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CAPÍTULO 3 – SABERES

3.1 A EDUCAÇÃO POPULAR

3.1.1 A cultura como objeto da Antropologia

Na centralidade enunciativa da Educação Popular, está o debate antropológico, cujo objeto, por excelência, é a cultura. Isso implica noções que consideram “[...] o homem como um ser de relações, [e] se chega à distinção entre dois mundos – o da natureza e o da cultura” (BRANDÃO, 1981, p. 45). Isso se apresenta como uma das razões pelas quais a Antropologia é identificada como o estudo do homem. Não de sua anatomia, fisiologia ou psique, mas do modo como ele está situado em grupo culturalmente.

A matéria-prima da Educação Popular é justamente o conhecimento da cultura, no campo de domínio antropológico. Essa ordem do discurso opera a distinção entre cultura e erudição ou Belas Artes. Isso implica na ruptura de certos modos de situar a questão da cultura. Por exemplo:

Daqui resulta que o resto da juventude cresce sem a devida cultura, como uma selva que ninguém planta, ninguém rega, ninguém poda e ninguém se esforça por fazer crescer direita. Por esse motivo, costumes e hábitos grosseiros e depravados enchem o mundo, todas as cidades e praças fortes, todas as casas e todas as pessoas, cujos corpos e almas estão totalmente cheios de confusão. Se hoje voltassem a viver entre nós Diógenes, Sócrates, Sêneca e Salomão, não encontrariam senão o que era nos tempos passados (COMENIUS, 2001, p. 19).

Na ordem do discurso antropológico acionado pela Educação Popular, essas ideias merecem críticas, uma vez que é fundamental considerar e valorizar os variados modos de

existência da cultura e levar em conta “[...] o papel ativo dos homens como produtores de cultura e as diferentes formas de cultura: a cultura letrada e a não letrada, o trabalho, a arte, a religião, os diferentes padrões de comportamento e a sociabilidade” (BRASIL, 2001, p. 24). Enunciados como “deficiência” ou “carência” cultural34 estão interditados nesse campo. O pressuposto básico da existência da cultura é a constituição de um grupo humano. Antropologicamente, negar que há cultura em certa comunidade humana equivale a contestar a existência do próprio grupo.

Ao se falar em EJA, algumas noções, como “difusão”, “elevação” ou “maioridade” cultural também são objetos de interdição, no campo de domínio da Educação Popular. Com base no enunciado antropológico de cultura, a noção de difusão cultural é objeto de críticas, uma vez que ela desqualifica a cultura popular, afirmando ser a EJA um espaço que oportuniza o povo a ter acesso à cultura. Também é questionada a noção de elevação cultural, visto que só é necessário elevar aquilo que está em um baixo nível. Do mesmo modo, há questionamentos sobre a noção de minoridade cultural atribuída às classes populares. A crítica reside no fato de que essa noção desqualifica uma cultura, ao afirmar sua necessidade de atingir a maioridade. Em contraposição a isso, “é essencial que as abordagens referentes à educação de adultos estejam baseadas no patrimônio cultural comum, nos valores e nas experiências anteriores de cada comunidade […]” (SESI/UNESCO, 1999, p. 2).

A ideia de “[...] ampliar as oportunidades de educação de adultos e de multiplicar suas atividades em favor da difusão cultural” (PAIVA, 1987, p. 175) aparece como exemplo dessas noções de cultura, questionadas e criticadas, portanto, interditadas pelo discurso antropológico. Ou seja, há vestígios de artefatos enunciativos dispersos no tempo que até defendem que “[...] a cultura é necessária a todos” (COMENIUS, 2001, p. 48). Porém isso caminha em uma direção mais alienante do que libertadora. Outro exemplo é a ideia de que uma “[...] orientação política [correta] para a educação dos adultos [seria a construção de] propostas que buscassem […] elevar o nível cultural do povo […]” (PAIVA, 1987, p. 211). Ao mobilizar algumas dessas noções, relacionadas à cultura, referindo-se aos analfabetos, é possível afirmar que, “sem o domínio dessas técnicas elementares [de leitura e escrita], o homem de hoje permanece em minoridade cultural [...]” (FILHO, 1945, p. 170). Por fim, também é objeto de interdição do discurso antropológico pensar “a educação de adultos [...] como um fato privilegiado […] [no] processo de elevação cultural do povo” (BEISIEGEL, 1974, p. 97).

Por essa série de razões é que a “[...] imagem do adulto de 'cultura deficiente' que 'se

34 Poderíamos tratar a cultura conceitualmente, todavia esse não é o propósito desta descrição arqueológica dos saberes, enquanto função enunciativa da EJA, mas compreender como o signo cultura está articulado no discurso da EJA, presente no Curso de Pedagogia.

sabe inculto' já se opunha aos novos conceitos antropológicos […]” no discurso da Educação Popular (PAIVA, 1987, p. 213). Esses enunciados são denominados, no discurso antropológico, como uma visão preconceituosa acerca do jovem, do adulto ou do idoso da EJA. Em outras palavras, o fato de milhares de pessoas nunca terem frequentado a escola não autoriza, nesse campo de domínio, a afirmação de uma ausência, carência ou deficiência cultural. Isso se sustenta na afirmação de que essas pessoas não vivem isoladas umas das outras nem do mundo. O fato de não dominarem a língua escrita, de não falarem outros idiomas, além de sua língua materna, de não terem se apropriado do conhecimento científico não quer dizer ausência nem autoriza, do ponto de vista da Educação Popular, a se negar a existência de cultura.

A Educação Popular se apropria do campo de domínio antropológico. Isso ocorre no vínculo estabelecido entre a noção de cultura e tudo aquilo que não é produto da natureza, isto é, as obras humanas. “O conceito antropológico de cultura, a distinção entre o mundo da natureza e o mundo da cultura e o realce do papel ativo do homem sobre a realidade criando cultura […]” (PAIVA, 1987, p. 252) constituem um enunciado que ganha status singular na Educação Popular, sobretudo ao se relacionarem aos enunciados mobilizados nas ideias freireanas, que propõem que os educadores

[…] visitem [os educandos] em horas de trabalho no campo; que assistam a reuniões de alguma associação popular, observando o procedimento de suas participantes, a linguagem usada, as relações entre diretoria e sócios; o papel que desempenham as mulheres, os jovens. É indispensável que visitem em horas de lazer; que presenciem seus habitantes em atividades esportivas; que conversem com pessoas em suas casas, registrando manifestações em tôrno (sic) das relações marido-mulher, pais-filhos […] (FREIRE, 1981, p. 124).

Trata-se de pensar “o conceito antropológico de cultura […] através de sua compreensão, [e problematizar] o papel dos homens no mundo e com o mundo, como sêres (sic) da transformação e não da adaptação” (FREIRE, 1981, p. 136). Se a cultura é situada enunciativamente como tudo aquilo que é obra humana, desde uma atividade surgida há milênios, como a agricultura, até o atual desenvolvimento tecnológico, é uma irracionalidade afirmar que determinados grupos ou classes sociais são incultos. Nessa ordem do discurso, “[...] a alfabetização e a promoção da cultura popular eram vistas como tarefas políticas, como meio de libertação popular” (1987, p. 247). A Educação Popular socializa essa reflexão com os próprios sujeitos envolvidos no processo educativo, criando condições para que eles se reconheçam como seres de cultura e produtores de saberes diversos.