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A culpabilidade na ótica de Hassemer

2. A CULPABILIDADE NA SUA ACEPÇÃO DOGMÁTICA COMO PARTE

2.8. Outras propostas acerca da culpabilidade

2.8.5. A culpabilidade na ótica de Hassemer

Ao tecer sua análise acerca da culpabilidade, Hassemer diferencia, em um primeiro momento, os planos da imputação. Enquanto a imputação objetiva se dá através da tipicidade e ilicitude, é no plano da culpabilidade que se irá reunir um saber sistemático sobre o autor. É nesse momento que se procede a verificação de se uma conduta pode ser imputada a um indivíduo, a ponto de considera-lo responsável por essa conduta.349

A construção da imputação deveria se dar, na visão do autor, no plano da ação e da ilicitude, de maneira excludente, ao passo que os planos da tipicidade e culpabilidade pressuporiam elementos positivos.350 Esses elementos são identificados como dolo ou culpa, a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade da conduta conforme o direito.351 Não que o autor desconsidere os elementos do injusto no plano da tipicidade. O que afirma é que, nesse momento, são colhidos não com interesse no autor, mas com interesse no ato, qualificando-o.352

Embora professe esse caráter positivo da culpabilidade, conclui que tanto a lei como a prática forense os formulam de forma negativa. Não se verifica a capacidade de culpabilidade e o conhecimento da proibição, mas sim a ausência de circunstâncias que os excluam, de modo que a culpabilidade, nesse quadro, é tida como presumida, subtraindo a sua fundamentação no processo.353

Seguindo o seu excurso, Hassemer identifica algumas concordâncias em torno da culpabilidade. A primeira delas é o reconhecimento do que chama de uma quarta etapa da estrutura do delito, no bojo da qual se traça uma imputação

348 Idem, ibidem, p. 526

349 HASSEMER, Winfred. Introdução aos fundamentos do direito penal. Traduzido por Pablo

Rodrigo da Silva Aflen. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2005, p. 287

350 Idem, ibidem, p. 288 351 Idem, ibidem, p. 290

352 HASSEMER, Winfred. Introdução aos fundamentos do direito penal. Traduzido por Pablo

Rodrigo da Silva Aflen. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2005, p. 287

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subjetiva do ato a um indivíduo. É aqui que se responde a indagação sobre o que deve ocorrer com aquele que produziu o ato ilícito, “se ele realmente era o ‘seu’ ato, se pode lhe ser ‘imputado subjetivamente’”.354

A segunda concordância é a garantia da exclusão da responsabilidade pelo resultado, que se dá através da inclusão de um critério de imputação subjetiva que pressuponha a responsabilidade do sujeito pelo seu ato. Isso se deve dar inclusive sob critérios deterministas, na medida em que se deve traçar limites entre a culpa e o caso fortuito.355

A terceira é a de que existem graus de responsabilidade, variáveis de acordo com o grau de participação interna do agente no acontecimento exterior, que devem ser distinguidos. Esses graus de imputação subjetiva são hauridos do cotidiano, distinguidos pelas próprias relações sociais E também o direito penal deve fazer essa distinção. Um resultado que deriva de uma ação impudente não pode ser considerado do mesmo modo do que aquele derivado de uma atitude negligente. De igual modo, o resultado causado por intencionalidade (dolo) deve ser analisado de forma distinta daquele provocado por uma ação culposa.356

Disso resulta que, uma vez identificadas as variadas formas de participação interna, estas devem ser valoradas. Essa valoração parte da culpa inconsciente e chega até a intenção. Embora tanto o autor de um crime culposo quanto o de um delito doloso infringem a norma e podem produzir um mesmo resultado, este último, aos olhos dos demais, é muito mais ameaçador, porque além de provocar a lesão ele efetivamente quer a violação do mandato que subjaz à norma, ameaçando a ordem jurídica.357

A última das concordâncias identificadas por Hassemer de refere à determinação da pena em conformidade com a valoração dos graus de participação interna no agente, que se fundamenta nos princípios da igualdade (deve-se tratar desigualmente os desiguais) e da proporcionalidade. Este último exige uma concordância substancial entre o delito e a reação jurídico-penal, sendo que o grau de participação interna é apenas um dos critérios que se deve levar em conta. Não há, por parte do autor, a definição específica de critérios que devem orientar essa

354 Idem, ibidem, p. 293

355 Idem, ibidem, p. 293-4 356 Idem, ibidem, p. 294-8

357 HASSEMER, Winfred. Introdução aos fundamentos do direito penal. Traduzido por Pablo

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verificação, limitando-se a elencar algumas hipóteses, como a relevância do bem jurídico e os diferentes modos de cometimento do delito.358

Ao tratar das controvérsias que pairam na doutrina acerca da culpabilidade, Hassemer analisa a localização dos graus de participação interna na estrutura do delito. Sob o viés finalista, dada a ontologia que sustenta a teoria de Welzel e sua ação final, o lugar de verificação da participação interna não pertence à culpabilidade, mas à ação. Conclui, porém, que a exclusão desses elementos do âmbito da culpabilidade implica uma grave perda, resultando em um conteúdo vazio.359

Ao tratar do livre-arbítrio, Hassemer menciona o eterno embate entre determinismo e indeterminismo para afirmar que a filosofia, a psicologia e a fisiologia não chegaram a um acordo sobre como se encontra o poder de agir de outro modo no indivíduo. A polêmica, no entanto, é impossível de ser decidida porque, na sua visão, ela não existe. Por suas próprias palavras:

Os oponentes não discutem entre si, mas dialogam uns com os outros sem se entenderem e por isso encontram-se nessa posição. Os argumentos a favor e contra o livre arbítrio não são tratados nessa discussão, mas servem de base a ela. Logo que iniciou a discussão, a questão do livre arbítrio já estava decidida. Esta questão se decide de acordo com o âmbito no qual se procura a resposta. Quem argumenta empiricamente, isto é, argumenta, por exemplo sobre os resultados da liberdade ou os impulsos reprimidos, jamais poderá fundamentar a liberdade; ele poderá apenas discuti-la ou – quando os seus argumentos ainda não são suficientes – limitá- la. Isso se deve ao fato de que ele observa o fenômeno da liberdade através de um microscópio, com o qual ele pode reconhecer somente o contrário: o mundo das sucessões causais.360

Nem por isso se deve recorrer a um critério de normativização da culpabilidade, a ponto de se adotar um critério geral, calcado na já tão combatida noção de homem médio. Esse critério geral deve se fundamentar em outros pilares que não a possibilidade de agir de outro modo, mas nos fins da pena:

A moderna dogmática da culpabilidade busca critérios no poder geral em um campo mais próximo: nos fins da pena. Os fins da pena,

358 Idem, ibidem, p. 301-2 359 Idem, ibidem, p. 303-4

360 HASSEMER, Winfred. Introdução aos fundamentos do direito penal. Traduzido por Pablo

117 como as teorias que indicam quais as tarefas que a pena estatal possui, são evidentemente um meio adequado para a concretização do juízo de culpabilidade. Pois dão sentido à pena, e podem também tornar razoável o juízo de culpabilidade; além disso, uma concretização da culpabilidade a partir dos fins da pena promete uma harmonização do sistema jurídico-penal, uma vinculação material de dois âmbitos fundamentais que hoje estão sob o forte bombardeio dos críticos do Direito Penal.361

Mas as teorias da pena que irão servir de orientação para esse critério não se consubstanciam nas chamadas teorias absolutas, que buscam a finalidade da pena na retribuição e na expiação. O conteúdo material da culpabilidade deve ser alcançado através das teorias relativas: a de prevenção especial, que busca a ressocialização do condenado, e a de prevenção geral, que espera a intimidação dos potenciais criminosos diante da ameaça da execução da pena, além da estabilização da consciência social da norma.362

Desse modo, somente se pode reprovar o autor, expressando um juízo de culpabilidade, quando seja possível se alcançar um fim preventivo da pena, seja através da ressocialização, seja através da intimidação de potenciais autores, seja para se alcançar a estabilização da consciência normativa da população.363

No que toca à relação de proporcionalidade da consequência jurídico-penal, reconhece o autor que ela continua sendo um problema em aberto, à medida que não existe uma teoria da pena que tenha o condão de estabelecer uma relação mensurável entre a gravidade do fato e a intensidade da sanção. Conclui, assim, com um ilustrativo lamento:

Enquanto não se tiver um conhecimento mais exato sobre a gravidade do fato (externa e internamente) e sobre os efeitos das consequências jurídico-penais, nada mais restará do que trabalhar e aperfeiçoar os critérios diferenciados da proporcionalidade, que o direito positivo oferece em abundância e que nós já observamos.364

361 Idem, ibidem, p. 311

362 Idem, ibidem, p. 311 363 Idem, ibidem, p. 312

364 HASSEMER, Winfred. Introdução aos fundamentos do direito penal. Traduzido por Pablo

118 3. A CULPABILIDADE COMO FATOR DE DETERMINAÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE

Uma vez que se tenha constatado que o agente praticou um fato típico e ilícito, além de ter agido com culpabilidade, deve-se determinar a pena a ser imposta, individualizando-a.

A individualização da pena, conforme aduzido alhures, é um processo, através do qual o observador (juiz) percebe o indivíduo (processado) como indivíduo e, como tal, único, que merece, portanto, ter como objeto de análise a sua situação em concreto, com todas as suas nuances.

Esse processo de individualização se desenvolve através de um critério. Com a reforma penal de 1984, promovida pela Lei n.º 7209, adotou-se no Brasil o chamado critério trifásico, expresso no artigo 68 do Código Penal. Segundo a dicção do dispositivo, a pena-base será fixada atendendo-se ao critério do artigo 59 do mesmo código, após o que serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes e, por último, as causas de diminuição e de aumento.

Já o artigo 59 conta com a seguinte redação:

Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à

conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;

II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.

Ao contrário do Código Penal de 1969, que foi revogado ainda no período de vacatio legis, não há no Código atual uma definição de pena-base. Constava do artigo 63 daquele dispositivo:

Art. 63. A pena que tenha de ser aumentada ou diminuída, de

quantidade fixa ou dentro de determinados limites, é a que o juiz aplicaria, se não existisse a circunstância ou causa que importe o aumento ou a diminuição.

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A despeito disso, considera-se pena-base de acordo com o critério atual aquela que se extrai do conteúdo do artigo 59 do Código Penal, mesmo porque é a pena que servirá de referência primeira, sobre a qual incidirão as agravantes, atenuantes, causas de aumento e de diminuição.

Não há, nem tampouco poderia, uma fórmula matemática para que o juiz, nessa fase, determine a pena a ser aplicada a cada caso concreto. É inegável a presença de uma discricionariedade, que deve, obviamente, ser fundamentada. Trata-se, pois, de uma discricionariedade juridicamente vinculada, conforme já afirmado. E essa vinculação se dá na medida em que se estabelece alguns limites.

A tese a ser sustentada é a de que tais limites são aqueles impostos pela culpabilidade, a despeito de uma primeira impressão da leitura do dispositivo conduzir no sentido de que a culpabilidade e as demais circunstâncias descritas no artigo 59 do Código Penal estão em uma posição de equiparação.

Para tanto, há de se definir qual é o conteúdo material da culpabilidade quando se refere à medição da pena aplicada, para, depois disso, estabelecer como ela se relaciona com as demais circunstâncias. Antes, porém, convém mencionar algumas teorias que abordam o papel da culpababilidade quando da definição da pena privativa de liberdade.