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CAPÍTULO 3 – SABERES

3.3 OS SABERES PEDAGÓGICOS

3.3.1 A Didática

No Curso de Pedagogia, esse Saber/enunciado pedagógico já é consolidado em uma disciplina, a Didática, que estrutura todo o discurso sobre o processo de ensino. Trata-se de um Saber indispensável à posição docente, eventualmente ocupada pelos pedagogos. Ela abrange enunciados correlacionados aos seguintes aspectos: filosóficos, políticos, cognitivos, planejamento, execução e a avaliação dos processos educativos. Ao percorrer essa rede enunciativa, é possível se deparar com alguns artefatos notáveis em outros tempos, espaços e contextos. Como a intenção desta investigação não foi de se debruçar nos tempos ou contextos, mas nas práticas discursivas, identificamos alguns signos que atravessam esse circuito, constituindo algumas condições de existência do enunciado da EJA no Curso de Pedagogia. Nessa direção:

Didática significa arte de ensinar. […] Essa arte de ensinar e de aprender, levada ao ponto de perfeição que parece agora esforçar-se por atingir, foi, em boa parte, desconhecida nos séculos passados e, por esse fato, os estudos e as escolas curvavam ao peso de fadigas e de caprichos, de hesitações e de ilusões, de erros e de faltas, de tal maneira que apenas podiam adquirir, à força de lutar, uma instrução sólida, aqueles que tinham a felicidade de possuir uma inteligência divina (COMENIUS, 2001, p. 5-7).

Sua especificidade é o deslocamento da capacidade de aprendizagem do próprio indivíduo, de sua genialidade, ou de uma capacidade até então compreendida como sobrenatural, para um método de ensino. Nessa ordem do discurso, afirma-se que, se há um modo universal, objetivamente desenvolvido, qualquer pessoa pode aprender. Por estar situada enunciativamente no campo do conhecimento, a Didática apresenta um acúmulo teórico e prático. Tanto é que “alguns se esforçaram por arranjar compêndios apenas para ensinar mais facilmente […] Outros procuraram […] ensinar, mais rapidamente […] Quase todos por meio de algumas observações […] como se revela evidente pelos livros e ensaios didáticos por eles publicados” (COMENIUS, 2001, p. 5-7).

Um elemento presente, com regularidade, nesse campo de domínio, é o enunciado da otimização do processo, evocado por signos como: “rapidez”, “facilidade”, “vencer a fadiga” etc. Trata-se do discurso do desenvolvimento de métodos e técnicas precisas, para que a pessoa possa ser “[...] instruída em tudo o que diz respeito à vida […] com economia de tempo e de fadiga, com agrado e com solidez” (COMENIUS, 2001, p. 5). Nesse campo, não há espaço para a aleatoriedade. Tudo é cuidadosamente pensado e milimetricamente preparado. Em relação ao tempo, “[...] o curso dos estudos é distribuído por anos, meses, dias

e horas; e, enfim, é indicado um caminho fácil e seguro de pôr essas coisas em prática com bom resultado” (COMENIUS, 2001, p. 5).

No final das contas, o que o discurso comeniano promete é um “[...] método segundo o qual os professores ensinem menos, e os estudantes aprendam mais; nas escolas, haja menos barulho, menos enfado, menos trabalho inútil e, ao contrário, haja […] mais sólido progresso” (COMENIUS, 2001, p. 5). Trata-se, portanto, da promessa de

[…] um método universal de ensinar tudo a todos. E de ensinar com tal certeza, que seja impossível não conseguir bons resultados. E de ensinar rapidamente, ou seja, sem nenhum enfado e sem nenhum aborrecimento para os alunos e para os professores, mas antes com sumo prazer para uns e para outros. E de ensinar solidamente, não superficialmente e apenas com palavras […] assim estabelecemos um método universal de fundar escolas universais (COMENIUS, 2001, p. 6).

Para ser infalível, no alcance desses resultados, prometidos pelo desenvolvimento do Método Universal, algumas estratégias enunciativas são mobilizadas. A primeira delas é a menção à divisão adequada do tempo; outra é a utilização articulada dos sentidos e das ações dos alunos. Em outras palavras, “[...] associe-se sempre o ouvido à vista, a língua à mão; ou seja, não apenas se narre aquilo que se quer fazer aprender, para que chegue aos ouvidos, mas represente-se também graficamente, para que se imprima na imaginação por intermédio dos olhos” (COMENIUS, 2001, p. 115). Em terceiro lugar, é necessário certificar-se de que o método está sendo aplicado de maneira correta e que a matéria está “[...] suficientemente impressa nos ouvidos, nos olhos, na inteligência e na memória” do aluno (COMENIUS, 2001, p. 115). Para isso, é recomendado que,

[...] em qualquer aula, depois de brevemente apresentada a matéria a aprender, de explicado claramente o sentido das palavras e de mostrada abertamente a aplicação da matéria, mande-se levantar qualquer dos alunos, o qual (como se fosse já professor dos outros) repita, pela mesma ordem, tudo o que foi dito pelo professor: explique as regras com as mesmas palavras; mostre a sua aplicação por meio dos mesmos exemplos. Se acaso errar, o professor deverá corrigi-lo. Depois, mande-se levantar outro para fazer o mesmo, enquanto todos os outros estão a ouvir; e depois, um terceiro e um quarto, e quantos for necessário, até que se veja claramente que todos compreenderam bem a lição e já são capazes de a repetir e de a ensinar. Não aconselho a que se observe, nesse caso, uma ordem rígida, mas aconselho que se chame primeiro os mais inteligentes, afim de que os de inteligência mais lenta, animados pelo exemplo dos primeiros, possam mais facilmente segui-los. (COMENIUS, 2001, p. 129-130)

deslocamentos enunciativos já na própria Didática Magna. Haja vista discursos que apontam a inviabilidade de se ensinar palavras desarticuladas da vida, ou da realidade concreta. Dito isso, é sabido por todos, em todos os lugares, que, “[...] da mesma maneira com que se vendem, se compram e se transportam o vinho juntamente com a garrafa, a espada com a bainha, o tronco com a casca e os frutos com a pele. Efetivamente, que são as palavras senão os invólucros e as bainhas das coisas?” (COMENIUS, 2001, p. 319-320). Ao adentrar os domínios da EJA e da Educação Popular, vemos que esse movimento enunciativo migra de um extremo, no qual existe um método fixo que deve ser seguido à risca, para que todos aprendam, não apenas os “mais inteligentes”, e aprender equivale absorver a matéria tal como ela é ministrada, para um lugar oposto, que prioriza processos reflexivos, problematizadores, nos quais todos aprendem alguma coisa, e aprender, de maneira alguma, equivale a memorizar conteúdos e sequências idênticas de palavras ou exemplos.

Ao analisar a relação enunciativa entre a Didática e a Educação de Jovens e Adultos, identifica-se a afirmação de “outro tipo de prática”. Na perspectiva da Educação Popular, que tanto confere visibilidade às experiências, está posto que nelas “[...] não se experimentava só um novo método, mas, através dele, um novo sentimento de Mundo, uma nova esperança no Homem” (BRANDÃO, 1981, p. 8). Devido ao caráter dialético desse discurso, o aspecto da transformação da realidade social, política e histórica ganha centralidade. Portanto, deve-se pensar em uma didática com metodologias que possam “[...] servir para outra prática, numa outra história […] A questão é que Paulo Freire não propôs um método entre outros. […] Antes de fazer isso, ele investiu aos brados com uma educação, contra outras” (BRANDÃO, 1981, p. 11-15).

Nesse campo de coexistências discursivas, agregam-se discursos sobre métodos, estratégias psicopedagógicas, uma educação de abordagem crítica e problematizadora, que a Didática emerge como uma das regras constitutivas das séries enunciativas dos saberes pedagógicos e, parcialmente, da Educação de Jovens e Adultos. Isso implica incorporar o acúmulo teórico da Didática como uma disciplina e, ao mesmo tempo, uma ruptura com alguns de seus aspectos clássicos, ao se tratar do campo específico da EJA.

O Conhecimento é a condição, por excelência, de existência enunciativa da Didática. Em primeiro lugar, porque a Didática é um campo de conhecimento. Em segundo lugar, porque uma de suas funções é a organização de outros objetos do conhecimento, com a finalidade do ensino. Nessa ordem do discurso sobre a EJA, é necessário que os educadores “[...] aprofundem e organizem didaticamente os conteúdos a ensinar; compreendam, valorizem e levem em conta ao planejar situações de ensino, processos de desenvolvimento de

[...] jovens e adultos, em suas múltiplas dimensões” (BRASIL, 2005, p. 13). Contudo, “[...] o tratamento didático dos conteúdos e das práticas não pode se ausentar nem da especificidade da EJA nem do caráter multidisciplinar e interdisciplinar dos componentes curriculares” (BRASIL, 2000b, p. 58).

O material didático voltado para a EJA é mais um elemento emergente nessa série de enunciados. Tanto para elaboração, quanto para sua seleção, os saberes pedagógicos de natureza didática, relativos à EJA, são necessários. É justamente por desconhecer essas especificidades da EJA que “muitos materiais didáticos, geralmente os produzidos em grande escala, fazem referência a 'trabalhadores' ou 'pessoas do povo' genéricas, com as quais é difícil homens e mulheres concretos se identificarem” (BRASIL, 2001, p. 29). Por esse motivo, “[...] o material didático era objeto de críticas [já nas campanhas do Século XX] e considerado pouco adequado para os adultos e as variadas regiões brasileiras” (PAIVA, 1987, p. 193). Nessa perspectiva está enunciado que

[...] as classes de adultos necessitam de mais abundante material do que à primeira vista se possa supor. Quadros, figuras, desenhos esquemáticos, gráficos, livros ilustrados, influem beneficamente na instrução. Quanto às cartilhas, torna-se necessário que estejam adaptadas ao vocabulário e aos interesses do adulto; tanto quanto procuramos fazer com as crianças, nesse caso, devemos fazer com os adultos. O uso das cartilhas infantis aumenta, para muitos, o seu sentimento de inferioridade, pelo inevitável confronto de sua situação com a dos escolares na idade própria, seus próprios filhos, parentes ou conhecidos (FILHO, 1945, p. 181).

No discurso sobre a EJA, especificamente no Curso de Pedagogia, há uma série de possibilidades de se utilizarem materiais que não são didáticos a priori. Cabe apenas a competência para selecioná-los. Conhecer as especificidades pedagógicas, acionadas nas séries enunciativas da EJA, possibilita o educador utilizar didaticamente diversos desses materiais. “Jornais e revistas são [e/ou podem tornar-se] recursos didáticos fundamentais, certamente os materiais escritos de mais fácil acesso aos jovens e adultos fora da escola” (BRASIL, 2001, p. 77). Não se trata, meramente, suprir uma carência de materiais didáticos especificamente fabricados para a escola: livros, cartilhas, material dourado, ábacos, lápis especiais, vídeos etc. Utilizar recortes de jornais, embalagens de alimentos, contracheque, boletos bancários, faturas de cartões de crédito ou contas de energia elétrica não deve ser encarado como um improviso, por falta de recursos “melhores”, mas reconhecer o valor desses materiais que, a priori não são didáticos, mas são artefatos culturais, que utilizados didaticamente, são ricos em possibilidades de mediação do conhecimento escolar.

Pensar a Didática situada, enunciativamente, como conhecimento, no campo de domínio dos saberes pedagógicos da EJA, implica compreender seus múltiplos descolamentos nesse território de saberes. Especificamente, no campo da EJA, refere-se à contribuição de Paulo Freire, afirmando que ela “[...] representa tecnicamente uma combinação original das conquistas teóricas da comunicação, da didática contemporânea e da psicologia moderna” (PAIVA, 1987, p. 151). Diante do exposto, é possível afirmar que a Educação Popular, a princípio, está no campo dos saberes, contudo, adentra o território do Conhecimento ao dialogar com esses e outros campos da Ciência, como a Antropologia, a História, a Sociologia e a Didática.