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IV. INTERROGAÇÕES

2.3 TRAÇOS GERAIS DO NARRADO: O FIO DA MEADA

Como vimos na abertura desse capítulo, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade é uma extensa publicação de estrutura tripartida. O primeiro volume, dividido em dois tomos, disserta inicialmente sobre a criação da CNV, seu mandato legal (tempo-espacial e jurisdicional), sua estrutura e seu modo de funcionamento. Finda essa auto-narração consideravelmente detalhada, o volume passa a se dedicar à produção de uma breve narrativa histórica sobre os “antecedentes” do regime de 1964, isto é, a traçar de maneira bastante enxuta – considerando que o mandato da CNV também cobre oficialmente esse período – as movimentações político-sociais consideradas relevantes para o intervalo 1946-1964. A isso se seguem a narração do golpe e, enfim, de maneira aprofundada e setorializada, as descrições das estruturas e procedimentos estatais operantes durante o regime 1964- 1985, conforme concebidas pela comissão: a estrutura, práticas e transformações ao longo do tempo de órgãos de inteligência e perseguição à oposição política (tais como o Sistema Nacional de Informações, os órgãos de inteligência das forças armadas, os Departamentos Estaduais de Ordem Política e Social, etc.); dos órgãos do sistema de justiça (justiça militar, justiça comum, Supremo Tribunal

Federal); das práticas reconhecidas pela comissão como “graves violações de direitos humanos” e suas vicissitudes (torturas, violência sexual, violência de gênero, homicídios, falseamento de suicídios e de confrontos armados, chacinas, desaparecimentos forçados, prisões extrajudiciais e em massa, suicídios decorrentes de “sequelas da tortura”, entre outros); da perseguição e repressão a grupos específicos, considerados emblemáticos pela comissão (militares, sindicalistas, camponeses, “grupos políticos insurgentes”, entre outros); da atuação do Ministério das Relações Exteriores e de operações e conexões internacionais do aparato repressor, sobretudo com alguns países que encabeçavam o bloco capitalista no Atlântico Norte, como Estados Unidos e Reino Unido, bem como a aliança ditatorial que se sistematizou no Cone Sul, sobretudo via Operação Condor; de responsabilidades e autorias (individualizadas) por “graves violações de direitos humanos”; das práticas de tortura enquanto ferramentas institucionalizadas do regime de exceção; das particularidades da organização, composição, repressão e eliminação da Guerrilha do Araguaia, tratadas em um capítulo à parte. Assim, esse volume é, por excelência, a unificação produzida pelos diversos trabalhos da comissão, na medida em que produz uma narrativa final sobre o período almejado, descrevendo suas diversas vicissitudes e o “objeto de estudos” prioritário da CNV, as “graves violações de direitos humanos”. Esse volume é encerrado com as conclusões da comissão sobre o período e com as 29 recomendações oferecidas pelo órgão para adoção pelo estado brasileiro (CNV, 2014a).

O segundo volume traz textos temáticos assinados pelos/as comissionados/as, debruçando-se sobre temas específicos concernentes ao período investigado pela comissão. Esse volume teria como particularidade a característica de incorrer em processos mais analíticos – em contraste com o primeiro volume, que seria nominalmente dedicado a apresentar a “realidade fática” (p. 15) –, permitindo transparecer o que foi recortado pela comissão como temas especialmente dignos de nota e reflexão, a saber: violações de direitos humanos dos trabalhadores, dos camponeses, dos povos indígenas, nas igrejas cristãs, nas universidades, no meio militar, ditadura e “homossexualidades”, colaboração de civis com a ditadura e resistência da sociedade civil às “graves violações de direitos humanos”, para usar a terminologia adotada no próprio texto (CNV, 2014b).

O terceiro volume é, por fim, aquele que mais procura contemplar as reivindicações de familiares e amigos/as de mortos/as e desaparecidos/as políticos/as no tocante ao direito à verdade e à memória, uma vez que

esse volume trata exclusivamente dos casos de reconhecimento público, por parte da comissão, de mortes e desaparecimentos forçados levados a cabo pelo regime de exceção do intervalo em questão, dentro do qual o regime de 1964 a 1985 foi privilegiado. Com esse fim, o volume narra filiações e trajetórias políticas, alguns aspectos da vida pessoal, dados de prisão e/ou desaparecimento, informações sobre a morte, identificação da autoria da morte (cadeia de comando), conclusões, recomendações e principais fontes consultadas para pesquisa sobre o caso, entre outras informações, das 434 pessoas às quais foi concedido esse reconhecimento (CNV, 2014c).

Antes de proceder à análise da construção de sujeitos/as dos direitos humanos por meio da narrativa articulada por essa tripla dimensão do relatório final da comissão, faz-se necessário um olhar panorâmico para o teor desse relato, do fio da meada que, a um só tempo, engendra e enreda esses/as sujeitos/as, assim reinventados na malha das palavras. A justaposição de narrativas que forma o corpo do texto do relatório, escrito a várias mãos e homogeneizado e unificado sob 6 assinaturas, beneficiou-se, até certo ponto, de seu caráter tão tardio e, bebendo da experiência de tantas outras comissões-irmãs no contexto internacional, bem como do aquecimento de debates políticos que vêm disputando e conquistando mais visibilidade ao longo das últimas décadas no Brasil como no exterior, enveredou por problemáticas comumente negligenciadas em informes desse tipo de comissão, como as questões de gênero, constituindo, nesse sentido, uma excepcionalidade positiva em comparação com outros relatórios dessa natureza. Entretanto, é premente reconhecer que o fio geral de sua narrativa reproduz uma série de lugares-comuns das historiografias hegemônicas, e em particular daquelas de caráter “reconciliatório”, institucionalizado via estado com vistas a fomentar processos de unificação nacional por meio da administração das memórias públicas, entre outras estratégias. Descontente com a postura naturalizadora do “era de se esperar”, prefiro dar ênfase ao fato de que essa é uma de tantas maneiras de atualizar e ressignificar o passado através de trocas entre presentes, e fazer pairar também aqui o questionamento permanente sobre por que escolhemos esse caminho dentre tantos, enquanto coletividade heterogênea e cindida, enquanto população.

Sob a égide desse questionamento, de saída, faz-se notar o fato de que, embora haja seções do informe dedicadas à avaliação da especialização do aparato repressor no tocante a questões de gênero, todo o texto é masculino, seja quando fala de sujeitos/as da resistência ao regime e classes específicas de pessoas – trabalhadores, camponeses, índios –,

seja quando se refere a pessoas vitimizadas pelo regime enquanto tais – perseguidos, mortos, desaparecidos. Isso aparece claramente no trecho a seguir, que trata da relação inicial entre os/as diversos/as sujeitos/as em interação no contexto pré-intervenção militar na guerrilha do Araguaia, composta por guerrilheiros e guerrilheiras:

Até aquele momento, a convivência com os militantes do PCdoB, os “paulistas”, como eram chamados, era pacífica e amistosa. Contudo, com o começo dos combates entre guerrilheiros e militares no primeiro semestre de 1972, a rotina da região foi completamente alterada e os camponeses passaram progressivamente a integrar as listas de vítimas das violações cometidas pelos agentes do Estado brasileiro (CNV, 2014a, p. 699).

Essa forma de escrita, invisibilizadora de pessoas de outras identidades de gênero enquanto agentes sociais, é empregada ao longo de todo o relatório, de modo que pessoas de identidades de gênero não masculinas só são nomeadas no feminino no texto quando isoladas em um grupo de mesmo gênero, como no trecho abaixo, que descreve a repressão à população Aikewara, do Pará, pelo exército, ainda no contexto da Guerrilha do Araguaia:

Os homens foram obrigados, sob coerção, a servir de guias para as tropas do Exército, enquanto suas esposas permaneciam cativas dos soldados na aldeia. Algumas, devido ao estresse da situação, sofreram abortos e outras perderam filhos nascidos prematuramente. Como grupo, os indígenas tiveram sua aldeia e reservas de alimento queimadas [...] (CNV, 2014a, p. 704).

Nele, as mulheres são consideradas no feminino enquanto “esposas”, para voltarem a desaparecer na linguagem logo em seguida sob a categoria masculina “os indígenas”. O mesmo ocorre nesse trecho do segundo volume do relatório, que aborda a questão da perseguição policial a travestis durante o regime:

O método utilizado pelas forças de segurança era realizar batidas policiais em locais frequentados pelas pessoas LGBT, especialmente as travestis, que eram levadas “para averiguação” às dependências policiais, tendo por fundamentos legais a contravenção penal de vadiagem e a prisão cautelar prevista no Código de Processo Penal de 1941, então em vigor (CNV, 2014b, p. 297).

Consideradas aqui na particularidade de seu gênero, em outros trechos as travestis, como as lésbicas, voltam a desaparecer no limbo da generalização pelo masculino, conforme segue: “Isso justificava a infiltração dentro de vários grupos e a perseguição a novos jornais, como o Lampião da Esquina. Também servia de pretexto para a censura arbitrária e a repressão aos gays, lésbicas e travestis” (p. 292).

A alternativa a isso não passa pela ilusão utópica de que, em um estado ainda tão fundado na lógica patriarcal, misógina e heteronormativa, como é o nosso, um informe de tais pretensões reconciliatórias pudesse ser fundado na crítica feminista, cujo recurso à linguagem é um dentre vários modos de desconstrução de hegemonias. Contudo, e considerando que o relatório foi produzido e publicado sob o governo de uma mulher que (alguns/mas) aprenderam a chamar presidenta, cabe o questionamento de como a escrita masculinista, articulada a outros aspectos que veremos mais adiante, contribui para que os notáveis e louváveis avanços que a comissão brasileira conquistou no que diz respeito a questões de gênero e sexualidade sofram uma das mais recorrentes resistências ao debate dessas questões: serem tratadas à parte, em tópicos de interesse específico como estudos “de nichos”, e não em sua natureza de categorias que atravessam e engendram o corpo social como um todo.

Outra característica constante a todo o texto do relatório – e que, por recorrente e hegemônica, não se faz menos problemática e passível de consideração crítica – é seu caráter de narrativa linear e unificadora, aspecto que o torna aparentado do informe argentino Nunca Más (CRENZEL, 2010), do Informe Rettig chileno (GRANDIN, 2005), e do informe da comissão sul-africana (CEJAS, 2007), entre tantos outros, e que, ainda segundo Cejas, trata-se de uma estratégia no processo a cujo serviço se põe esse tipo de comissão, isto é, no processo de substituição de uma narrativa nacional com vistas à substituição de

um projeto sóciopolítico de nação. Aqui, mais que apontar essa característica, vale analisar o que ela opera: a supressão das contra- narrativas, das vozes de contradição que – seja por parte de agentes da repressão que desaprovaram a existência e atuação da comissão, seja por parte de agentes sociais vitimizados/as pelo regime e seus/suas familiares, que tenham considerado insuficiente ou inadequado o conteúdo do informe final – são incorporadas ao relato unificador, e assim passam a ser tuteladas por esse terceiro que fala por elas – no caso, um aparato de estado –, fundindo suas posições díspares e diversas em uma narrativa unificada com a qual, por essa via artificial, passam a corroborar.