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Pressupostos de leitura – A antropologia hebraica

3.4. A criação do homem no Génesis

3.4.1. Pressupostos de leitura – A antropologia hebraica

O Gn pretende afirmar que o homem é criatura, obra do agir de Deus. O homem não encontra em si mesmo a razão de ser da sua existência pois esta está em Deus, o Criador, que a entrega como dom.

A figura que se constrói do homem é de uma criatura frágil, dependente, finita e cuja composição clama por um relacionamento com o seu Criador. Nota-se dentro de tal conceção, que o homem é um ser frágil que não tem controlo do seu destino, nem da sua origem e subsistência. É imerecedor do cuidado de Deus e a sua vida é tão breve como a de toda a criação.

Não existe ponto maior de distância do que o que há entre as palavras criador-criatura, e essa é mesmo a primeira coisa que pode ser dita sobre o ser humano: ele é criatura. E a antropologia presente nos textos bíblicos é precisamente a da criatura em busca do Criador, numa resposta ao amor de Deus que se revela.

É essa a grande afirmação presente nos relatos do Gn.

E para essa afirmação concorre a antropologia83 hebraica que está

subjacente aos textos: o homem como uma realidade unitária pluridimensional com relações constitutivas que podemos exprimir através das categorias de corpo, alma e espírito, expressões que traduzem o ser humano no seu viver concreto, na sua vitalidade, na sua unidade e também na sua inteireza.

Não correspondem a três partes de algo mas sim a três dimensões de uma mesma realidade, realidade que manifestam na íntegra, na sua inteireza, facto que não acontece nas línguas modernas da cultura ocidental. O contexto em que ocorre o vocábulo é que condiciona o seu significado, pois não se trata

83 A antropologia bíblica é pré-científica. Apesar de estar bem patente nos diferentes

escritos uma visão coerente do homem e do seu relacionamento com os outros, com o mundo e com Deus, na verdade não encontramos na Bíblia um tratado explícito e sistemático de antropologia. Podemos mesmo dizer que a conceção de homem que encontramos é semelhante aos escritos gregos anteriores ao período antropológico, em que a filosofia viria a debruçar-se sobre essa questão. Está portanto, distante o pensamento grego clássico, que haveria de trazer ao mundo ocidental não apenas uma outra forma de perceber o homem como também uma preocupação de organização metódica das conceções ou dos pensamentos.

Da mesma forma, estava ainda muito longe o advento da ciência e das suas formas de olhar o mundo como uma investigação metódica das leis dos fenómenos. Não podemos, pois, cair em cientismos uma vez que a Bíblia tem um objetivo necessária e substancialmente diferente. De facto a antropologia bíblica é religiosa. Não se preocupa em analisar com rigor científico ou mesmo filosófico o “antropos” em qualquer um dos seus elementos constitutivos ou dimensões. Interessa-lhe apenas a relação do homem com Deus e a relação do homem com os seus semelhantes e com o mundo, duas questões que, como vemos mais claramente no Novo Testamento, se complementam, ou dito de outra forma, se correspondem.

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rudimentar e com um conjunto de raízes vocabulares muito reduzido. E este facto condiciona as definições categoriais, que nem sempre foram entendidas da melhor forma.

a) O corpo, não nos detendo na distinção Paulina entre carnal e espiritual, traduz o termo basar, e indica habitualmente a condição débil e caduca do homem e é traduzido pelo grego por que traduz a ideia de carne, ou neste caso a finitude estrutural do homem. Ruiz de la Peña define como “a manifestação exterior da vitalidade orgânica” (1996, p. 20). O homem-carne é o homem biológico dos órgãos e dos sentidos que está em contacto com a terra. Constitui-se da mesma matéria que todos os seres vivos, tem o mesmo substrato biológico, num enraizamento ontológico que os avizinha, diferindo em qualidade (opus cit. p. 21). Por isso pode também significar a “fragilidade e a caducidade inerentes à condição humana” (opus cit. p. 21) já que o homem é um ser-carência, sujeito ao pecado e à morte.

No entanto, o corpo é o elemento que permite a relacionalidade do homem com Deus, com os outros e com o mundo, elemento que nos remete para uma outra tradução grega da palavra hebraica basar: . Se os hebreus tinham uma ideia ampla de “basar”, os gregos, ao traduzi-la, vão fragmentá-la consoante os contextos e necessidades, como foi explicitado anteriormente. Para os hebreus, designa o homem todo inteiro enquanto é pessoa-em-relação-com-outros, o que não acontece no grego em que é princípio de individuação (opus cit. p. 21).

b) Para traduzir ‘alma’ utiliza-se uma palavra fundamental da “antropologia” veterotestamentária: nefesh. Como no francês ‘âme’ e no inglês ‘soul’, elas lançam mão da tradução mais frequente de nefesh por  na Bíblia grega e por anima na latina. Mas a palavra nefesh deve ser vista em conjunto com a figura total do ser humano e especialmente com a sua respiração, pelo que o ser humano não tem, mas é nefesh. Quando designa o órgão das necessidades vitais sem cuja satisfação o ser humano não pode

continuar a viver, para o pensamento sintético é perfeitamente compreensível que, em grande parte, nefesh signifique a vida mesma, por metonímia de garganta, respiração, fome, boca, alento (Ruiz de la Peña, 1996, p. 22)

A nefesh é pois o centro da pessoa na sua individualidade, o eu subjetivo aberto à relação com o que o rodeia e transcende mas que morre com a morte do homem, diferente da  que nos mostra Platão em Fédon, como distinta e contraposta ao corpo, centro autónomo de existência e não condicionada pela morte.

A nefesh é continuamente condicionada por um “coeficiente de corporeidade” pelo que é habitual a utilização indistinta, como sinónimos, de

basar e de nefesh para fazer alusão ao homem na sua completude já que, como

esclarece o teólogo espanhol citando Pedersen, cada um dos termos é “expressão englobante do humano”, o homem é basar e nefesh, substituindo a expressão errónea que afirma que o homem tem basar e nefesh (Ruiz de la Peña, 1996, pp. 22-23).

c) A noção de espírito remete mais especificamente para a dependência de Deus. O termo ruah, significa originalmente ‘brisa, vento’, passando depois a significar ‘respiração’ e por isso ‘vitalidade’, mas normalmente designa o ‘espírito de Deus’, ou a comunicação desse espírito ao homem (Ruiz de la Peña, 1996, p. 24). Significa o sopro divino no homem, sopro que lhe dá a vida e constitui a imagem de Deus na sua criatura, traduzido por no grego e indica a pessoa-corpo-alma enquanto se abre totalmente para Deus, para valores absolutos e se entende a partir deles. Como espírito, o ser humano extrapola os limites de sua existência como carne-corpo-alma, para se comunicar com a esfera divina. Por isso, é um sinal da transcendência e da destinação divina do ser humano.

Partindo do seu significado original de ar, vento, e a partir daí de alento vital, ruah é a força que vem de Deus e que mantém o homem vivo, numa relação de profunda dependência. Por isso a contraposição entre basar e ruah não expressa a oposição dualista material/imaterial mas sim uma dialética

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Peña (opus cit. p.25) baseando-se em Schilling.

Ruiz de la Peña faz uma distinção clara: enquanto nefesh é o alento imanente ao ser vivo, ruah é uma força criadora, um dom divino, “um conceito teoantropológico”, citando Wolff, que permite dizer a dimensão de abertura a Deus (opus cit. p. 24).

Estas três dimensões do ser humano permitem-nos perceber que o homem que encontramos em Gn se reveste de uma “unidade psicossomática, dinâmica, multidimensional”, constituindo-se numa tripla relação decorrente das suas três dimensões: relação com o mundo e com os restantes seres vivos, relação com o seu semelhante, carne da mesma carne, e com Deus, de quem recebeu o seu ruah na sua estrutura existencial (Ruiz de la Peña, 1996, p. 25). O homem é basar enquanto ser no mundo, é nefesh enquanto ser portador de um dinamismo vital que lhe é inerente (idem) e, tendo recebido o ruah divino no seu vaso de barro, é abertura ao transcendente.

Trata-se de um homem que tem o seu fundamento primeiro e último em Deus pelo que é um ser-para Deus, assim constituído desde a sua criaturidade (idem). E é desta criaturidade que nos falam os relatos P e J que iremos ler.

3.4.2. A criação da humanidade no relato