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3.6. O homem é um ser espiritual

3.6.3. A transcendentalidade humana

Ultrapassada a visão dualista129 do homem com o Vaticano II e

recentrada a teologia na conceção bíblica do homem através da sublime expressão homo imago Dei, questionar a origem do homem não pode confundir-se com a questão da origem das partes do homem, uma vez que

“(…) el hombre es unidad sustancial de espíritu y materia. Ambos principios, siendo esencialmente diversos, están intrínseca y mutuamente referidos, y ello significa que lo que se diga de cualquiera de los dos se dice,

eo ipso, de la unidad sustancial por ellos constituida” (Ruiz de la Peña, 1996,

p. 256).130

Como esclarece o autor, ao afirmar a causa intramundana do corpo e a causa divina da alma estamos a afirmar que o homem tem duas causas já que nem corpo nem alma existem por si só. Mas, no contexto da nossa questão, como podemos então perceber a criação enquadrada numa cosmovisão evolutiva?

Ruiz de la Peña destaca a resposta de Rahner (opus cit. P. 256).

O homem foi chamado a viver em comunhão com Deus e a ser seu re- presentante, facto que lhe dá proeminência perante as restantes criaturas, e é nessa relacionalidade que Karl Rahner se baseia para responder à questão, recorrendo-se do conceito de transcendentalidade.

Deus é transcendente e o mundo desenvolve-se numa cadeia de causas que são intramundanas, em que não se vê o atuar de Deus já que o atuar de Deus não é fenomenológico. Contudo, Deus atua no mundo. Ruiz de la Peña

129 É esclarecedora a observação de Rahner quando diz que “Según la doctrina cristiana, cada hombre no es una composición contradictoria o meramente transitoria de espíritu y materia, sino una unidad, la qual lógica y objetivamente precede a la distinción y distinguibilidad de sus elementos, de modo que tales elementos sólo son comprensibles en lo que tienen de proprio si se entienden como constitutivos del hombre uno” (Rahner, Curso Fundamental sobre la Fe: Introdución al Concepto de Cristianismo, 1998, p. 220)

130 Traduzimos por: o homem é unidade substancial de espírito e matéria. Ambos os

princípios, sendo essencialmente diversos, estão intrínseca e mutuamente referidos, e isso significa que o que se afirme de qualquer um deles se afirme, eo ipso, da unidade substancial por eles constituída.

afirma que Deus atua no mundo não como parte dele, nem como um dos elos da cadeia das causas criadas mas como “fundamento real e transcendental do processo evolutivo mundano”, o que significa que Deus atua a partir da raiz da criatura por meio das causas segundas sem, contudo, as substituir, sem as interromper, sem quebrar essa cadeia (1996, p. 257). De outra forma estaria a impossibilitar o diálogo e a intimidade com a sua criatura (Haught, 2009, p. 98) e para Rahner a transcendentalidade do homem é ilimitada, da mesma forma que é ilimitada a sua abertura ao ser através do conhecimento e da liberdade. Essa abertura ao ser implica uma abertura a Deus (Udias Vallina, 2010, p. 118) pois a “autocomunicação transcendental de Deus” é dádiva para a liberdade do homem, é “um existencial de cada homem” (Rahner, 1998, p. 214).

O autor explica, destacando o caráter uno do ser humano, que a sua corporeidade é condição de relacionalidade consigo, com os outros, com o mundo e com Deus. A matéria significa a condição de alteridade, “de possibilidade de intercomunicação imediata com outros seres que existem espiritualmente no espaço e no tempo, na história” (Rahner, 1998, p. 222). E considerando a extensão temporal da relação das duas dimensões do homem, defende que é legítimo afirmar que a matéria evolui desde a sua essência interna para o espírito (opus cit. p. 223).

O devir tem de entender-se como um ser mais, “como consecução ativa de uma maior plenitude de ser”, sendo que esse ‘mais’ não pode ser interpretado como um acrescento ao anterior mas como o “operado pelo anterior mesmo” e como “o próprio crescimento do ser”, o que significa que o devir é “autotrancendência real”, autossuperação que só podemos pensar como resultado da “força da plenitude absoluta do ser” (opus cit. p. 223).

Como explica Ruiz de la Peña, é a causalidade transcendental divina que possibilita a autotranscendência ativa por parte da criatura que por sua vez a faz ultrapassar o seu próprio limite gerando “algo distinto e superior”. A evolução significa então que o mundo progride ontologicamente, facto só possibilitado “porque a causalidade divina atua a partir de dentro sobre a causalidade finita, dinamizando-a, elevando-a e potenciando-a para que

que recria todas as coisas, que provoca a autotranscendência da criatura. Neste contexto, quando falamos mais especificamente da evolução do homem, temos de referir, seguindo mais uma vez o teólogo das Astúrias, que quer Deus quer os prehominídeos são causa do homem. E é Deus que cria o homem inteiro assim como os nossos antepassados o são também do homem inteiro uma vez que nenhuma das cocausas anula a outra da mesma forma que nenhuma basta por si (o autor explica que se refere à economia da criação concretamente querida por Deus, uma vez que Deus poderia ter optado por uma economia em que se bastasse a si mesmo). Não há uma ação da natureza responsável por uma parte e uma ação divina responsável por outra, não há duas ações constitutivas do ser, como expõe citando Sertillanges em nota de rodapé (1996, p. 257).

Há duas causas. Por um lado, a força mais íntima da autotranscendência, distinta do operante finito, a causa divina. Por outro lado o ser finito, no qual a plenitude de ser o capacita para a autotranscendência real e ativa, a causa imanente (Rahner, 1998, p. 224). Estas duas causalidades são, portanto, bastante distintas e essa distinção é facilmente definível: “à causalidade transcendental de Deus chamamos «criação», à causalidade categorial da criatura chamamos «geração» ou «hominização»” (Ruiz de la Peña, 1996, p. 258), no caso de estarmos a falar da origem singular de cada ser humano ou a falar da evolução do ser humano como espécie, respetivamente.

Como ser singular, o homem é pessoa, é algo inteiramente novo,

“(…) es mas que mero numeral de un colectivo específico; cada hombre es persona, algo totalmente nuevo, singular, irrepetible; dotado de un valor absoluto, no relativo; querido como fin en sí, no como medio para la prolongación de la especie. En cuanto persona, el hombre no es producto de la biología, que sólo puede repetir lo existente, ni puede ser re-producido; el hombre-persona se eleva por encima de la cadena biológica de la reproducción; es más que hijo de sus padres y miembro de su especie; es creación inmediata de Dios, que lo llama por su nombre, que lo quiere en su

peculiaridad irreductible y lo elige como interlocutor de un diálogo permanente” (Ruiz de la Peña, 1996, pp. 258-259).131

Como membro de uma espécie,

“(…) es edición repetida de algo ya existente, de lo que sólo se diferencia numéricamente. Como miembro de la especie humana, el hombre procede de un acto biológico generativo cuyo fin es, justamente, la multiplicación de la especie; la lógica de la generación tiende a la re-producción, esto es, a la replicación de estructuras orgánicas dadas” (Ruiz de la Peña, 1996, p. 258).132

Se retirarmos do processo a causa transcendente reduzindo o homem à sua causa imanente, ao seu caráter biológico, reduzimos a antropologia e eliminamos o desnível ontológico que nos separa dos animais. O ser humano não pode ser reduzido à sua materialidade biológica uma vez que ele é um ser espiritual, é pessoa, é um ser livre, é um tu para Deus, motivo pelo qual Deus não exclui a singularidade e a indeterminação da criação. Pelo contrário, como refere Haught, Deus permite que o mundo seja cada vez mais independente para que a sua relação dialógica com o mundo “se torne ainda mais sublime”. Não manipula, a sua influência não é intrusiva. Dá a liberdade, dá autonomia (2009, pp. 204-205).

E, neste contexto, como destaca Udias Vallina (2010, p. 318), a hominização designa o processo pelo qual o mundo se encontra a si mesmo no homem sendo confrontado espiritualmente com a sua origem e com o seu fim, Deus, ou como destaca João Duque, o “horizonte transcendente é (…)

131 Traduzimos por: (…) é mais que um mero numeral de um coletivo específico; cada

homem é pessoa, algo totalmente novo, singular, irrepetível; dotado de um valor absoluto, não relativo; querido como fim em si, não como meio para o prolongamento da espécie. Enquanto pessoa, o homem não é um produto da biologia, que apenas pode repetir o existente, nem pode ser re-produzido; o homem-pessoa eleva-se por cima da cadeia biológica da reprodução(…) é mais do que filho dos seus pais e membro da sua espécie; é criação imediata de Deus, que o chama pelo nome, que o ama na sua peculiaridade irredutível e o escolhe como interlocutor de um diálogo permanente.

132 Traduzimos por: é edição repetida de algo já existente, do que se diferencia apenas

de forma numérica. Como membro da espécie humana, o homem procede de um ato biológico generativo cujo fim é, justamente, a multiplicação da espécie; a lógica da geração tende à re-produção, ou seja, à replicação de estruturas orgânicas dadas.

(2003, p. 222).

O homem provém do barro, é fruto da evolução, mas esse barro recebeu o sopro divino, uma vida que tem a sua origem em Deus. A GS no capítulo 19 diz que ele é imagem de Deus, motivo pelo qual a “razão mais sublime da [sua] dignidade (…) consiste na sua vocação à união com Deus” (Paulo VI, 2017)

Esta comunhão com Deus, comunhão livre,133 é plenamente realizada na

pessoa de Jesus Cristo, a verdadeira imagem de Deus, e lendo as coisas dessa forma falta então explicitar que o homem é, na realidade, imagem da verdadeira imagem de Deus que é o Verbo Encarnado pois “(…) n’Ele, a natureza humana foi assumida, e não destruída, por isso mesmo também em nós foi ela elevada a sublime dignidade. Porque pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem”, pelo que “o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente” (GS 22).