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IV. INTERROGAÇÕES

1.4 A CRIAÇÃO DA COMISSÃO DE ANISTIA

Segundo a leitura aqui proposta, entendo como marco seguinte a promulgação da lei de criação da Comissão de Anistia52 em 2002 ainda sob o governo FHC, e que inclui na categoria de anistiados/as os/as perseguidos/as políticos/as, possibilitando a reintegração de pessoas punidas pelo regime a cargos públicos ou particulares, ou a cursos interrompidos em razão da perseguição, e prevê a indenização dessas pessoas, entre outros pontos.

Findos os trabalhos da CEMDP sob o signo da interdição à elucidação das violências sofridas, o movimento social que passou a ganhar força e visibilidade foi o de ex-perseguidos/as políticos/as, que, organizados/as em diversas entidades ao redor do país, conseguiram que em 2001 o governo enviasse ao congresso nacional uma medida provisória voltada para a questão da reparação econômica daqueles/as que tiveram suas atividades profissionais prejudicadas de múltiplas formas em decorrência de oposições ao regime civil-militar. Com a promulgação da lei, a Comissão de Anistia, criada no âmbito do Ministério da Justiça ao final do segundo mandato do governo FHC, iniciou seus trabalhos em 2003 e, diferentemente da Comissão Especial, permanece ativa (MEZAROBBA, In SANTOS, TELES e TELES, 2009b). Ela foi dividida em três câmaras para análises dos casos por tipo de vínculo de emprego ou de estudo afetado – a saber, perseguidos/as

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BRASIL. Lei Nº 10.559, de 13 de novembro de 2002. Regulamenta o art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10559.htm. Acesso em: 4 de fevereiro de 2017.

que trabalhavam sem vínculo empregatício, que trabalhavam dentro de administração indireta ou pertencentes às forças armadas (SOARES e PRADO, In SANTOS, TELES e TELES, 2009b).

Essa lei também exige a comprovação de perseguição política por parte de quem requere a declaração de anistiado para si ou para seus/suas familiares, mas aqui há um importante diferencial. Além de notícias de jornais, revistas e documentos sindicais e de outras entidades representativas, os processos da Comissão de Anistia são povoados de certidões da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), órgão de monitoramento e controle de militantes e pessoas suspeitas de engajamento político indesejado, recurso com o qual a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos não pôde contar, afinal, divulgar o histórico de prisões e perseguições de pessoas que terminaram por ser mortas ou desaparecidas significa, para o estado, a assunção de um ônus que todas as políticas reparatórias desde a “abertura” do regime civil-militar teimam em recusar.

Também é nesse sentido que há um favorecimento desigual de deferimentos entre processos avaliados pela Comissão de Anistia, que exige maior precisão e riqueza documental e indefere mais casos, e a CEMDP, que tendia a exigir menos rigor probatório, pois tinha para si a missão de fazer concessões reparatórias sem perturbar a paz dos agentes da repressão pelo requerimento de acesso a informações (SOARES e PRADO, In SANTOS, TELES e TELES). É, contudo, notável – no pior sentido imaginável – que, no que diz respeito aos casos analisados por ambas as comissões, caiba às vítimas das múltiplas violências de exceção, a suas/seus familiares e amigas/os o trabalho, custo e, acima de tudo, a responsabilidade de provar as violências sofridas (GASPAROTTO, 2013).

Vejamos outro ponto relevante. O que a referida lei garante, para fim de diversas formas de reparação, é uma “declaração de anistiado” para quem se enquadra em uma ou mais de suas tipificações: atingidos por atos institucionais ou complementares, punidos com transferência de localidade, impedidos de exercer atividade profissional, demitidos, impelidos, desligados, licenciados, compelidos, etc. etc.53. Note-se como a categoria de “anistiado”, tal como é aqui construída, não reconhece uma vitimização em sentido estrito, e muito menos uma agência de violência. Como na “Lei dos Desaparecidos”, essa repressão- vitimização é meramente implícita, enquanto o texto que é de fato passível de emprego por operadoras/es do direito continua se

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esquivando do vocabulário que viabiliza medidas punitivas e estabelece imputabilidades. Tampouco há, na lei que determina e regulamenta a Comissão de Anistia, qualquer menção a práticas de tortura ou a danos físicos e/ou psicológicos de qualquer natureza praticados contra os “anistiados” no contexto de sua “punição”.

Essa mesma estratégia evasiva volta a ser empregada por meio do uso do termo “indenizado” pela Comissão de Anistia. Aqui também a forma como são identificadas pessoas que, submetidas a formas variadas de violência estatal sistematizada durante um regime de exceção – e, em razão disso, precariamente compensadas com uma reparação financeira – não são nomeadas de modo a evocar todo esse processo, mas tão somente pela vinculação institucional que se estabelece com esse órgão reparatório via indenização: são indenizados/as. Instrumento de dessubjetivação política que reconhece seus/suas cidadãos/ãs assim vinculados/as antes como beneficiários de uma política estatal do que como sujeitos/as políticos/as dotados/as de agência em um processo político complexo que, então, passam a ser institucionalmente vinculados/as.

Desse modo, o que aqui é indiretamente acrescido às narrativas oficiais precedentes sobre o regime civil-militar é a assunção de práticas estatais que prejudicaram profissionalmente militantes políticos/as de oposição, mas, para efeito tanto da efetivação da justiça formal quanto da substituição da narrativa oficial, o estado que jaz nas entrelinhas da lei permanece esvaziado de pessoas, na medida em que os atos institucionais e complementares carecem formalmente dos sujeitos que os formularam e os puseram em prática, e que o corpo geral da política pública assim instituída não denota em última instância o terror institucionalizado como instrumento político característico do regime referido pela lei, e não estabelece responsabilidades em sentido estrito. O mesmo parece se aplicar às Caravanas da Anistia, que percorrem o país realizando julgamentos para averiguar se casos apresentados a elas são ou não passíveis de ser contemplados pela lei. “Nessas ocasiões”, relata Joffily (2012),“a cerimônia de concessão da anistia é seguida de um ato simbólico de pedido de desculpas por parte do Estado”. Estado desprovido dos rostos de seus agentes e que, dessa forma, ritualiza uma reparação, administra mais uma vez o passado fazendo uso de um recurso performativo que, articulado ao recurso da reparação econômica, admite apenas a parcela que convém das acusações feitas pelas pessoas que sofreram e sofrem com suas violências de exceção, e assim efetiva mais uma estratégia de governo das memórias públicas e tensões sociais em torno a esse regime.

1.5 A CRIAÇÃO DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE