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IV. INTERROGAÇÕES

1.3 A LEI DOS DESAPARECIDOS

Pausa suspensa, retomo o passo. Com a dita redemocratização se viabilizam, se expandem e se multiplicam os canais de informação. Como resultado, se estabelecem entraves às práticas negacionistas, a exemplo da própria Lei de Anistia, e ganham corpo e volume as pressões sociais pela responsabilização estatal pelas práticas de exceção, demanda que já foi sentida pelo primeiro governo civil pós-regime, aquele eleito de maneira indireta. Um exemplo disso foi a visita feita por familiares de desaparecidos/as da região do Araguaia43 em 1984 ao então candidato à presidência da república Tancredo Neves, cuja promessa de busca por informações sobre o paradeiro e/ou restos mortais dessas pessoas foi logo obliterada por José Sarney, tão logo este

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Trata-se do massacre a guerrilheiros/as, camponeses/as e indígenas realizado na região do Araguaia, sul do Pará, ao longo de três campanhas militares orquestradas no decorrer de quase dois anos. No início de 1972, pouco mais de sessenta guerrilheiros/as do PC do B estavam assentados/as na região, fazendo contato com a população local e preparando-se para deflagrar uma guerrilha rural, surpreendida pela repressão antes de seu início. Até meados de 1974, como resultado sobretudo da terceira campanha, todos/as os/as guerrilheiros/as haviam sido desaparecidos/as, e seus corpos, enterrados em locais mantidos sob sigilo (RIDENTI, 1993).

assumiu o governo (SOARES e PRADO, In SANTOS, TELES e TELES, 2009b).

As pressões externas, de sua parte, formalizavam-se na ratificação de tratados internacionais de direitos humanos pelo Brasil ao longo dos primeiros governos civis44, medidas cujo alcance e implicações comecei a esboçar na introdução por meio da problematização desse corpo de direitos, e explorarei mais pormenorizadamente no epílogo. Contudo, é somente no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso que encontramos o próximo marco essencial que articula a trajetória de governo das memórias públicas aqui analisada. Esse marco se constitui pela promulgação pelo governo FHC da lei nº 9.140 em 4 de dezembro de 1995, que reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação – ou acusação de participação – comprovada em atividades políticas entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 (intervalo posteriormente ampliado para até 5 de outubro de 1988), além de criar a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) para reconhecimento de pessoas que, envolvidas ou acusadas de haverem se envolvido em atividades políticas, tenham morrido por causas não naturais em dependências policiais ou semelhantes, em razão de repressão policial em manifestações ou conflitos armados e em razão de suicídio como resultado de haver sofrido torturas por agentes do poder público, entre outras causas45.

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Em julho de 1989, ainda durante o governo Sarney, foi ratificada a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Já em 1992, sob as presidências de Collor e Itamar Franco, foram ratificados o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (SOARES e PRADO, In SANTOS, TELES e TELES, 2009b). Repare-se que esses instrumentos foram todos ratificados durante governos presidenciais reconhecidamente inexpressivos quanto às preocupações com as pautas de direitos humanos.

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BRASIL. Lei Nº 9.140, de 04 de dezembro de 1995. Reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9140.htm. Acesso em: 4 de fevereiro de 2017.

Note-se a perversidade dessa tipificação: sem revogar a Lei de Anistia46 ou garantir acesso aos arquivos militares (JOFFILY, 2012), ou seja, sem estabelecer responsabilidades jurídicas e o direito à verdade, afirma-se em texto de lei a responsabilidade estatal pela repressão. Como os demais marcos aqui propostos, aquela que ficou conhecida como “Lei dos Desaparecidos” constitui mais um caso de administração de concessões. Vejamos.

Em 1994, o então candidato à presidência FHC incluiu entre suas propostas a elaboração de um Plano Nacional de Direitos Humanos para lidar com a questão dos/as desaparecidos/as47. No início de seu governo eleito, foi apresentada pela Comissão Nacional de Desaparecidos Políticos (Conadep) ao ministro da justiça Nelson Jobim uma lista com 369 nomes: 217 pessoas oficialmente reconhecidas como mortas e 152 desaparecidas. As demandas dessas/es familiares incluíam a responsabilização oficial do estado pelas violências de exceção, a formação de uma comissão especial que abarcasse representantes da sociedade civil, a concessão de indenizações como política reparatória, a garantia de enterro dos/as mortos/as e o compromisso de não indicação de agentes da repressão para cargos de confiança do governo. Uma proposta comum a grupos de familiares e outras organizações de defesa de direitos humanos nesse momento era a formação de uma comissão da verdade nos moldes daquelas de países vizinhos como a Argentina, a Bolívia e o Chile (SOARES e PRADO, In SANTOS, TELES e TELES, 2009b). Mais do que processos de reconhecimento, esses movimentos sociais pleiteavam processos propriamente investigativos, indo de encontro à resistência mais do que prevista das forças armadas, que, como vimos, talharam para si uma posição de poder e resguardo

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“Art. 2º A aplicação das disposições desta Lei e todos os seus efeitos

orientar-se-ão pelo princípio de reconciliação e de pacificação nacional,

expresso na Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979 - Lei de Anistia” (meus grifos). In BRASIL. Op. Cit.

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Está claro que a inclinação do governo FHC na direção do estabelecimento de políticas reparatórias não se deve a simpatias pela causa e ao fato de ser, esse mesmo presidente, um anistiado. Além das pressões internas advindas de organizações de familiares de mortos/as e desaparecidos/as políticos/as, sobrevinham também alguns fatores da malha global de direitos humanos, como críticas feitas pela Anistia Internacional e recomendações da Declaração e Programa de Ação da III Conferência Mundial de Direitos Humanos das Nações Unidas de 1993, que teriam pressionado FHC a aderir ao Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) (MEZAROBBA, In SANTOS, TELES e TELES, 2009b).

extremamente cômoda no processo de “redemocratização”. Nesse contexto, também esse governo escolheu uma posição de barganha.

A lei nº 9140 de 1995, modificada posteriormente pelas leis nº 10.536 de 2002 e nº 10.875 de 2004 – a primeira durante o segundo mandato FHC e a segunda já no governo Lula –, mantendo a premissa de reconciliação nacional, reconhece como mortas 136 pessoas dadas por desaparecidas48 e determina, além dos pontos já mencionados e de outros, a constituição de uma Comissão Especial para investigação de casos não listados49, a ser composta por 7 membros de escolha do presidente da república, dentre os quais um membro da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, um/a representante de familiares do/as desaparecidos/as listados/as no anexo I da lei, um membro do Ministério Público Federal (MPF) e um integrante do Ministério da Defesa50. Se em sua singela cota de conquistas de lutas sociais a lei concedeu, por exemplo, a abordagem da situação civil de cônjuges e filhas/os de desaparecidos/as via emissão de atestados de óbito mediante comprovação de casamento ou parentesco, ela, em sua natureza de reparação/reprodução, negou a possibilidade de gestão popular da Comissão Especial (não houve possibilidade de eleição dos/as integrantes, por exemplo), restringiu o papel de familiares de desaparecidos/as e garantiu a tutela das forças armadas sobre o processo através da introdução de um membro do Ministério da Defesa.

Ora, passados 10 anos do estabelecimento do primeiro governo civil pós-regime civil-militar51, arquivos da repressão fechados e seus agentes intocáveis pelo sistema de justiça, a responsabilidade estatal é

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Cf. Anexo I. In BRASIL.Op. Cit.

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Com o imprescindível detalhe de que, como lembram Soares e Prado, as/os familiares das pessoas desaparecidas que não constavam nessa lista tinham que reunir documentação para cumprir os requisitos probatórios previstos na lei sem poder acessar os arquivos dos órgãos de repressão, tendo, assim, que recorrer majoritariamente a notícias de jornais e revistas da época (In SANTOS, TELES e TELES, 2009b).

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BRASIL. Op. Cit.

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Em contraste absoluto, na Argentina, por exemplo, o reconhecimento de violências de exceção perpetradas pelo estado durante o regime civil-militar (1976-1983) teve início logo depois que o presidente constitucional Raúl Alfonsín assumiu, no mesmo ano de 1983, com a formação da Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (CONADEP), responsável pela publicação do conhecido informe Nunca Más. Já em 1985 tiveram início os julgamentos das juntas militares que governaram o país no período (Crenzel, 2010).

assumida de maneira praticamente nominalista, concede-se a familiares de mortos/as e desaparecidos/as políticos/as um fração precária do que vinham reivindicando desde antes mesmo do fim de regime, e isso é tudo. Olha-se para as forças armadas e para outros atores da repressão sem aponta-los, permite-se às pessoas vitimizadas por eles – às que restaram – a retomada de fôlego para mais alguns anos de luta, administram-se tensões, governa-se. Afirmando às memórias públicas uma modalidade formalista de responsabilidade, a “Lei dos Desaparecidos” altera apenas de maneira contida e segura o texto da história oficial, e por isso constitui mais um marco de governo das memórias públicas sobre o regime civil-militar.