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A culpabilidade de Figueiredo Dias

2. A CULPABILIDADE NA SUA ACEPÇÃO DOGMÁTICA COMO PARTE

2.8. Outras propostas acerca da culpabilidade

2.8.4. A culpabilidade de Figueiredo Dias

Já de início, e de acordo com a evolução do conceito de culpabilidade, Figueiredo Dias reconhece que o que denomina de “princípio da culpa”339 constituiu

335 Idem, inidem, p. 673-4 336 Idem, ibidem, p. 677 337 Idem, ibidem, p. 680-1

338 ZAFFARONI, Eugenio Raul; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho penal: parte

general. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002, p. 682

339 Assim como toda a doutrina portuguesa, o autor denomina “culpa” o que entre nós restou

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uma máxima fundamental de todo o direito penal, que surge como uma censura jurídica dirigida ao autor em razão da prática de um fato ilícito. Analisando criticamente a teoria da culpabilidade elaborada por Welzel, define que concebê-la unicamente como juízo de valoração, em uma acepção reducionista de um juízo de desvalor e limitada unicamente à valoração do objeto pura, não é compatível com a função política que o princípio da culpabilidade exerce no sistema jurídico340.

Em sendo essa função política primária à limitação do poder de punir estatal, não se pode abrir mão de um conteúdo material à culpabilidade, o que ele denomina de “culpa ética”, que está intimamente ligada à dignidade da pessoa humana e os respectivos valores relacionados – liberdade, igualdade e solidariedade -, dos quais o primeiro assume maior relevância. A liberdade é entendida “não apenas como característica do actuar no âmbito político, mas como autodeterminação da pessoa na sociedade, e, assim, como expressão da autonomia e da inviolabilidade na regência da sua conduta pessoal”341.

Refratário à tese de que o conteúdo material da culpabilidade consiste no poder de agir de outro modo, argumenta que essa ideia não resiste a duas dificuldades inultrapassáveis: a sua indemonstrabilidade e a sua insustentabilidade político-criminal.342 Quanto à primeira, é certo que a pergunta acerca da possibilidade de agir de outra maneira tendo como espeque a liberdade de vontade não restou respondida pelo indeterminismo absoluto, na medida em que confundia o indivíduo concreto com a idealização de um ser abstrato inverificável sob quaisquer critérios. Além disso, tanto a sociologia quanto a psicologia não são capazes de afirmar a existência do livre-arbítrio, de modo a responder se e quando o homem é realmente livre.343

No que se refere à insustentabilidade político-criminal, a concepção esbarra, em um primeiro momento, na questão probatória: sempre que o autor do fato afirmasse que, no caso concreto, não poderia ter agido de outro modo, haveria que se demonstrar tal possibilidade, em obediência ao princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo, de modo que não haveria solução diferente da

340 DIAS, Jorge Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais: a doutrina

geral do crime. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 247.

341 Idem, ibidem, p. 514 342 Idem, ibidem, p. 516

343 DIAS, Jorge Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais: a doutrina

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absolvição. Demais disso, qualquer autor de um fato ilícito que vivesse em ambiente criminógeno ou com “tendência para o crime”, necessariamente, veria sua pena atenuada em razão do diminuído poder de atuar de outra forma.344

Às tentativas de abstração e generalização do poder de agir de outra maneira, Figueiredo Dias se contrapõe afirmando que esse padrão objetivado de homem médio se trata de uma ficção estatal, calcada em uma suposição de liberdade, que não se coaduna com a função de limite da pena que se inculca à culpabilidade.345

A concepção básica do conteúdo material da culpabilidade defendida pelo autor consiste em uma liberdade pessoal, identificada como uma “característica de um “ser-total-que-age”. Para ele:

O homem tem que se decidir a si e sobre si, sem que possa em qualquer momento furtar-se a tal decisão: neste sentido ele dá a si mesmo, através de uma “opção fundamental”, a sua própria conformação. Desta perspectiva o homem só existe enquanto age e, no plano da acção, a ele é oferecida uma série de possibilidades que parecem ser “indiferentes”. Mas a eleição da acção concreta, determinada pela elevação de um motivo possível a motivo real em razão da preferência do sentido ou do valor que apresenta para o agente na sua auto-realização, tem que ser reconduzida a uma

decisão através da qual o homem se decide a si mesmo, criando o seu próprio ser ou afirmando a sua própria essência. O homem determina a sua ação através da sua livre decisão sobre si mesmo. De modo que aquilo que, no plano da acção, parece ser

liberdade de indiferença, livre-arbítrio, é, no plano do existir, a liberdade de decisão pelo próprio ser e sentido, a opção fundamental pela conformação da sua vida: a liberdade daquele que tem de agir

assim por ser como é.346

A liberdade do indivíduo, assim, se fundamenta no seu próprio existir, na medida em que age, sendo certo, nessa ótica, que o ser humano só existe quando efetivamente age. Disso resulta que o conteúdo material da culpabilidade é “o ter

que responder pelas qualidades juridicamente desvaliosas da personalidade que fundamentam um facto ilícito-típico e nele se exprimem”347. Apenas assim a culpabilidade pode “continuar a cumprir a sua função politico-criminal de limitação

344 Idem, ibidem, p. 518

345 Idem, ibidem, p. 521

346 DIAS, Jorge Figueiredo. Direito penal: parte geral: tomo I: questões fundamentais: a doutrina

geral do crime. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 524

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da medida da pena em nome da eminente dignidade da pessoa e, por aqui, de continuar a constituir um fundamento irrenunciável do direito penal do futuro”348.