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O ESTADO BRASILEIRO FRENTE À EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

CAPÍTULO 2 – O DIREITO À EDUCAÇÃO

2.1 O ESTADO BRASILEIRO FRENTE À EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Há três séries enunciativas constituintes da posição do Estado brasileiro frente à problemática da EJA: o projeto nacional, o ajustamento social e a política educacional. A expressão projeto nacional evoca a marca do engajamento geral de todos os indivíduos, grupos e segmentos sociais comprometidos com o desenvolvimento nacional. Por sua vez, o ajustamento social indica uma perspectiva de adaptação dos indivíduos ao contexto nacional, ao mesmo tempo em que se buscam sanar os “distúrbios sociais”. Por fim, a política educacional diz respeito ao conjunto de ações institucionais articuladas que visam, a um só tempo, ao desenvolvimento humano, social e econômico.

No interstício dessas três séries enunciativas, aparece e circula o signo da cidadania, articulando e conferindo centralidade ao enunciado da efetivação do direito à educação. É nesse ínterim que a crítica emerge, apontando que o ajustamento social pressupõe uma harmonia sem sustentação, uma lógica de dominação e individualismo. Se o indivíduo deve ser educado para se ajustar às condições históricas dadas, o direito à educação torna-se algo questionável. Eis a contradição a que o signo da cidadania confere visibilidade.

2.1.1 Um projeto nacional

As organizações públicas, privadas, não governamentais, os movimentos sociais, os indivíduos, enfim, todos os cidadãos brasileiros são posicionados, nessa ordem do discurso, como corresponsáveis pela EJA. Junto com esses setores, o Estado brasileiro se configura

como uma agência que teria o papel de convocar e avaliar a ação de cada uma dessas instâncias. Trata-se do discurso do “esforço nacional”, do “ato de patriotismo”, da “tarefa cívica”, da “responsabilidade social”, da “obrigação de cada brasileiro”. Isso se apoia no enunciado da efetivação do direito à educação. Nessa direção, o discurso sobre a EJA é vinculado ao projeto nacional, que promove “[...] um movimento nacional de mobilização de recursos de organizações públicas a particulares e de todos os indivíduos […] na implantação e no desenvolvimento da educação do adulto” (BEISIEGEL, 1974, p. 152).

Nessa ordem discursiva, existe um forte vínculo entre a questão da EJA e a da alfabetização, visto que essa ideia de “projeto nacional” determina que “ao cidadão alfabetizado cabe integrar-se ao programa, voluntariando-se nessa 'batalha'; ao restante, aqueles que dele irão se beneficiar, cabe, posteriormente, um retorno à sociedade” (MATENCIO, 1995, p. 258). Trata-se de um discurso marcado pela ideia de mutirão, conduzido pelo Estado, para que toda a nação brasileira possa vencer o problema do analfabetismo.

Assim, para que o Estado brasileiro pudesse efetivar o direito do jovem e do adulto à educação, o engajamento dos diversos segmentos sociais na causa da educação de adultos é circunscrito como um compromisso ético de cada instância brasileira. Trata-se de um plano de equalização social, uma “[...] forma pela qual se distribuem os bens sociais de modo a garantir uma redistribuição e alocação em vista de mais igualdade, consideradas as situações específicas” (BRASIL, 2000b, p. 10). Mesmo não sendo simples assumir uma responsabilidade dessa natureza, para esse discurso é necessário que a nação brasileira faça esse esforço “[...] em prol de uma igualdade de acesso à educação como bem social […]” necessária aos brasileiros que a ela não tiveram acesso (BRASIL, 2000b, p. 22).

Esse esforço nacional, frente à garantia do direito à educação, busca justificar-se na ideia de que “[...] devemos educá-los [os adultos] porque essa é a obra de defesa nacional […]” (PAIVA, 1987, p. 179). É o discurso que se posiciona a favor da própria preservação do Brasil como nação. Isso consiste em afirmar uma melhor qualidade de vida para todos os brasileiros. Tendo acesso à educação, a população vive melhor pois cuida mais da saúde, trabalha de modo mais eficaz, administra melhor o próprio lar contribuindo, portanto, para a melhoria da própria nação. Em suma, o discurso do projeto nacional do Estado brasileiro, de garantia do direito à educação, confere materialidade à “[...] integração do homem marginal nos problemas da vida cívica […]” próprios da nação (PAIVA, 1987, p. 184).

2.1.2 O ajustamento social

A série enunciativa do ajustamento social ao contexto nacional aciona noções como “ajuste” ou “adaptação” na composição desse discurso convocatório, marcado por signos como civilidade e patriotismo. Nessa perspectiva, afirma-se que, como a sociedade é harmônica, percebeu, diante de alguns eventuais distúrbios sociais, a necessidade de apoiar a educação destinada a adultos. Tudo isso com o objetivo de que o Brasil se tornasse “[...] mais homogêneo, mais coeso e mais solidário – para que cada homem ou mulher, melhor pudesse ajustar-se à vida social e às preocupações do bem-estar e do progresso social” (BEISIEGEL, 1974, p. 96).

Embora esse discurso pareça datado da metade do Século XX, ainda é objeto de contestação, crítica e negação no campo de domínio da EJA. As interdições aparecem à medida que esses enunciados posicionam a sociedade como um organismo sadio, harmônico e perfeito. À educação caberia a função de ajustar alguns indivíduos, que por algum tipo de infortúnio, não se adaptaram espontaneamente às condições vigentes. Uma das maiores críticas a isso reside na vinculação dessa série enunciativa de “ajuste social” a discursos dominadores, alienantes e desumanizantes. Em outras palavras, “quem atua sôbre (sic) os homens para doutriná-los, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores” (FREIRE, 1981, p. 99). O aspecto da imutabilidade da realidade é interditado por tal enunciado, não sendo os homens obrigados a se adaptarem a ela. Nesse campo de domínio, admite-se a possibilidade de as mulheres e os homens modificarem a realidade na hipótese de ela esmagar, oprimir, ou comprometer sua humanização.

Pensar o êxito da educação, a partir de sua capacidade de ajustar os indivíduos às condições sociais vigentes, com o “[...] incentivo ao esforço individual para vencer na vida […]” (PAIVA, 1987, p. 296), é mais um ponto interditado nos domínios da EJA. É preciso, além do signo da dominação, posicionar os seres de maneira passiva, para que eles se ajustem, promovendo valores com as marcas do individualismo e da competitividade. Ao identificar uma relação incompatível entre cidadania e dominação, o enunciado da EJA, no Curso de Pedagogia da UFPB/Campus I, revela as contradições presentes nesse discurso do “projeto nacional de educação de adultos”, que está alicerçado em artefatos como competitividade e individualismo.

2.1.3 A política educacional

As críticas à ideia de “ajustamento social” não interditam o discurso do desenvolvimento, seja ele econômico, social, humano, científico ou tecnológico. Isso pressupõe regras para o estabelecimento de estratégias de equalização social através de algumas “[...] conexões entre a educação de adultos e o processo de desenvolvimento […]” (BEISIEGEL, 1974, p. 1). Acerca dessa questão, alguns discursos internacionais afirmam que “é de fundamental importância a contribuição da educação de adultos […] para o desenvolvimento socioeconômico, […] [e também] para a diminuição da pobreza […]”. (SESI/UNESCO, 1999, p. 20).

Nessa ordem discursiva, as políticas educacionais, voltadas aos jovens e adultos, devem primar por objetivos que desenvolvam a “[...] capacidade de lidar com as transformações que ocorrem na economia […]” como também no próprio modelo econômico e de mercado. (SESI/UNESCO, 1999, p. 2). Essas políticas devem enfatizar estratégias para que a EJA aumente “[...] significativamente a criatividade e a produtividade, transformando-as numa condição indispensável para se enfrentar os complexos problemas de um mundo caracterizado por rápidas transformações e crescente complexidade e riscos” (SESI/UNESCO, 1999, 22).

Essa relação enunciativa entre políticas educacionais e equalização social ajuda a sustentar “[...] a hipótese de que a educação é uma condição não apenas necessária, mas também suficiente para a resolução dos problemas sociais enfrentados no país” (MATENCIO, 1995, p. 246). Esse discurso pressupõe a necessidade de a EJA transcender os “[...] gabinetes de Ministérios de Educação: todos os Ministérios devem estar envolvidos na promoção da educação de adultos e, para tanto, a cooperação interministerial é imprescindível”. (SESI/UNESCO, 1999, p. 21).

Em suma, essa série enunciativa contempla a defesa das políticas conjuntas, vinculadas ao imperativo ético de humanização e da garantia dos demais direitos sociais. Isso compõe o enunciado do desenvolvimento em diversas esferas. Em última análise, trata-se de pensar na garantia do direito à educação como um dos pressupostos do desenvolvimento humano. Como correlato oposto ao signo do desenvolvimento, há o subdesenvolvimento, que “[...] está ligado ao problema da dependência, […]. A tarefa de superar tal situação, que é uma totalidade, por outra, a do desenvolvimento […]” é a de superar o problema da dependência e da dominação (FREIRE, 1981, p. 111-112). No âmbito da EJA, trata-se de superar, primeiramente, a dominação interna, para, depois, operar externamente. É por essas razões

que uma política pública de EJA, como um direito atrelado à questão do desenvolvimento favorece a construção de um projeto nacional de superação das próprias relações de dominação, internas ao país.

Pensar a EJA como um projeto restrito a um momento histórico ou, ainda, como um rápido momento da vida dos indivíduos, uma escolarização aligeirada consiste em um discurso alicerçado na ideia de que só é possível “[...] começar-se a formação muito cedo, pois não deve passar-se a vida a aprender, mas a fazer” (COMENIUS, 2001, p. 50). Esse tipo de enunciado interditou, por muito tempo, noções que vislumbravam o dever do Estado de assumir a EJA como “educação permanente”. A UNESCO, em contraposição a esse raciocínio, propõe que a educação “[...] não pode continuar a definir-se em relação a um período particular da vida […] [é necessário] aprender durante toda a vida e uns saberes penetram e enriquecem os outros” (BRASIL, 2000b, p. 11). Nesse espírito, é defendido na V CONFINTEA que

o reconhecimento do 'Direito à Educação' e do 'Direito a Aprender por Toda a Vida16' é, mais do que nunca, uma necessidade: é o direito de ler e de

escrever; de questionar e de analisar; de ter acesso a recursos e de desenvolver e praticar habilidades e competências individuais e coletivas (SESI/UNESCO, 1999, p. 23).

Todavia, uma das regras de constituição e funcionamento desse discurso torna indispensável que tal reconhecimento seja “[...] acompanhado de medidas que garantam as condições necessárias para o exercício desse direito” (SESI/UNESCO, 1999, p. 21). A capacidade de aprender não deixa de existir em determinado momento da vida. Como está posto mais à frente, é diante do deslocamento enunciativo acerca da passagem da ideia da educação restrita à infância, para ser pensada ao longo da vida, que a EJA se institucionaliza. Como discurso ela assume características particulares. É o que o tópico seguinte demonstra.