• Nenhum resultado encontrado

IV. INTERROGAÇÕES

2.2 A QUEM SE RELATA

O relatório da CNV se propõe a contemplar o direito à memória e à verdade histórica. Ele o faz, conforme consta no próprio corpo do texto, de acordo com as determinações propostas segundo os princípios Joinet, posteriormente atualizados, isto é, segundo princípios do sistema internacional de direitos humanos centralizado na figura da Organização das Nações Unidas (CNV, 2014a, pp. 32-33).

Entretanto, no que diz respeito às memórias, não é suficiente pensá-las somente em seu aspecto ético-filosófico, segundo princípios. Para dar conta de sua dimensão social, não é possível considera-las senão de maneira plural, contingente, política, isto é, enquanto práticas sociais enraizadas em contextos concretos (RUFER, 2009). Memórias são, afinal, transmissões intergeracionais que não se dão de maneira natural, exigem esforços ativos e politicamente interessados, e não se dão entre pessoas passivas, mas entre sujeitos/as históricos/as e localizados/as que se apropriam delas conforme suas condições, interesses, posicionamentos (OBERTI, In JELIN, 2006). É, portanto, interessante questionar não somente forma e conteúdo dessas memórias, mas entre quem se dá essa passagem. Se ao final do capítulo anterior esbocei um retrato da organização que fala, e considerando que o escopo desse trabalho não dá conta de estudos detalhados de recepção e repercussão dessas memórias arbitrariamente arquitetadas, cabe, por outro lado, interrogar os canais de passagem, tal como foram configurados.

“As atividades da CNV receberam expressiva cobertura por parte dos veículos de comunicação”, diz o relatório, defendendo que as reportagens, notícias e matérias veiculadas pelos diversos suportes midiáticos, entre jornais, revistas, rádio, televisão e internet, “fizeram com que a sociedade brasileira tivesse condições de acompanhar a vida da CNV, formando sua convicção e posicionando-se em relação às manifestações do órgão e de seus integrantes” (CNV, 2014a, p. 51). Feita essa consideração sobre a divulgação dos trabalhos da CNV por agências alheias a ela, o relatório passa a narrar os esforços de divulgação da própria comissão:

http://www.cnv.gov.br/outros-destaques/524-cnv-pede-esclarecimentos-as- forcas-armadas-sobre-conclusoes-de-sindicancias-que-desconsideraram-provas- de-tortura.html. Acesso em 4 de fevereiro de 2017.

Os trabalhos da CNV foram também noticiados em canais de comunicação próprios: sítio institucional e canais no Twitter, Facebook e YouTube. A partir de 10 de maio de 2013, as audiências públicas realizadas pela CNV passaram a ser transmitidas em tempo real, pela internet e por meio de diferentes plataformas de transmissão (TwitCasting, YouTube e transmissões em alta definição especialmente contratadas). O alcance dessa divulgação pode ser medido pelos seguintes dados, contabilizados até outubro de 2014: a página do Facebook da CNV foi seguida por 165.067 pessoas; a CNV publicou 470 vídeos no YouTube, que foram acessados, ao todo, 258.287 vezes; o Twitter da CNV foi seguido por 10.784 pessoas; e, finalmente, o sítio da CNV foi acessado 1.305.403 vezes, entre fevereiro de 2013 e outubro de 2014 (CNV, 2014a, pp. 51-52).

A avaliação desses dados leva a reflexões conflitantes: convivem o reconhecimento da internet como meio expressivo facilitador de acesso e replicação de conteúdos por suas incomparáveis particularidades de intercâmbio de informações no espaço-tempo, por um lado, com o alcance desses números de acessos em um país de mais de 200 milhões de pessoas, números que certamente implicam caminho percorrido em relação ao esvaziamento do debate sobre as memórias da ditadura pré-CNV, mas que se apequenam se comparados a qualquer página pessoal de celebridade de grande visibilidade na internet, ou a qualquer canal de mídia de maior alcance. E por que não usar esses canais também? “Se suas ações tem a finalidade de tornar pública uma verdade que até hoje foi negada”, coloca Bauer (2014, p. 166), “por que seus trabalhos são, na maioria dos casos, sigilosos, ou divulgados apenas em seu sítio, e não nos grandes veículos de comunicação que, como concessões estatais, devem espaços para manifestações oficiais?” Cejas traz o emblemático caso sul-africano como contraponto. Durante a primeira fase de coleta de testemunhos por parte da Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul,

algumas das vítimas testemunharam em audiências públicas em diversos lugares do país, algumas das quais foram transmitidas por rádio e televisão (quatro horas diárias de transmissão ao

vivo por rádio, todos os dias no noticiário vespertino e aos sábados em um especial de uma hora pela emissora nacional de televisão SABC TV3, também nos jornais) nos onze idiomas oficiais (CEJAS, 2007, p. 29, minha tradução91).

Outro aspecto implicado na escolha de um canal próprio na internet como via primordial de divulgação e acesso às produções da CNV é que ela pressupõe, além da acessibilidade digital, e ainda mais que no caso do rádio, da televisão e dos periódicos, uma busca ativa por esses conteúdos específicos por parte do público leitor/espectador. Pressupõe, de uma só vez, acesso à internet, letramento e conhecimento e interesse prévios sobre os trabalhos da comissão. Assim, aqui também convivem a disponibilização de conteúdos facilmente manejáveis por sujeitos/as autônomos/as protagonistas de seus movimentos individuais e grupais de busca e intercâmbio de informações, por um lado, com uma acessibilidade diferencial recortada, no mínimo, por questões de classe social e grau de escolaridade, aspectos co-dependentes no contexto brasileiro, como em tantos outros no universo do capitalismo global, e em espacial na América Latina.

Aliás, o recurso a pensar outros contextos latino-americanos é extremamente educativo: o já referido informe Nunca Más, elaborado como resultado dos trabalhos da CONADEP da Argentina na década de 1980, dentro de suas limitações e potencialidades, já na década de 1990 havia começado a ser adotado em escolas argentinas por meio de políticas públicas educacionais (GONZÁLEZ, 2011). Em contraste, o relatório da CNV apresenta, entre as recomendações, uma intitulada “Promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos na educação”, descrita conforme segue:

O compromisso da sociedade com a promoção dos direitos humanos deve estar alicerçado na formação educacional da população. Assim, deve haver preocupação, por parte da administração pública, com a adoção de medidas e

91

“[...] algunas de las víctimas testificaron en audiencias públicas en diversos lugares del país, algunas de las cuales fueron transmitidas por radio y televisión (cuatro horas diarias de transmisión en vivo por radio, todos los días en el noticiero vespertino y los sábados en un especial de una hora por la emisora nacional de televisión SABC TV3, también en los periódicos) en los once idiomas oficiales”.

procedimentos para que, na estrutura curricular das escolas públicas e privadas dos graus fundamental, médio e superior, sejam incluídos, nas disciplinas em que couberem, conteúdos que contemplem a história política recente do país e incentivem o respeito à democracia, à institucionalidade constitucional, aos direitos humanos e à diversidade cultural (CNV, 2014a, p. 970).

De 29 recomendações finais selecionadas pela comissão de um rol de possibilidades formado “a partir, inclusive, de sugestões emanadas de órgãos públicos, entidades da sociedade e de cidadãos, que as encaminharam por intermédio de formulário especificamente disponibilizado com essa finalidade no site da CNV” (p. 964), apenas uma versa sobre a educação, de maneira bastante inespecífica e, enquanto mera recomendação, sem poder de efetivação por si própria. Se esperou-se quase três décadas pelo cumprimento de políticas públicas de direito à verdade e à memória, e se uma via primordial de construção de memórias nacionais é a educação formal básica, fundamental e média, por que não permitir-se aprender com vizinhos tão próximos, tentar superar um pouco o atraso e partir da recomendação à efetivação? Em que medida a seleção (e restrição) da transmissão dessas memórias em construção seleciona (e restringe) os/as sujeitos/as entre os/as quais se efetiva essa troca intergeracional?

Essa consideração nos leva a outra, que versa sobre a forma de escrita do relatório. Analisemos, a título de exemplo e amostra, um trecho da abertura do capítulo dedicado à narração do “Contexto histórico das graves violações entre 1946 e 1988” (CNV, 2014a, p. 86): Os anos entre 1946 a 1964 foram, certamente, bem melhores do que os da ditadura que os sucederam. Esses anos carregam, entretanto, o peso de uma polícia política gestada pelo Estado Novo – deformada pela crença de que os que detêm o poder tudo podem e por práticas violentas que absorveram o pior de nossa tradição escravocrata e das lições de agentes da repressão estrangeiros, especialmente da Central Intelligence Agency [Agência Central de Inteligência] (CIA).

Esse trecho já de saída menciona o intricado regime político do Estado Novo e uma agência governamental estadunidense sem maiores explicações do que são ou de algumas de suas particularidades, e daí parte uma narrativa entrelaçada por outras referências históricas carentes de notas explicativas e de um vocabulário engordado à base de expressões como ad hoc, poder discricionário, expurgo político, instituições congêneres, levantamento topográfico, e tantas outras que, mais ou menos corriqueiras para as classes intelectualizadas, não são menos que herméticas para a esmagadora maioria da população. A especificidade técnica e riqueza de referências, está claro, não constituem problemas em si mesmas em um relatório como esse, que exige, em grande medida, essa especialização. Contudo, sua desarticulação de vias imediatas, contínuas e pragmáticas de reescrita – didática, segundo formatos menos elitizados –, retransmissão e democratização do conteúdo, bem como sua acessibilidade parcial e não vinculação a políticas públicas educacionais, excluem, como público possível desse relatório, praticamente qualquer pessoa que não faça parte de uma elite intelectualizada e com conhecimentos e interesses prévios em torno dos trabalhos da comissão.