagem” (Wacquant, 1999). Esses processos descritos por Wacquant desmantelam a compreensão sobre causa e consequência de problemas sociais e atribuem à pobreza a responsabilidade por eles. Tem-se, pois, uma criminalização da pobreza mediante práticas sociais e estatais que buscam dar conta do excedente da miséria que não está sendo administrada por políticas sociais. O pensamento neoliberal afirma a separação, de modo estanque, dos aspectos econômicos dos sociais, fazendo parecer que o crescimento econômico deve acontecer a despeito da distribuição de bens, riquezas e da educação. Nessa lógica, a dimensão social é também separada da individual, de modo que a responsabilidade por situações macroestruturais (como o desemprego e a fome, por exemplo) é atribuída a um suposto fracasso dos indivíduos. No âmbito dos adolescentes autores de atos infracionais, tem-se um exemplo da individualização de questões macroestruturais quando se leva em conta o tratamento que esses sujeitos recebem. Diante da apuração de um ato infracional, não se prioriza questionar que circunstâncias conjunturais, sociais ou institucionais da ordem social vigente contribuíram para aquele ato. Não é dada prioridade para o entendimento de que o ato infracional, como o crime, é um sintoma de um conjunto de situações cotidianas que os jovens experimentam e que, se vamos além das aparências e das explicações causa-efeito, podem revelar precariedades institucionais (escola, família), fracasso de instituições reguladoras da convivência social (o sistema de justiça) e ambivalências da sociedade brasileira (Malvasi & Teixeira, 2010, p.74-75)..

Referências

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