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1. Direito, liberdade e igualdade no horizonte da tradição liberal

1.3 Filosofia do Direito de Hegel: liberdade e reconhecimento

No prólogo da Filosofia do Direito (1986, p. 34), Hegel afirma de forma imperiosa; “[...] comprender o que é, eis a tarefa da filosofia, porque o que é, é a razão”. Logo de início, procura indicar o caminho de onde partirá sua análise sobre o direito, a ética e o Estado. E ela se fará, necessariamente tendo como fundamento último, a razão, como instância de mediação do real, que se realiza na ordem do desenvolvimento da idéia; isto porque, segundo Hegel, somente pelo pensamento o objeto torna-se e/ou eleva-se ao universal, conservando a particularidade abstrata negada dialeticamente. Como idéia, a unidade do conceito e da realidade, determina uma ciência, que para ser conhecimento filosófico tem que ser objetivo. Aqui, a idéia é o verdadeiro em si e a unidade absoluta do conceito e da objetividade é o principio da filosofia ou da idéia, seguindo as intuições de Platão9.

Diz pois Hegel “[...] o que é racional é real e o que é real é racional” (ibid, p. 33). Ao enunciar esta proposição que se tornou célebre, ele quer demonstrar que há

8 Kant vai ampliar essa idéia de contrato dentro do Estado para outros Estados, propondo

uma espécie de liga das Nações, organizada como uma associação de autoridades soberanas. Daí esta doutrina ser considerada originária da Organização das Nações Unidas.

9 Para Platão (427-347 A.C), “[...] a idéia é freqüentemente considerada como sendo a

essência ou a substância do que é multíplice. A unidade do visível na multiplicidade dos objetos e por isso a sua espécie. Objetos dos quais pode-se afirmar com certeza que existem idéias. Estes são: a) os objetos matemáticos: igualdade, um, muitos, etc; b) os valores: o belo, o justo, o bem, etc. Os objetos dos quais é duvidoso que existam idéias: as coisas naturais, como o fogo, a água e o homem; os objetos dos quais há a certeza de que não existem idéias: estes são as coisas vis e as coisas que não têm valor” . Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, 2000. p. 525.

uma imanência entre o real e o racional. No entanto, Hegel não fala de qualquer racionalidade, sobretudo daquela que expressa na tradição filosófica um humanismo extremo, fechado em si mesmo e fundado numa concepção transcendental e subjetiva de homem, abstraída da universal realidade. Essa racionalidade, diz no parágrafo 200 da Filosofia do Direito, é “proveniente do intelecto abstrato e dos doutrinadores vis”; uma vez que não é o homem que atribui racionalidade ao real, pois o mundo e o real constituem uma racionalidade própria. A este juízo, atribui em específico o projeto de uma razão metafísica que Kant levou às últimas conseqüências.

Neste contexto, Hegel entendia que Kant precisava ser superado - isto era óbvio para ele - e sugere, pois, uma síntese entre sujeito e objeto, onde as antinomias pudessem ser ao mesmo tempo superadas e conservadas, numa concepção de realidade como dialética do espírito10 que se move em direção ao absoluto e a totalidade, como a unidade que confere significado ao mundo e extingue a dicotomia entre o ser e o não-ser.

Nesta ocasião, o caminho da subjetividade que havia sido posta até aquele momento com Kant, estava para Hegel consumido e encerrado, uma vez que o conhecimento da objetividade como real existente, haveria de realizar-se historicamente. Dirá Valcácel,

[...] si la objetividad, sin olvidar nunca el peculiar realismo hegeliano, exigia de la subjetividade que se le habia opuesto – por ejemplo en Kant – su derecho, los nuevos tiempos y la nueva filosofia habrían de proporcionarle tal plato11 (1998, p. 277)

10 Através do método dialético hegeliano, o espírito aparece quando o sujeito deixa de ser

apenas em si e passa a ser também para si, constituindo ao mesmo tempo a natureza do objeto. Contudo é importante não perder de vista o caráter cíclico de sua dialética, pois é ela que mostra o movimento e a existência do espírito; por exemplo, a subjetividade do espírito se mostra num primeiro momento como simplesmente para si; em sua objetividade é realidade apenas em si, se realizando tão somente em si e para si enquanto espírito absoluto, como síntese dos momentos anteriores.

11 “Se a objetividade, sem nunca esquecer o peculiar realismo hegeliano, exigia da

subjetividade que se havia oposto – por exemplo, em Kant – seu direito, os novos tempos e a nova filosofia haviam de proporcionar-lhes tal feito” [tradução minha].

Logo na introdução da Filosofia do Direito, anota Hegel: “[...] o objeto da ciência filosófica do direito é a idéia do direito” (1976, p. 17), o que significa dizer, o conceito do direito e sua realização. Entenda-se, o objeto da ciência do direito é desenvolver a partir do conceito, a idéia em sua evolução imanente. Pois bem, se a idéia representa para Hegel a inteligibilidade de todas as coisas e é ela mesma o pensamento idêntico a si mesmo, somente no pensar o objeto se torna universal, isto é, tem a natureza da universalidade.

Esta será a maneira pela qual Hegel tratará o direito como idéia, elevando-o à universalidade e conservando a particularidade negada dialeticamente, superando o a priori kantiano, que se fundamenta numa concepção formal e abstrata do entendimento. Se para Kant o saber a priori, que é proveniente do intelecto puro e de uma razão transcendental é o saber por excelência da filosofia, Hegel mostrará que o real e a consciência objetivamente haviam se desenvolvido historicamente e a filosofia metafísica de Kant, já não servia mais para explicar o presente, uma vez que cada pensamento agora encontraria seu lugar. A subjetividade transcendental do dever-ser de Kant, estaria superada através de sua objetividade realista, que se ocupa do real, do que é. Por isto, insiste na sua Filosofia do Direito “[...] a missão da filosofia está em conceber o que é, porque o que é, é a razão” (ibid, p. 14).

Este processo, do qual Hegel denomina “esforço do conceito”, prescinde de hipóteses apriorísticamente formuladas, trazidas atomisticamente de fora para manipular o fenômeno e assim descrevê-lo. Esclarece Teixeira,

[...] Este saber, para ser verdadeiramente saber absoluto, portanto, saber livre, saber não condicionado, não pergunta pelas condições a

priori de sua possibilidade, como o faz Kant. Tal pergunta implicaria

negar, de princípio, o próprio absoluto [...] ele deve ser causa de si mesmo [...] automovimento (1995, p. 73).

Aqui, Hegel se empenha em repor o problema do ser e do dever-ser, contrapondo-se a Kant que criou uma teoria baseada numa visão de mundo, tal

como entendia dever ser, enleada em pura abstração, não atingindo o sentido concreto da realidade nem a razão como espírito consciente.

Neste sentido, no mundo dos valores e da cultura é impensável para Hegel a formulação de normas vazias, abstratas e sem conteúdo real. E aí, o direito, a moral e a eticidade são referências constantes ao dever-ser, porém, com substâncias reais. Através dessa tríade, ele procura decompor o formalismo kantiano e superar ao mesmo tempo a sua deontologia abstrata.

Por outro lado e fundamentalmente, interessa ao pensador Alemão, em sua filosofia política, desenvolver teoricamente um modelo de totalidade ética, segundo o qual o reconhecimento é o conceito-chave para o estabelecimento de instituições garantidoras da liberdade. Segundo Honneth,

[...] só quando o curso histórico-universal do “vir-a-ser da eticidade” é concebido como um entrelaçamento de socialização e individuação pode-se aceitar que seu resultado seria também a forma de sociedade que encontraria sua coesão orgânica no reconhecimento intersubjetivo da particularidade de todos os indivíduos (2003, p. 45).

O reconhecimento como ação recíproca entre os indivíduos, passa a ser subjacente à relação jurídica em Hegel, que na sua lógica assume uma dinâmica interna num movimento de reconhecimento que integra o seu sistema de eticidade, passando pelo processo intersubjetivo das dimensões da individualidade representadas num primeiro momento, pelas relações familiares, estendendo-se após a uma etapa subseqüente da sociedade civil, que resulta do convívio social, donde os indivíduos passam a ser reconhecidos como sujeitos de direitos, portadores de pretensões jurídicas contratualmente garantidas pelas suas relações de troca e propriedade, às quais cabe o direito formal regular; finalmente, realizando- se na relação de reconhecimento do Estado como universal concreto, expressa pelas relações dos sujeitos socializados com o mundo em seu todo. Na leitura de Thadeu Weber, a eticidade,

[...] é definida como a identidade do bem e da vontade subjetiva, a eticidade é o campo da moralidade social. O indivíduo se libera de si para realizar-se plenamente na comunidade [...] representa o momento da síntese de toda a Filosofia do Direito, ou seja, é a realização da idéia da liberdade que se converte em mundo existente. Vale dizer, que a eticidade não se situa ao nível das opiniões subjetivas e caprichos pessoais, mas ao nível das ‘instituições e leis existentes em e para si (WEBER, 1993, p. 95-96).

No desdobramento lógico que configura o seu sistema de eticidade e num minucioso trabalho de construção cognitivo-epistemológica de cada movimento dessas relações de reconhecimento, Hegel procura, em última instância, conforme ilustra Honneth,

[...] Esclarecer quais experiências, repletas de exigências, um sujeito precisa ter feito ao todo antes de estar em condições de conceber-se a si mesmo como uma pessoa dotada de direitos e, nessa medida, poder participar então na vida institucionalmente regulada de uma sociedade, isto é, no espírito efetivo (2003, p. 73).

As formulações iniciais de Hegel levam-no a intuir, que a constituição de relações jurídicas fundadas no reconhecimento intersubjetivo das particularidades de todos os indivíduos, quer sejam de carências materiais ou espirituais, são elas mesmas incluídas mediante liberdades negativas do direito formal.

Dessa suposição, resulta a sua crítica à tradição do direito natural que ele designa como teorias fundadas em premissas atomísticas e aéticas, numa perspectiva transcendental de razão prática, onde “[...] uma comunidade de homens só pode ser pensada segundo o modelo abstrato dos muitos associados” (HEGEL, 1976, apud, HONNETH, 2003, p. 39), numa vinculação de indivíduos socialmente isolados, porém sem uma unidade ética universal.

O caminho pelo qual chega a desenvolver a condução desta totalidade ética universal e absoluta - que Hegel assinala como nova relação social constituída pelo processo de universalização jurídica - é descrita pela superação das relações práticas que os indivíduos possuem através das formas elementares de reconhecimento meramente pessoal, das suas carências relativas aos bens necessários à vida, transformados em última instância, em pretensões de direito universais, contratualmente garantidas pelo Estado.

No sistema da eticidade, conseqüentemente o Estado se constitui no ponto de referência central da análise de Hegel, por ser a categoria precisa capaz de efetuar através de uma série de mediações, própria do processo de reconhecimento, a experiência do reconhecer-se-no-outro, como consciência que supera as pretensões meramente subjetivas do ser-reconhecido. Tal consciência, que se tornou absoluta para Hegel, representa uma espécie de mecanismo social que, na interpretação de Honneth “[...] força os sujeitos a se reconhecerem mutuamente no respectivo outro, de modo que por fim sua consciência individual da totalidade acaba se cruzando com a de todos os outros, formando uma consciência universal” (ibid; p. 64).

Reinterpretando o modelo hobbesiano de luta natural de todos contra todos, Hegel mostrará que a passagem para o contrato social, implica em certa medida, o processo prático donde os sujeitos compartilham suas relações prévias de reconhecimento. No entanto, num movimento racional de expansão e superação do estado de natureza, a elevação consciente de relações jurídicas intersubjetivas, que se realiza sob determinadas condições históricas, representa o ingresso da vontade universal como efetividade espiritual da sociedade na luta por reconhecimento jurídico, de modo que só na relação ética do Estado, a pretensão do sujeito enquanto vontade individual tem validade universal. Assim o diz, no parágrafo 260 da Filosofia do Direito,

[...] o Estado é a realidade em ato da liberdade concreta: ora, a liberdade concreta consiste em que a individualidade pessoal e seus interesses particulares recebam seu pleno desenvolvimento e reconhecimento de seus direitos para si (nos sistemas da família e da sociedade civil), ao mesmo tempo que se integram no interesse geral, ou então o reconhecem consciente e voluntariamente como a substância de seu próprio espírito, agindo para ele como o seu objetivo final. Disso resulta que nem o universal vale e se realiza sem o interesse, a consciência e a vontade particulares, nem os indivíduos vivem como pessoas privadas, orientadas exclusivamente para os seus próprios interesses, sem querer o universal: eles têm uma atividade consciente de seu fim. O princípio dos Estados modernos tem esta força e esta profundidade, de permitir que o princípio da subjetividade chegue à extrema autonomia da particularidade pessoal e, ao mesmo tempo, de reconduzi-la à unidade substancial, mantendo, assim, essa unidade em seu próprio princípio (HEGEL, 1976, P. 45).

Assim sendo, o Estado encarnando o espírito absoluto, se constitui para Hegel o médium social de universalização por excelência, que carrega em si, o espírito do povo e, nesse sentido, igualmente o conteúdo de seus costumes.

Pode-se dizer, portanto, no sentido hegeliano que o direito existente - as normas jurídicas positivas - é, pois, a manifestação através do qual se explicita a justiça, o modo pelo qual sua essência se mostra mais próxima da razão, entendida como expressão de determinado momento histórico. Todavia, embora sendo o revelar da liberdade, não significa a substância mesma do direito; isto porque Hegel diferencia o real e o existente. Noutras palavras, é necessário ir para além da exterioridade do fenômeno, que é simplesmente dado e buscar os fundamentos de sua essência, como pretensão última de encontrar a razão das coisas mesmas.

Segue-se daí, que a preocupação de Hegel é perguntar pela validade do direito enquanto direito posto na forma de leis positivas, não para justificá-lo historicamente, mas para compreendê-lo e dar-lhe uma justificação válida em si e para si. Deste modo, eis a tarefa da Filosofia do Direito: tomar o direito como realidade que é, e elevá-la pelo conceito enquanto idéia, tal como é, e não como deve ser. Esta unidade direito existente e conteúdo da idéia do direito formam para Hegel a verdade do direito, entendida como correspondência do conceito com a realidade.

Na Introdução da Filosofia do Direito, Hegel sugere uma correção da definição do direito, como necessidade de esclarecer a diferença entre conteúdo e forma do direito, afirmando que “[...] no conhecimento filosófico, a necessidade de um conceito é, de longe, a coisa principal.”. Segue-se, o que há de mais importante para Hegel: a identidade entre ser e pensar, ou seja, entre forma e conteúdo. Diz ele no mesmo parágrafo: “[...] quanto mais incoerências e contradições houver no conteúdo das regras de um direito, menos possíveis serão as definições que devem conter as regras gerais” (1976, p. 18).

Portanto, a correção do direito passa pela exigência da correspondência entre conceito e representação. Aqui Hegel se referindo à ciência positiva do direito, faz uma crítica ao formalismo das definições kantianas sobre o direito, acusando-as de “[...] afirmar e apreender imediatamente como dados da consciência, as idéias em geral, e em particular, a do direito e suas determinações” (ibid, p. 19). Para ele, isto significa tomar como absoluto aquilo que é relativo.

Decerto, que os cem anos que separaram o jovem Hegel - ao começar a esboçar seus primeiros escritos de filosofia política em 1802 – dos pensadores ingleses, o colocaram num contexto teórico e histórico muito particular, tornando-se- lhe problemáticos os pressupostos jusnaturalistas até então formulados, especialmente o paradigma da teoria individualista da moral kantiana que permaneceu no horizonte do pensamento alemão por muitos anos. Acrescente-se a isto, a leitura acurada que Hegel fez dos escritos políticos de Platão e Aristóteles, introduzindo-o numa perspectiva teórica que atribui à intersubjetividade da vida pública, uma importância cabal na esfera da sociabilidade humana.

Estas impressões permitiram ao jovem Hegel, um discernimento ímpar em relação às tentativas ulteriores dos seus contemporâneos, convencendo-o de que era necessário; parafraseando Honneth “[...] superar os equívocos atomísticos a que estava presa à tradição inteira do direito natural moderno” (2003, p. 38), tanto na sua perspectiva empírica, quanto formal, recuperando a totalidade ética da sociabilidade entendida de forma adequada como médium social, no qual deve realizar a integração das liberdades coletivas e individuais.

Neste sentido, a Filosofia do Direito de Hegel, se apresenta como a forma mais elevada de todo o sistema de direito natural, desde Hobbes até Kant, posto que, sendo negação é também superação do que o antecedeu.

Assim, quando se reporta à tradição da Filosofia alemã clássica, percebe-se o segredo da teoria idealista da razão, que “[...] não é absolutamente outra coisa senão o pensar abstrato que renuncia a si e decide pela intuição”, segundo a lúcida análise de Marx (2004, p. 134) nos Manuscritos Econômico-filosóficos. Logo, entende-se por que só a virada histórico-materialista pôde ser capaz de conferir à luta social, um lugar adequado na realidade social e as razões de Marx em dialogar com Hegel, recuperando largamente sua dialética, transformando-a em seguida ao “recolocá-la sobre seus próprios pés” (LUKÁCS).

Portanto, quando Marx afirma que “[...] o ideal nada mais é do que o material invertido e traduzido na cabeça do homem” (1983, p. 23), é porque começa a esboçar uma nova concepção do real, uma nova ontologia operando com o potencial constituinte de uma teoria que procura ir ao encontro do fundamento do ser, em vez de espiritualizá-lo – como o fez Hegel - desvendando, ao contrário, seu caráter material e seu processo de vida efetivo.