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A crise da profissão e perspectivas de resgate

CAPÍTULO 2 A EDUCAÇÃO E A ESCOLA NA FORMAÇÃO INICIAL DOS PROFESSORES

2.5 A crise da profissão e perspectivas de resgate

Assim como Nóvoa (1995, p.9), acreditamos que “não há ensino de qualidade, nem reforma educativa, nem inovação pedagógica, sem uma adequada formação de professores”. Por esta razão, ao defender uma escola voltada para a cidadania, entendemos que uma peça fundamental para este processo é a figura do professor.

É importante defendermos a necessidade de profissionalização do professor, pois

para responder aos desafios sem precedentes da transformação necessária dos sistemas educacionais, o papel dos professores, deve, necessariamente, evoluir (...) do status de executante para o de profissional (PERRENOUD, 2001, p.11).

Numa perspectiva histórica, Nóvoa (1995) resgata informações, dados e momentos importantes da profissão de professor em Portugal, que apresentam pontos semelhantes com o Brasil, até por afinidades históricas.

Um primeiro momento, ainda no século XVI, foi a ruptura do Estado com a Igreja, responsável pelo ensino, tanto em Portugal como em suas colônias. Tal mudança significou “a centralização do ensino e a funcionarização do professorado” (1995, p.16), pois essa era uma aposta de progresso e desenvolvimento. Por outro lado, o governo português sabia que tal mudança legitimaria, do ponto de vista ideológico, o poder estatal de reprodução social, uma vez que os professores eram as vozes dos dispositivos de escolarização.

A partir da centralização do ensino por parte do governo e sob rígido controle, de forma lenta, mas sistemática, o professor foi perdendo sua possibilidade de planejar, interferir, opinar e criar, de forma concreta, os rumos da política educacional, independente do regime de governo estabelecido, até como consequência de sua progressiva desvalorização, que atinge, hoje, dados assustadores.

Nóvoa (2002) retrata que, assim como no Brasil, Portugal, desde a década de 80, vive uma grave crise da profissão docente. Ela perdeu seu prestígio no cenário social e mais difícil, ainda, foi viver no seu interior, com todos os problemas que a escola enfrentou e enfrenta.

Assistiu-se à ausência de um projeto coletivo, capaz de mobilizar e agregar a classe docente, o que inviabilizou a afirmação social dos professores, que, para se defender, estavam mais próximos da figura de um funcionário do que de profissionais autônomos.

Por esta razão, Nóvoa, citando Mark Ginsburg (1995), defende que a profissão docente encontra-se sob a influência antagônica de dois momentos: a profissionalização e a proletarização.

A profissionalização é um processo através do qual os trabalhadores melhoram o seu estatuto, elevam os seus rendimentos e aumentam o seu poder/autonomia. Ao invés, a proletarização provoca uma degradação do estatuto, dos rendimentos e do poder-autonomia; é útil sublinhar quatro elementos deste último processo: a separação entre a concepção e a execução, a estandardização das tarefas, a redução dos custos necessários à aquisição da força de trabalho e a intensificação das exigências em relação à actividade laboral. (apud NÓVOA, 1995, p.23)

Como consequência desse antagonismo, não só os professores portugueses, mas também os brasileiros se encontram em uma situação difícil e desconfortável, uma vez que há uma separação entre a concepção e a execução. A elaboração dos currículos está distante dos professores, pois a eles cabe a concretização pedagógica. Este é um fenômeno social, como aponta Nóvoa (1995), que legitima e reforça a interferência de teóricos e especialistas e traz, como resultado, a degradação e a perda de autonomia profissional dos professores, com inevitável perda salarial.

Outro aspecto apontado por Nóvoa (1995) diz respeito ao problema decorrente da abertura das escolas para um número maior de alunos vindos de classes sociais menos privilegiadas. Ao democratizar o acesso, “a explosão escolar trouxe para o ensino uma massa de indivíduos sem as necessárias habilitações académicas e pedagógicas, criando desequilíbrios estruturais

extremamente graves” (1995, p. 21). Ou seja, o acesso não foi acompanhado por um planejamento, capaz de garantir a qualidade na aprendizagem oferecida aos alunos e na formação dos docentes recém-contratados.

Ao constatar esse problema, o governo, em suas diferentes esferas de poder, buscou alternativas para suprir tais deficiências, através de um controle mais intenso e da preocupação com os programas de formação. A grande contradição neste caso, apontada por Nóvoa (1995), é que os programas de formação implantados, em sua grande maioria, sustentaram-se não mais numa visão burocrático-centralista, mas de regulação-avaliação, que levou, cada vez mais, ao controle sobre a profissão. Sua crítica refere-se, principalmente, a que tal concepção de formação não pretendia “o desenvolvimento profissional dos professores e organizacional das escolas” (1995, p. 22), mas sim atender os objetivos de controle do sistema.

Como resultado,

prolonga-se uma tutela estatal sobre o professorado, entendido como um corpo profissional sem capacidade de gerar autonomamente, ad itra, os saberes e os princípios deontológicos de referência: uns e outros têm de lhe ser impostos do exterior, o que acentua a subordinação da profissão docente (NÓVOA,1995, p. 22).

Por conseguinte, uma questão apontada por Nóvoa é básica: o futuro da profissão do professor será apoiado na consolidação de “novas regulações e dispositivos de tutela da profissão docente (...) ou (...) no desenvolvimento científico da profissão docente no quadro de uma autonomia contextualizada?” (1995, p.23)

Assim como Nóvoa, acreditamos que a formação dos professores está no centro desse debate, pois ela está diretamente relacionada com uma visão da profissão docente. A resposta desta questão deve ser feita pelos próprios professores, cientes de seu papel social e que deverão organizar-se, de tal forma, para discutir e interferir, de maneira democrática, nas questões pontuais do seu exercício profissional. Caso contrário, serão meros coadjuvantes de um processo

em que devem ser os principais protagonistas. Entendemos, como o autor, que só pela formação, inicial e continuada, é possível configurar uma nova profissionalidade docente, ao estimular uma cultura profissional entre os professores e uma cultura organizacional dentro das escolas, de forma crítica e responsável.

O que ele aponta é que grande parte dos cursos de formação ignora o desenvolvimento pessoal, ao confundir o formar com formar-se, além de não estabelecer uma articulação entre os programas de formação e os projetos das escolas. A ausência desses dois olhares inviabiliza “um desenvolvimento profissional dos professores, na dupla perspectiva do professor individual e do coletivo docente” (NÓVOA, 1995, p. 24).

Para Nóvoa, outra questão importante é a própria cultura de profissionalização que deve existir no corpo docente e, ao mesmo tempo, de uma cultura organizacional dentro das escolas, como uma proposta concreta de desenvolvimento pessoal.

O que está em jogo é a própria autonomia profissional, pois “a formação deve estimular uma perspectiva crítica-reflexiva (...) e que facilite as dinâmicas de autoformação participada” (NÓVOA, 1995, p. 25). Mais do que uma profissionalização, a formação deve ser vista também como um “investimento pessoal, um trabalho livre e criativo sobre os percursos e os projectos próprios” (p. 25) que além de contribuir para a construção da identidade pessoal, é também a possibilidade de construção de uma identidade profissional.

Um aspecto essencial é que para Nóvoa “o professor é a pessoa" (1995, p.25). É ele que, ativamente, deve buscar o espaço de interação e diálogo entre o pessoal e o profissional para sua formação. Os professores precisam “ser os protagonistas de sua formação pessoal e profissional, dando-lhes sentido no quadro de suas histórias de vida” (p.26), pois a “formação não se constrói por acumulação de cursos, de conhecimentos, de técnicas” (p.25), mas sim, quando o professor se reconhece como alguém capaz de “um trabalho de reflexividade crítica sobre as práticas e de (re) construção permanente de uma identidade

pessoal” (p.26). O essencial, então, é investir a pessoa e dar um estatuto ao saber da experiência.

Ao apontar que o processo de formação é um investimento pessoal, Nóvoa (1995) não nega a importância do diálogo entre os professores, como uma possibilidade concreta de consolidar saberes emergentes da prática profissional. Mas destaca, principalmente, que estas redes coletivas de trabalho constituem um momento único e primordial para a “socialização profissional e de afirmação de valores próprios da profissão docente capazes de garantir um exercício autônomo da profissão docente” (NÓVOA, 1995, p. 25).

Ainda no aspecto da formação docente, Nóvoa (2002) defende três famílias de competências fundamentais de serem incluídas nos programas de formação: saber relacionar e saber relacionar-se, saber organizar e saber organizar-se e saber analisar e saber analisar-se.

O primeiro ponto de saber relacionar e saber relacionar-se está direcionado à concepção de escola como um espaço aberto, público, defendido pelo autor, que pressupõe uma identidade profissional dos professores que valorize o “seu papel como animadores de redes de aprendizagem, como mediadores culturais e como organizadores de situações educativas” (NÓVOA, 2002, p. 23).

Esse é um desafio fundamental, pois Nóvoa (2002) reconhece que “há uma visão desvalorizada do trabalho docente” (p. 23), o que exige, por parte dos professores, uma maior conscientização de seu papel social e, principalmente que a valorização deve partir do próprio professor como agente de sua própria história de vida, pessoal e profissional, uma vez que a abertura das escolas gera uma maior exposição e coloca os professores numa posição mais vulnerável.

O autor resgata que a desvalorização docente está diretamente relacionada com a crença de que o ensino é uma actividade relativamente “simples”, que se exerce “naturalmente” (NÓVOA, 2002, p. 23).

1. O trabalho do professor depende do interesse e da colaboração do aluno, pois, para ou autor não é possível ensinar para quem não quer aprender.

2. A docência é uma atividade complexa, pois ela se desenvolve não apenas numa relação pedagógica, mas também como uma relação social.

3. O trabalho do professor não fica restrito ao aluno, mas visa atender também as expectativas dos pais, da comunidade e da sociedade em geral.

No aspecto de saber organizar e saber organizar-se, o que Nóvoa (2002) defende são os princípios de colectivo e de colegialidade na cultura profissional dos professores, pois não é possível mais imaginar, dentro do cenário escolar, um trabalho solitário e individualizado, fechados em suas próprias crenças. Ao contrário, o que os programas de formação devem resgatar é que “se caminhe no sentido de promover a organização de espaços de aprendizagem inter-pares, de trocas e de partilhas” (p. 26).

O terceiro e último aspecto apontado por Nóvoa é o de saber analisar e de saber analisar-se, diretamente relacionados ao conhecimento profissional do professor.

Hoje, essencialmente, o que está em discussão não é mais o volume de conhecimento acumulado/armazenado por cada professor, mas sim a possibilidade concreta de mobilização desses conhecimentos numa ação educativa.

Nóvoa (2002) destaca que os programas de formação precisam “falar de uma acção docente que exige um trabalho de deliberação, um espaço de discussão onde as práticas e as opiniões singulares adquiram visibilidade e sejam submetidas à opinião dos outros” (p.27).

Sabemos que a realidade das escolas no Brasil, e em particular, as escolas estaduais do estado de São Paulo, estão distantes das idéias apresentadas por

Freire, Veiga, Nóvoa e Perrenoud, pois seus históricos e suas realidades permanecem como estruturas fechadas, com uma tutela rígida e um controle do poder público, com uma profissão docente desvalorizada e a ausência de diálogo entre as pessoas envolvidas no cenário escolar.

Este pode ser um fator que pode explicar os péssimos resultados das diferentes avaliações realizadas, tanto pelo governo estadual, como pelo governo federal, que trazem reflexos claros na formação escolar dos futuros professores. Repensar este espaço e suas práticas torna-se não apenas importante, mas fundamental para a conquista da tão sonhada autonomia de cidadania.

No entanto, retomamos Nóvoa (2002) que reconhece a dificuldade das escolas e de suas realidades, pois afirma:

Não alimentar ilusões, nem sonhos de redenção social: a escola vale o que vale a sociedade. Não se deixar arrastar pelo fatalismo, sobretudo quando se disfarça com roupagens científicas: a escola é um lugar insubstituível na formação das crianças e dos jovens. Entre esses dois extremos abre-se um campo imenso de possibilidades. A idéia de um espaço público de educação levanta novos desafios, sociais e profissionais, que podem ajudar a reconstruir laços que se perderam no processo histórico de edificação dos grandes sistemas escolares (NÓVOA, 2002, p. 29).

Esta síntese de Nóvoa exprime a necessidade de professores formados pelo Ensino Superior, que sejam capazes de assumir seu próprio papel profissional, cientes de todos os novos desafios que a profissão impõe, que vão das diferentes linguagens presentes no século XXI, passam pelo histórico de um mundo globalizado e excludente, que garante acesso às escolas, mas nem sempre com qualidade e sucesso na aprendizagem e do grande espaço aberto de transformação. A escola precisa de profissionais competentes, críticos, comprometidos com a sua própria formação inicial e permanente, e neste caso, o domínio da leitura é um caminho na busca dessa formação e autonomia profissional.