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A desmaterialização no cenário da modernidade tardia

5. A DESMATERIALIZAÇÃO DA MÚSICA

5.2 A crise da indústria fonográfica: mito ou realidade

5.2.3 A desmaterialização no cenário da modernidade tardia

A admissão de que a era cultural vivida na contemporaneidade é baseada na digitalização dos mais diversos processos tem motivado alguns pensadores a compreender a cultura digital em uma dimensão “subjetiva, profética ou maravilhosa” (RÜDIGER, 2007: 97). Tem sido recorrente compreender a Internet e as redes como modelos de uma nova ordem capaz de “satisfazer uma das mais consideráveis demandas latentes na sociedade: a demanda por livre expressão interativa e pela criação autônoma” (CASTELLS apud RÜDIGER, 2007: 78). As tecnologias da informação ensejariam o surgimento de novo paradigma de sociedade, a “sociedade da informação”, cujos princípios seriam o da interatividade e o da circulação, em contraposição à “sociedade industrial”, baseada na unilateralidade e na acumulação. De maneira otimista, “o ciberespaço é o cenário involuntário de uma revolução social, através da qual, no caso em foco, uma economia baseada no dom e na livre troca se superpõe à troca mercantil e ao espírito empresarial” (RÜDIGER, 2007: 99). Tais concepções tentam assegurar, portanto, o fim da modernidade, enquanto “estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII” (GIDDENS, 1991: 11), e a emergência de uma pós-modernidade, multifacetada, democrática, inclusiva, experimental, interativa e saudavelmente anárquica, baseada na informação gerada de todos para todos, sem intermediários. No entanto, o que Pierre Levy (apud RÜDIGER, 2007: 100-101) chama de “voz fraternal de nossos semelhantes” e “letras vivas, luminosas, que dialogam ao infinito no texto sagrado do espírito humano”, pela formação de uma “inteligência coletiva” via ciberespaço, tem sido desmentido pelos fatos, que revelam o crescente controle e exploração do espaço virtual pelo poder econômico organizado. O YouTube, como exemplo, tem sido utilizado cada vez mais como veículo publicitário, a serviço de interesses privados. Grandes empresas de comunicação, como a Warner, utilizam canais do YouTube para vender produtos. O problema é que, aos olhos do usuário, muitas vezes os conteúdos amadores e os publicitários não são claramente distinguíveis. “Numa mídia sem guardiães, em que a verdadeira identidade das pessoas está muitas vezes oculta ou disfarçada, quem é realmente fortalecido são as grandes empresas com grandes orçamentos para publicidade” (KEEN, 2009:90).

Dessa forma, convém questionar até que ponto emergiu de fato uma nova sociedade, baseada nas tecnologias da informação e na liberdade do usuário, ou, pelo contrário, as contradições da modernidade chegaram a ponto tão latente que merecem, mais do que nunca,

mais atenção das ciências sociais. Fredric Jameson até admite que se vive em um “pós- modernismo”, mas que ele, ao contrário de ser superação do modernismo, é, na verdade, a condição cultural do capitalismo contemporâneo – o capitalismo tardio. Ou seja, o uso do termo é legítimo, desde que não se perca de vista a natureza conflituosa que ele ressalta. “Com relação a pós-modernismo (...) vou argumentar que, por bem ou por mal, não podemos não usá-lo. Mas esse argumento implica, ainda, que toda vez que empregamos esse termo somos obrigados a recolocar essas contradições internas e a reapresentar esses dilemas e essas inconsistências de representação” (JAMESON, 2007: 25). Jameson (2007: 61) sustenta que “o desenvolvimento tecnológico é (...) um resultado do desenvolvimento do capital, em vez de uma instância determinante em si mesma”. Isso significa que a esperança das redes livres e da autonomia plena do usuário se contradiz com a realidade do mercado incorporador de conteúdos, dos custos de acesso e da convivência com um sistema ainda não perito. De modo que, para Giddens,

não basta meramente inventar novos termos, como pós-modernidade e o resto. Ao invés disso, temos que olhar novamente para a natureza da própria modernidade a qual, por certas razões bem específicas, tem sido insuficientemente abrangida, até agora, pelas ciências sociais. Em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as consequências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes (GIDDENS, 1991: 12-13).

Este período, a modernidade tardia, é compreendido como o estágio atual do capitalismo, marcado pela transnacionalização das empresas, a adoção do dinheiro virtual e da especulação, através de nova dinâmica de transações bancárias, o desenvolvimento das mídias telemáticas, da cultura da convergência e da automação e a fuga da produção para áreas desenvolvidas do Terceiro Mundo. O desenvolvimento tecnológico está imerso nessa realidade, através do investimento de empresas de hardware e software, que inclusive possuem ações nas bolsas de valores, do marketing de lançamentos cada vez mais rápidos (sistemas operacionais, celulares, smartphones, tablets sucedem-se no mercado em atualizações tecnológicas frequentes em busca do consumidor ávido por novidades) e da oferta de acessos a preços pretensamente menores, com o objetivo de popularizar a cultura digital. A rigor, a Internet não é gratuita. O usuário precisa ter um aparelho que a acesse e conta em um provedor. A Internet pode ser gratuita para o usuário em redes públicas subvencionadas pelo governo, mas elas não estão disponíveis 24 horas por dia e dependem de manutenção e segurança que muitas vezes a lentidão da burocracia oficial não podem

oferecer. Como salienta Martín-Barbero (2009:118), “nem todo novo é alternativo à cultura dominante nem para ela funcional”. Evidentemente, o caráter aberto e plural da grande rede faz com que o controle jamais possa ser exercido de forma plena por qualquer tipo de instância. É certo que “a capacidade da rede é tal que a maior parte do processo de comunicação era, e ainda é, grandemente espontâneo, não-organizado e diversificado na finalidade e adesão” (CASTELLS apud SANTAELLA, 2003: 75). Mas o ciberespaço ainda não inaugurou uma era emancipadora. Boaventura de Sousa Santos, ao levantar os desafios da sociologia para compreender as contradições da contemporaneidade, alerta que, se por um lado, as relações sociais parecem cada vez mais desterritorializadas, uma que vez as redes proporcionam ressignificação do tempo e do espaço, por outro, “assiste-se a um desabrochar de novas identidades regionais e locais alicerçadas numa revalorização do direito às raízes”, culminando com o questionamento: “será que esta dialética de territorialização/desterritorialização faz esquecer as velhas opressões?” (SANTOS, B.S., 1999: 22).

Mesmo diante do uso em si do computador conectado às redes, abstraindo as contradições econômicas, a liberdade pode ser relativa. Jean Baudrillard, citado por Rüdiger (2007: 114), alerta que

A Internet apenas simula um espaço de liberdade e de descoberta. O operador apenas interage com elementos conhecidos, os sites estabelecidos, os códigos instituídos. Nada existe para além desses parâmetros de busca. Toda pergunta encontra-se atrelada a uma resposta preestabelecida. Encarnamos, ao mesmo tempo, a interrogação automática e a resposta automática da máquina. Eis o êxtase da comunicação.

Da mesma forma, os laços cada vez mais intrincados que formam as redes telemáticas, em que não se identificam mais pontos de partida e de chegada, podem tornar os internautas náufragos, uma vez que “absorvido o tempo numa simultaneidade paralisante, também o espaço se recorta até que toda viagem se torne „viagem a lugar nenhum‟ (...) no sem-sentido de quem tem que avançar sem saber para onde se encaminhar” (TAPIAS, 2006: 8).

Marcada pela mundialização, a modernidade tardia se apresenta como palco da diversidade, da segmentação e da pluralidade, mas elas se manifestam em micro-espaços autônomos que não deixam de ser subservientes à norma geral (DIAS, M.T. 2008:53). Assim, a consolidação da digitalização e de seus fenômenos consequentes, como a música desmaterializada, deve ser contextualizada para que se percebam as contradições que a cultura digital faz emergir. A principal hipótese que deve ser considerada é a de que há fragilidade no

discurso que vê na desmaterialização da música uma espécie de vetor da autonomia plena de um consumidor musical “livre” da indústria fonográfica ou de qualquer resquício de um processo mercantilista semelhante.

A proliferação de CDs e DVDs caseiros vendidos a baixos preços em bancas informais e a existência dos sites que oferecem download gratuito de músicas, vídeos e fotos, mas que cobram taxas para disponibilizar descarregamento mais rápido, demonstram a emergência de uma indústria paralela ligada ao comércio musical. Em outras palavras, o receptor, ao optar pela música desmaterializada, muitas vezes troca uma indústria organizada e legalizada, que investe milhões em estúdios de ponta e estratégias de divulgação, embora ofereça porcentagens ínfimas de retorno para os artistas, por outra que também investe, mas cujo retorno não é necessariamente contabilizado em prol da cadeia produtiva da música (descoberta de talentos, gravações, divulgação, produção de shows). E o consumidor está pagando por isso, nos dois casos. Há argumentos que defendem que a proliferação das redes de distribuição de forma ambulante e dos sites de download força a indústria fonográfica a reduzir o preço dos discos, o que seria benéfico para o mercado musical. No entanto, o preço dos discos nunca foi necessariamente problema, caso contrário as pessoas não teriam adquirido o hábito de comprá-los por tantas décadas antes da digitalização. Além disso, a redução do preço do produto final significa a redução do investimento, o que, no fim das contas, é prejudicial também ao artista. O mercado extra-oficial de músicas “ajuda a inviabilizar o comércio especializado, potencialmente capaz de apresentar ao consumidor opções alternativas de compra” (VICENTE, 2009: 160).

Ultimamente, tem sido comum grandes empresas como Natura, Oi, Vivo, Petrobrás e Itaú financiarem CDs e DVDs de artistas brasileiros. Mais uma vez, o que ocorre é apenas troca dos sujeitos promotores da cultura – de gravadoras para empresas de outros ramos profissionais – mas a lógica industrial permanece a mesma. “O selo [Oi Música] foi criado não só por uma questão de marca, mas também para dar retorno financeiro, movimentar o mercado e gerar rentabilidade para a Oi, com a venda de downloads”, como explica Roberto Guenzburguer, diretor de Produtos e Mobilidade da operadora (LICHOTE e REIS, 2012).

Ter acesso à música desmaterializada é, portanto, um processo que envolve custos. Da compra de um simples aparelho celular até a assinatura do mais caro pacote de Internet, que possibilita alta velocidade de processamento e, desta forma, de um download de arquivos de forma mais rápida, pertencer como sujeito ativo da cultura digital não deixa de significar uma participação na velha lei da oferta e da procura.