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2. Expressões da crise no capitalismo contemporâneo

2.3 A cultura antidemocrática no Brasil pós-64

O processo sócio-histórico condutor do ciclo ditatorial no Brasil pós-64, acompanha de forma contundente e peremptória, uma tendência de desenvolvimento ideo-política e econômico-social do capitalismo hegemônico norte- americano, marcado pelo período dos monopólios, expandindo em dimensões antes inimagináveis, o processo de contra-revolução, aprofundando e particularmente reforçando, as linhas de força que desde sempre pactuaram (formal e descaradamente) contra o desenvolvimento democrático no país.

Neste sentido, a instauração do golpe de abril representou a conquista de uma conspiração hegemonizada pela burguesia nacional e internacional expressando o domínio das forças mais retrogradas do país sobre as mais democráticas, constituindo-se assim, um processo que se denominou de modernização conservadora para expressar o caráter concentrador do desenvolvimento econômico do país. De acordo com Mazzeo, os interesses iam um pouco além, dizendo,

[...] que as transformações externas do capitalismo mundial e do imperialismo aprofundam ainda mais as dificuladades dessa burguesia, forçando-a a entender que ela não podia reintegrar o Brasil no quadro da economia mundial sem romper também com a utopia da democracia burguesa em um país de tradição colonial – e com a ilusão de um nacionalismo burguês – dada a subordinação estrutural da economia brasileira aos pólos centrais do capitalismo (1999, p. 137).

Como pano de fundo, além dos fundamentos econômicos de promoção em larga escala da mais-valia absoluta, a estratégia ideo-política implementada pela ditadura, girava explicitamente em torno da cristalização do processo sócio-político iniciado anos antes56 com a emersão das forças democráticas no cenário político

brasileiro, inflexionando e revertendo decididamente, a possibilidade concreta de construção de uma nova hegemonia, capaz de romper com o arcaico padrão de desenvolvimento dependente e desigual até então instaurado no Brasil.

O panorama político no pré-64 foi de intensa movimentação em torno do campo democrático, sobretudo com a ascensão de João Goulart à Presidência da República e as forças burguesas conservadoras sabiam que os desafios postos pela realidade social requeriam mudanças imperativas e categóricas, pois estava em jogo um projeto político nacional classista57 - diga-se com conteúdos revolucionários - que pela primeira vez na história do Brasil, tinha condições efetivas de reverter mais a si, as condições de exploração do capitalismo latifundiário e cartorial.

O significado de tal inflexão representou não só a derrota das forças democráticas e populares de então, mas reafirmou o padrão hegemônico burguês de dominação, expresso pelas piores tradições da nossa cultura política e que se

56 O pós-45 embora possa ser caracterizado como um período de relativa democracia,

principalmente, no tocante aos direitos políticos e civis, não significou uma ruptura com as estruturas consolidadas pelo governo Vargas. Entretanto, a conjuntura mundial mudara e as idéias do economista John M. Keynes foram incorporadas por grande parte dos países europeus do pós- guerra. O ideário social-democrata, principalmente no que se refere à economia e à administração do governo, foi fagocitado silenciosamente pelas elites brasileiras. Segundo Guilherme dos SANTOS, (1999, p. 80), o cenário social era este: “[...] O Estado regulava quase tudo, ou tudo, sempre que o conflito ameaçasse ultrapassar os limites que a elite considerasse apropriados. O Estado autoritário brasileiro, que, em verdade, se estende de 1930 a 1945, buscou sua legitimidade, como acentuou Azevedo Amaral, na necessidade de conter os conflitos sociais nos limites da sobrevivência da comunidade, tal como os entendia e definia a elite dirigente. Era, em sentido estrito, um Estado de legitimidade hobbesiana. Suas instituições sociais e econômicas foram aparentemente adequadas aos propósitos da elite no poder, mas após 1945, tratava-se de administrar uma ordem relativamente democrática em termos políticos, em um contexto social e econômico extremamente regulado”.

57 É importante relembrar que o contexto histórico dos anos 30, através do projeto político

liderado pelo então Presidente Getúlio Vargas é uma referência importante na demarcação de um período, em que historicamente se pode localizar a emergência das classes no Brasil. Classes aqui entendidas como aquelas que representam a contradição fundamental da ordem capitalista, qual seja, de um lado o capitalista, do outro o trabalhador assalariado. Nesse momento, fatores da conjuntura econômica e política do início dos anos 30 desencadearam o debate político da “questão social”, que passou a ser encarada como um fenômeno mundial, resultado da dinâmica específica do capital monopolizado, portanto “[...] elementarmente determinada pelo traço próprio e peculiar da relação capital/trabalho – a exploração”, nos termos de José Paulo NETTO, em Cinco Notas a

respeito da Questão Social, 2001, p. 45. No decurso dessa história, a programática do governo

Vargas foi de responder ao enfretamento das classes, dentro de uma estratégia de criação da legislação trabalhista. O Ministério do Trabalho, na perspectiva de legalidade do enfrentamento da “questão social”, aparece como marco da funcionalidade à construção da hegemonia burguesa.

encontra tão travejada na formação social brasileira. A conspiração formada pelos segmentos mais retrógrados da burguesia encontra na coerção a estratégia de impor-se à nação, refrigerando o jogo de interesses e conflitos das classes em oposição, revertendo o processo democrático em curso antes de 64.

Ao lado disso, e ao mesmo tempo em que se desenvolvia o processo de monopolização do capital, a mais-valia ascendia num crescendo contínuo, orientando-se de modo radical à subsunção do trabalhador urbano e rural, favorecendo de todas as formas a acumulação da burguesia nacional, que para manter seus interesses, captura o poder do Estado a seu favor, desenvolvendo uma estrutura política poderosa de estatização da economia durante a ditadura. Na análise de Ianni,

[...] a ditadura desenvolveu, aperfeiçoou ou “modernizou” o aparelho estatal, de modo a garantir a estabilidade social e a política conveniente ao capital financeiro nacional e estrangeiro. Todas as esferas da vida social passaram a ser vigiadas, controladas, dinamizadas ou reprimidas, de modo a garantir as condições de “segurança” desejadas pela grande burguesia nacional e estrangeira, para o desenvolvimento do capital (1981, p. 43).

O fato é que o Estado pós-64 em sua versão ditatorial é totalmente redefinido para atender às demandas e interesses das forças sócio-políticas da elite autocrática burguesa, projetando num curto lapso de tempo uma expansão assustadora do processo de pauperização das classes subalternas e radicalizando, sem medidas, a coerção às forças de resistência democráticas.

Conduzido pelos militares, o país se submete a um austero controle social, imposto por rigorosas medidas repressivas, que incluiram a perda total de direitos políticos, de participação e representação de classe, instauração de uma cultura do medo, do terror, das prisões e torturas, configurando-se o que ficou conhecido pela doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento. Neste último aspecto, é sintomático o amplo investimento em programas de assistência e previdência social,

também como parte das estratégias de controle social, com vistas a reduzir o impacto das tensões de classe, provocadas pelas medidas rigorosas. Para Mota,

[...] a ampliação da cobertura dos programas sociais, em que se incluem as políticas de seguridade social, respondeu, preponderantemente, pela estratégia de modernização autoritária adotada pelos governos militares (2000, p. 137).

Os direitos políticos e civis foram suspensos o que acabou por provocar também retrocesso em alguns direitos sociais conquistados durante o interrêgnum democrático, principalmente os de trabalho. Mas os governos militares continuaram a enfatizar os direitos sociais da mesma forma que o então governo Vargas58.

A noção de cidadania continuava desvinculada de qualquer conotação pública ou universal, sendo ainda concebida como privilégio pessoal, produzida pela benemerência das autoridades públicas, donde grande parte da população também encontrava-se sem quaisquer direitos fundamentais, apesar das garantias individuais estarem previstas no artigo 150 da Constituição de 1967 e os direitos sociais no artigo 158.

Neste sentido, o projeto que se foi constituindo e impondo a todos, acabou por apagar definitivamente da legislação social as marcas das lutas operárias dos anos 20 e 40 respectivamente, aprofundando o que fora denominado de ideologia da outorga59, ou ideologia do favor e que se tornaram clássicas na literatura sociológica

58 É possível afirmar que o governo de Getúlio Vargas foi a época em que se instituiu os

direitos sociais no Brasil. O problema efetivo desse período foi a inversão na ordem proposta por

Marshall. Os direitos sociais foram introduzidos em momento de supressão dos direitos políticos e, sobretudo, não em decorrência da luta política organizada dos movimentos sociais, mas como benesse ou graça da chefatura do Poder Executivo da República. Isto sugere a suposição de que no Brasil, a Lei como expressão jurídica do direito, foi instituída como forma de constranger os avanços da luta organizada da classe operária e conseqüentemente sua emancipação política. Tanto que a legislação social, no âmbito do Estado Novo, será explicitamente assinalada pelo controle político e social que assumiu perante as classes subalternas.

59 Para Luiz Weneck VIANNA (1976, p. 35), “[...] a ideologia da outorga será sem dúvida,

resultante de um pacto. Porém, não entre o Estado e as classes subalternas, e sim entre as diferentes facções das classes dominantes, tendo como principal implicação a [...] supressão da

no Brasil, marcando, como afirma José Paulo Netto, “[...] claramente o deslocamento da nossa história de qualquer pretensão de transformar conquistas e consolidá-las na forma de direitos” (2004b).

No marco dessa cultura política, a idéia de cidadania regulada60 também fora

reposta como conceito chave que permitiu a todos compreender a política econômico- social do pós-30, quando da passagem da esfera da acumulação para a esfera da equidade, como concepção de cidadania implícito na prática política do então governo Vargas.

Assim, a políticas sociais eram concebidas como privilégio e não como direito, já que uma série de trabalhadores ficava à margem dos benefícios concedidos pelo sistema previdenciário.

Porém, para surpresa de muitos e insatisfação de poucos, mesmo com os direitos políticos, civis e sociais hipertrofiados, a esquerda no Brasil – ainda que débil - não foi aniquilada pela ditatura – muito embora os esforços e intentos tenham sido assaz - ao contrário, a contingência abre caminho para que a fortiori o efeito que a causa autoritária-fascista produziu, retorne como causa em relação a si mesmo.