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3.6. O homem é um ser espiritual

3.6.1. A Criaturidade do homem

Não restam dúvidas de que a seleção natural é criadora. Mas será ela criadora de uma forma que possa tornar supérflua a ideia de Deus? (Haught, 2009, p. 181) Alguns físicos e biólogos questionam a existência de uma «meta-lei»126 que oriente todas as regulações e leis naturais direcionando a

origem do universo para a formação da vida e, consequentemente, para a formação da vida humana (Küng, 2012, p. 161), afirmando que o homem procede apenas da biologia, que a sua espiritualidade é apenas procedente da matéria, que o homem não é mais do que um animal, simplesmente mais evoluído.

Mas, como esclarece Hans Küng em O Princípio da Vida, não se pode concluir um desenvolvimento rumo à vida a partir das leis e dos princípios da física, e muito menos no que diz respeito à vida humana, e, além disso, continua o autor, “desejaríamos excluir o acaso como explicação, por ser um princípio vazio e sem conteúdo” (2009, p. 13). Os resultados da física e da biologia fazem-nos excluir tal hipótese bastando para isso lembrar que foram necessários 4 mil milhões de anos para a evolução dar lugar à vida como hoje a conhecemos. Tudo teve de “bater certo”. A começar com o Big Bang e com todas as suas constantes necessárias, como lembra o autor (o quantum de ação de Planck [h], a constante de Boltzmann [k], a velocidade da luz [c]), continuando com a formação do sistema solar e as convenientes proporções

126 Essa «meta-lei» defendida por alguns físicos, cosmólogos e biólogos, explicaria que,

desde as condições iniciais do universo passando pelas suas constantes naturais, todas as leis teriam sido organizadas orientadas para o surgimento da vida inteligente. Hans Küng esclarece que este princípio, designado como princípio antrópico, foi inicialmente formulado pelo físico americano de Princeton Robert H. Dicke em 1961 e depois aprofundado por Brandon Carter, do Observatório de Meudon / Paris em 1973, segundo o qual as constantes e as leis básicas do universo organizaram este de forma a que, em algum momento, teria de surgir a vida e a inteligência. Neste contexto o físico australiano Paul Davies refere-se ao conhecimento expresso do plano de Deus (mind of God) (Küng, A Origem da Vida, 2009, p. 18)

do Sol e da Terra. Seria tudo fruto do acaso, toda esta direção no sentido da vida, no sentido da existência do homem? (Küng, 2009, p. 16)

Como vimos anteriormente, a Bíblia afirma a criaturidade do homem, afirmação que não se reduz ao início da espécie mas que se projeta mais para o futuro do que para o passado, que se projeta, portanto, num devir a que cada um chama presente.

O evolucionismo veio chocar com o fixismo da criação direta em que animais e plantas teriam sido criados como hoje os conhecemos. Veio chocar com as ideias a que se havia acostumado o pensamento cristão com base nos relatos de Gn, ideias que a ciência considerava como óbvias (Rahner & Overhage, El Problema de la Hominización: Sobre el Origen Biológica del Hombre, 1973 (3), pp. 178-179). É nesse contexto que a discussão surge: um contexto em que se equiparou o conceito de criação com a noção da imutabilidade das espécies, dando lugar a um “absurdo dilema” que constava em aceitar a imutabilidade das espécies e a fé na criação ou acreditar no evolucionismo e excluir a noção de criação e da respetiva ação divina (opus cit. p.179).

Mas a evolução das espécies não choca em nada com o conceito de criação, com o conceito de Criador nem, portanto, com a noção de criatura, pelo que esse dilema rapidamente se resolveu, não embora sem deixar um rasto que perdura ainda em determinadas afirmações. Haught lembra que o evolucionismo que exclui a Divina Providência não é uma afirmação científica mas antes uma afirmação de enquadramento filosófico já que se trata de uma convicção127, sem provas, que parte do princípio que é

127 O autor esclarece nas pp. 185-188 que pensar a evolução como “noção intrinsecamente materialista ou ateia não é, em si mesmo, uma afirmação estritamente científica, mas antes uma crença ou convicção sobre a ciência. Tem a sua raiz no sistema de crenças conhecido como «cientismo».” Sendo uma crença, é ela que dá lugar à correlativa ideologia designada comummente como materialismo científico. Qualquer uma delas se limita a ser um conjunto de “pressupostos gratuitos que provêm de preferências sociais ou individuais que nada têm que ver, necessariamente, com a ciência, incluindo a biologia.”

Não podemos, portanto, confundir ciência com a interpretação materialista da ciência. O método científico exclui qualquer tipo de sistema particular de crenças, seja a religião, seja o materialismo, apesar de também a ciência precisar de algumas crenças sobre a realidade, que, contudo, “não podem tornar-se parte da própria ciência”.

o da ciência da biologia” (Haught, 2009, p. 183)

Na verdade, como lembra Paul Overhage, toda a evolução implica algo que já existia como criação pelo que se resume a isso mesmo: uma transformação, uma mutação da criação em virtude de forças imanentes. Contudo, por mais que evoluam, os seres não deixam de estar na dependência de Deus pois é a sua criaturidade que “determina invariavelmente a sua estrutura fundamental” (Rahner & Overhage, 1973 (3), p. 179). A evolução não diminui a dependência das criaturas em relação a Deus. A evolução não diminui a envolvência da Divina Providência na criação. Deus é a causalidade primeira, é o fundamento do ser, a explicação última em que podemos enquadrar qualquer contexto de causalidade segunda, como é a evolução das espécies. Deus é quem dá a existência e quem mantém no tempo. Não se trata de um Deus indiferente, ausente e distante. Pelo contrário, “Deus é a última mas inespecificável «potestade do ser» (power of being) que está por detrás de todos os processos criativos cientificamente especificáveis” (Haught, 2009, p. 184). Citando Paul Tilich, o teólogo americano esclarece que a Divina Providência significa aqui que não existe contexto nenhum em que “o mundo, a vida ou os seres humanos possam ser separados do fundamento divino do ser que nos sustenta”.

Deus, sendo liberdade, dá à criatura a liberdade, dá-lhe “atividade, eficiência e causalidade”. Faz dela a causalidade segunda passando depois a solicitar as “faculdades e potências outorgadas à criatura” (Rahner & Overhage, 1973 (3), p. 180).

O homem não é, portanto, um ser exclusivamente biológico.

Como destaca Udias Vallina, para enquadrar o evolucionismo numa cosmovisão cristã foi necessário perceber de que forma este processo era

A interpretação da ciência é que dá posteriormente lugar ao enquadramento metafísico. “O crente no materialismo pode dizer que Darwin nos facultou bases firmes para a não crença religiosa científica, mas isto não é uma conclusão científica”. Por seu lado, um crente religioso dirá que a evolução revela um “Deus da promessa que está já incarnado na matéria. Mas isto também não é ciência, mas sim metafísica.”

dirigido por Deus, de quem procede toda a criação, nomeadamente no que concerne à origem do homem (2010, p. 286).

A resposta terá de surgir com base na antropologia bíblica e teológica onde vemos o homem como uma realidade unitária pluridimensional, com relações constitutivas que podemos exprimir através das categorias de corpo, alma e espírito, expressões que traduzem o ser humano no seu viver concreto, na sua vitalidade, na sua unidade e também na sua inteireza. Não correspondem a três partes de algo mas sim a três dimensões de uma mesma realidade, realidade que manifestam na íntegra. O homem constitui uma unidade em que referir qualquer um dos seus componentes implica a referência à sua unidade substancial de espírito e matéria. Por esse motivo, quando se diz que o corpo provém de uma causa material afirma-se em relação ao homem, da mesma maneira que quando se diz que a alma é criada por Deus, se afirma, igualmente, o mesmo em relação ao homem, uma vez que corpo e alma não têm existência por si mas existem no e pelo homem (Ruiz de la Peña, 1996, p. 256).