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A cultura da compressão e da informação descompromissada

4. RECEPÇÃO NA CULTURA DIGITAL

4.2 Cultura do download

4.2.3 A cultura da compressão e da informação descompromissada

Outro aspecto importante do fenômeno do descarregamento de arquivos diz respeito à cultura da compressão e da informação descompromissada. A popularização do download tem, entre tantas, também uma justificativa de cunho tecnológico. Seu sucesso está ligado à rapidez com que os processos de carregamento e descarregamento de arquivos se dão. Na cultura das mídias, a cópia de um material original para suportes como fita K7 e fita de vídeo se realizava em tempo real. Um filme de 80 minutos levava o mesmo tempo para ser copiado. As novas tecnologias digitais aceleraram este processo, permitindo velocidade maior de cópia. Com isso, a quantidade de cópias também aumentou, pois se perde menos tempo para fazê-las. Como, conceitualmente, cada download é uma cópia, na medida em que o arquivo “baixado” não deixa de estar no lugar virtual de origem, a maior velocidade também propiciou o estouro da febre do descarregamento. No caso, a otimização do processo acontece porque os arquivos digitais podem ser alterados para permitir maior velocidade de tráfego pelas redes. A alteração

se dá em seu tamanho, medido em bytes (B), kilobytes (KB), megabytes (MB) e gigabytes (GB). Quanto maior é um arquivo, mais informações contém, porém é menor sua velocidade de tráfego e de cópia. Arquivos pequenos, como fotos ou áudios de curta duração, podem ser copiados rapidamente, mas arquivos médios, como músicas e slides, e grandes, como um disco inteiro, animações e filmes, demoram mais tempo para serem copiados. A solução adotada pela indústria da tecnologia foi a compressão de arquivos. Através de programas especializados, como WinZip e WinRar, é possível diminuir os tamanhos dos arquivos sem alterar seu conteúdo. Uma música de 5 minutos possui, em tamanho normal, cerca de 30MB, o que faz com que ocupe espaço de tamanho semelhante de um disco rígido. Compactada, ela passa a ter 3MB, ou seja, passa a ocupar espaço 10 vezes menor. Ocupando menos espaço, sobra mais para que outras músicas possam ser armazenadas. Assim, a compressão de arquivos beneficia a prática do download, pois sugere que o usuário pode “baixar” mais arquivos que vão ocupar menos espaço do que ocupariam caso continuassem não- comprimidos. Mas a cultura da compressão tem um preço: os arquivos comprimidos perdem qualidade em relação aos não-comprimidos. Por outro lado, uma vez definida a compressão, a qualidade apresentada jamais sofrerá perdas ou interrupções.

Por fim, o ininterrupto fluxo de arquivos via compartilhamento nas redes digitais, resultado das potencialidades hipermidiáticas promovidas pela Internet e usufruídas pelo receptor, é acompanhado por um também incessante trânsito de informações. Os arquivos são nomeados, descritos e conceituados pelos mesmos sujeitos que disponibilizam músicas, livros e filmes nos ambientes virtuais. Esses sujeitos não são necessariamente especialistas nas áreas nas quais os produtos que postou se originaram. O fato de disponibilizar uma música na rede não faz do usuário um conhecedor de música, mas quando ele nomeia e descreve o arquivo que acabou de compartilhar, ele produz e dissemina informações. O fato de a cultura digital fazer de todo usuário um produtor de informações traz pelo menos duas consequências. A primeira é a de que os receptores estão, de fato, cada vez mais ativos, dirigindo e controlando conteúdos em detrimento do poder histórico da indústria do entretenimento, seja ela cinematográfica, televisiva ou fonográfica. Jenkins (2009: 45) chega a afirmar que as pessoas estão assumindo o controle das mídias. A segunda consequência, no entanto, é a de que os receptores estão dirigindo e controlando conteúdos sem a excelência e o rigor de tais indústrias. A crítica à mercantilização e à padronização da cultura promovida pela indústria cultural pode ser legítima, mas não pode ser aplicada à sua constante preocupação com sua qualidade técnica (no sentido de qualidade de impressão, de vídeo ou de áudio) e informativa.

A indústria vê os produtos como negócio e, como tal, como algo que não pode apresentar falhas. O produto cultural industrializado é, nesse sentido, perfeito. Exemplares defeituosos de um livro ou um disco são raríssimos e, quando detectados, imediatamente removidos do mercado. As falhas significariam baque na credibilidade e na eficiência e, por isso, poriam em risco o negócio como um todo. Então, raramente acontecem. Assim, o receptor do produto cultural industrializado praticamente não corre riscos de estar diante de informação não checada, dados incorretos e conteúdo defeituoso. Já o receptor do produto disponível nas redes, pela iniciativa de usuários solidários que compartilham informação, não pode ter a mesma certeza. Nada garante a exatidão do que é postado. Não é incomum que a grafia de um compositor ou de um escritor varie dependendo do site, bem como seus dados biográficos, principais obras, etc. Quando se acessa o site www.musica.com.br, por exemplo, encontra-se, entre as letras dos Beatles, a música Let’s twist again, de Chubby Checker. O que poderia soar como novidade informativa (uma gravação rara dos Beatles deste sucesso dos anos 1950) é logo desfeito, pois não há registros de que o quarteto inglês tenha gravado, algum dia, essa canção. Ao lado da letra, há um vídeo correspondente – fazendo jus ao caráter multimidiático da Internet. Mais uma vez, se poderia pensar em alguma novidade, um vídeo raro dos Beatles tocando essa música, mas o conteúdo é um clipe caseiro com imagens aleatórias dos Fab Four e o áudio de Let’s twist again original, na voz de Chubby Checker! Ou seja, historicamente, não há relação existente entre essa música e os Beatles, mas o usuário a inventa quando cria o vídeo, posta na Internet e descreve a página como “Let‟s twist again – The Beatles”. O problema desta “criatividade” vai além do fato de que os direitos autorais de Chubby Checker são desrespeitados quando se “baixam” a música e o vídeo, ou do fato de que alguém pode deixar de comprar o disco para “baixar” a música de graça. Situa-se especialmente no fato de que a produção deste “conhecimento” cria uma informação com valor de verdade, para a atual e as futuras gerações, que não se sustenta. Para os visitantes deste site, não só os Beatles gravaram Let’s twist again – o que jamais aconteceu - como tal “gravação” pode ser provada.

O conteúdo gratuito e produzido pelo usuário gerado e exaltado pela revolução da Web 2.051 está dizimando as fileiras de nossos guardiães da cultura, à medida que críticos, jornalistas, editores, músicos e cineastas profissionais e outros fornecedores de informação especializada estão sendo substituídos (...) por blogueiros amadores, críticos banais, cineastas caseiros e músicos que gravam no sótão. (...) Pois a consequência real da revolução da Web 2.0 é menos cultura, menos notícias confiáveis e um caos de informação inútil (KEEN, 2009: 20)

Dessa forma, a construção coletiva da informação, por meio da iniciativa de usuários diversos, subverte o paradigma da confiança que, durante gerações, consistiu no esteio da modernidade. Admitindo-se a indústria cultural como engrenagem cujas peças precisam funcionar à perfeição, ao modo das demais indústrias, pois o objetivo do lucro será alcançando quanto menos falhas apresentarem todos os processos envolvidos (busca da matéria-prima, produção, estudo de mercado, estratégias de divulgação, vendas e investimento), compará-la com a cultura digital e suas imperfeições suscita reflexões no sentido de descobrir até que ponto o caráter universal e democrático da digitalização contribui para a construção do conhecimento ou para apenas esboços. A modernidade foi pautada pela relação de confiança entre as pessoas, entendendo confiança aqui não no sentido da honestidade e do caráter, mas no sentido de se acreditar nos sistemas estabelecidos e nos princípios elencados como verdadeiros. Anthony Giddens dá um exemplo de confiança quando diz: “conheço muito pouco os códigos de conhecimento usados pelo arquiteto e pelo construtor no projeto e na construção da casa, mas não obstante tenho „fé‟ no que eles fizeram” (GIDDENS, 1991: 35). Os equipamentos da modernidade como, por exemplo, a geladeira, o fogão, a máquina de lavar roupa, o carro e o avião geram nos consumidores sensação semelhante. Apesar de os acidentes serem possíveis, o consumidor dificilmente desenvolve o hábito de, ao comprar um carro novo, checar na concessionária se o freio está funcionando ou se a regulagem dos bancos está em perfeito estado. Há, implícita, uma confiança de que tudo está em ordem. A modernidade é o ambiente do progresso da técnica, da vitória da razão, do estabelecimento das verdades, do fim das ambiguidades, do triunfo da eficiência. Por isso, é a época da confiança no conhecimento especializado. Giddens relaciona o sentimento de confiança ao que chama de sistemas peritos, que são “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje” (GIDDENS, 1991: 35). Diante da confiança nos sistemas peritos, as pessoas

51 Termo criado em 2004 pela empresa norte-americana O‟Reilly Media para designar a Internet a partir do momento em que os mecanismos de interatividade (como as redes sociais, os fóruns de discussão, as enquetes, etc.) foram otimizados. Não se trata de inovação tecnológica, mas de possibilidades de interação do usuário com as plataformas digitais disponíveis.

acostumaram-se a acreditar que tais sistemas funcionem como se espera que o façam. Assim, o exemplo da compra do carro pode ser aplicado à compra de bens culturais. A indústria cultural é um sistema perito. Se a resenha do filme diz que a obra é comédia, o espectador compra o ingresso predisposto a assistir a uma comédia. E, via de regra, sua expectativa é atendida. O ouvinte musical acredita que as informações da ficha técnica do disco são verdadeiras simplesmente porque confia na perícia da indústria. É pouco provável que, ao comprar um disco, o consumidor telefone para a gravadora para se certificar se os nomes das músicas são aqueles mesmos ou se a grafia dos compositores está correta.

A cultura digital ainda corre atrás dessa eficiência. Se a linguagem binária garante a durabilidade dos arquivos e evita o desgaste em função do tempo, ela pouco pode fazer para evitar o caos informativo que pode proporcionar. Acostumado com os sistemas peritos que o rodeiam, o homem moderno encara a cultura digital com a mesma predisposição de confiar, mas freqüentemente se depara com situações de falhas no sistema, que podem se dar não somente no nível das informações, mas em situações como travamento das máquinas e lentidão das operações sem explicação aparente. Toda rede social como blogs, Twitter, Facebook, MySpace, etc. e todo site de compartilhamento de arquivos são ambientes de criação coletiva de informação. A Wikipedia é símbolo dessa possibilidade, ao se apresentar como “a enciclopédia livre que qualquer pessoa pode editar” (KEEN, 2009: 39). No entanto, os verbetes muitas vezes são descritos por explicações simplórias, redigidas para alcançar fácil compreensão. O verbete “reator nuclear”, por exemplo, não é descrito necessariamente por um físico, mas por qualquer pessoa que queira descrevê-lo. A Wikipedia “constantemente leva as pessoas a se equivocarem, e elas pensam, bem, se isto é uma enciclopédia, por que não posso... confiar nela?” (POE apud KEEN, 2009: 41).A resposta talvez esteja na história de Essjay, ávido colaborador da Wikipedia, que revelou à revista The New Yorker, em março de 2007, ter editado milhares de verbetes sob falsa identidade. Seu perfil na Wikipedia o apresentava como professor titular de teologia com quatro diplomas acadêmicos, mas, na verdade, ele era um rapaz de 24 anos, chamado Ryan Jordan, com apenas o ensino médio completo (KEEN, 2009: 42).

As contradições entre o potencial criativo e democrático das redes e a emergência de fraudes e imprecisões caracterizam a era digital tão quanto a desmaterialização dos suportes tradicionais como filmes, livros, fotos e discos e sua recolocação no universo virtual como arquivos de computador. A música, especialmente, tem obedecido cada vez mais a essa dinâmica, em função da proliferação dos uploads e downloads e do uso cada vez mais

contínuo de celulares, smartphones, notebooks e outros aparatos capazes de lidar com tais arquivos. No próximo capítulo, será destacada a música desmaterializada em relação aos seguintes aspectos: os formatos mais conhecidos, o impacto da desmaterialização musical na indústria fonográfica, os discursos legitimadores da música desmaterializada e a música desmaterializada no cenário da modernidade tardia.