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3. CULTURA DA CONGESTÃO

3.1. A cultura da congestão, ou a formação do urbano?

Primeiramente, é necessário afirmar o entendimento de que grande parte do que Koolhaas percebe na congestão dialoga em muito com o que Lefebvre apresenta a respeito da formação do urbano. Dessa maneira, inicia-se este capítulo abordando a forma como ambos os autores atestam o fim da cidade; como enxergam o potencial aglutinador da congestão (ou do urbano); e como se colocam a respeito de centralidade e identidade.

Em O direito à cidade e em A revolução urbana, o filósofo francês conceitua o que chama de problemática urbana, por meio da observação e análise do processo de desenvolvimento da cidade e da sociedade como um todo que, a partir da transição da industrialização para a urbanização, se confunde com o processo de transformações do próprio capitalismo. O autor observa assim a formação do que denomina o urbano, entendendo que, durante esse processo (que ainda não está finalizado e não necessariamente o será), a cidade foi e continua sendo profundamente alterada, deixando de ser apenas cenário no qual o homem

realizava sua obra e passando a ser, também, a própria obra. Para o filósofo, o urbano se forma dialeticamente, numa relação do espaço com o homem, que se alteram e se constroem um ao outro, mutuamente. Advindo desse processo, estaria em formação o que Lefebvre denomina por sociedade urbana.

Um primeiro ponto de confluência a se destacar entre Lefebvre e Koolhaas é a percepção de que a cidade estaria chegando ao seu fim, para dar lugar a outra coisa. Conforme tratado no capítulo anterior, na construção do pensamento de Koolhaas, uma vez que a cidade aceita a sua condição metropolitana de ser, a hiperdensidade (ou a congestão), tem-se início um processo de transformação que trará um fim inevitável à cidade. O autor chega a afirmar isso, quando fala que “A Cidade Genérica é a pós-cidade que se está a preparar no lugar da ex- cidade.” (KOOLHAAS, 2010, p.42). Lefebvre (2008) também expõe esse entendimento ao apresentar um eixo de transformação, que vai da ausência de urbanização à sua totalidade, ao longo do qual há o surgimento da cidade e suas transformações (a cidade política; a comercial; e a industrial). Em seguida, próximo ao final do referido eixo, há o que o filósofo denomina de

ponto crítico, no qual ocorre o fenômeno da implosão-explosão da cidade tradicional. O urbano

seria justamente o que viria depois desse fenômeno, ou seja, algo também posterior à cidade. Ainda neste ponto, destaca-se o último tópico (denominado Fim) do ensaio A

cidade genérica, no qual Koolhaas narra uma cena cinematográfica que representa o fim da

cidade:

Uma cena de mercado: da esquerda para a direita, figurantes vestidos com trapos de cores vivas, peles e túnicas de seda entram na imagem a gritar, gesticulando, revirando os olhos, iniciando brigas, rindo, coçando as barbas, com os postiços pingando cola, apinhando-se no centro da imagem, agitando varapaus e punhos, derrubando bancas, pisando animais.. As pessoas gritam. Vendendo mercadorias? Anunciando futuros? Invocando os deuses? Bolsas são roubadas, criminosos são perseguidos (ou ajudados?) pela multidão. Os sacerdotes rezam e pedem calma. As crianças correm como loucas por entre uma floresta de pernas e túnicas. Animais berram. Estátuas caem. As mulheres gritam - ameaçadas? Exaltadas? A multidão agitada torna-se oceânica. As ondas rebentam. Agora cortamos o som - silêncio, um alívio abençoado - e fazemos rodar o filme para trás. Os homens e as mulheres, agora mudos mas visivelmente agitados, retrocedem aos tropeções: o observador já não registra apenas seres humanos, mas começa a notar os espaços entre eles. O centro esvazia-se; as últimas sombras saem do enquadramento da imagem, provavelmente queixando-se, mas felizmente não os ouvimos. Agora o silêncio é reforçado pelo vazio: a imagem mostra tendas vazias, alguns restos de lixo pisado. Que alívio... Está terminado. Esta é a história da cidade. A cidade já não existe. Agora já podemos sair do cinema... (KOOLHAAS, 2010, p.64-65).

O quanto a narrativa acima difere da implosão-explosão de Lefebvre? Entende- se que muito pouco. O filósofo afirma o poder aglutinador do urbano, que atrai tudo para si até o ponto em que explode a cidade, o que possibilitará sua plena efetivação. No paralelo aqui proposto com a narrativa de Koolhaas, a implosão-explosão de Lefebvre é representada pelo corte do som na cena do mercado. A partir dela, o fim da cidade é iminente.

No entanto, é preciso relembrar o contexto total que não apenas o tópico destacado, mas o ensaio como um todo está inserido, para ampliarmos a relação com o que Lefebvre conceitua a respeito do urbano, entendendo que o fim anunciado por ambos os autores não é absoluto, mas apenas o fim de uma realidade, que dará lugar a outra. Koolhaas observa a congestão surgir em Manhattan e ganhar força até o ponto de engolir a cidade no arranha-céu; transformar-se em bigness e se espalhar pelo mundo, acabando com o que entendíamos por cidade e dando origem à cidade genérica. Nela, não há mais o teatro coletivo, mas sim a

evacuação do domínio público. Para o autor este é o fim da cidade, mas é também o que se está a preparar em seu lugar. Ou seja, Koolhaas entende que algo está por vir, mas não afirma

exatamente do que se trata.

Pode-se entender que junkspace seria a resposta, mas aqui há algumas questões: seria de fato junkspace o que teria vindo para ocupar o lugar da ex-cidade anunciado em A

cidade genérica? Ou junkspace teria sido resultado da intervenção de outro aspecto, a atividade

do consumo, no desenvolvimento então em curso da congestão? A decepção do arquiteto presente no ensaio Junkspace sugere essa segunda possibilidade. Seria porque a congestão teria falhado nesse sentido, ou porque o consumo teria se apoderado dela (ou mesmo a transformado)?

Volta-se a Lefebvre para dar suporte a tais questionamentos. Em primeiro lugar, ressalta-se que o filósofo sempre afirma o urbano como possível e, nesse sentido, a implosão- explosão indicada por ele apenas dá início à zona crítica. Outro ponto de grande relevância é que o urbano não se reduz a ideologias ou instituições, mas isso não quer dizer que ele é isento das ações por elas promovidas. Ou seja, em função do ponto em questão (qual seja: o que vem depois do fim da cidade), Lefebvre entende a zona crítica como um espaço-tempo de conflito entre antigas e novas, organizações, instituições, práticas, realidades:

O que se constitui é um espaço-tempo renovado, topologia distinta do espaço- tempo agrário (cíclico; que justapõe as particularidades locais), como do espaço-tempo industrial (que tende para a homogeneidade, para a unidade racional e planificada das coações). O espaço-tempo urbano, desde que não seja mais definido pela racionalidade industrial - por seu projeto de

homogeneidade - aparece como diferencial: cada lugar e cada momento não tendo existência senão num conjunto, pelos contrastes e oposições que o vinculam aos outros lugares e momentos, distinguindo-o. (LEFEBVRE, 2008, p.42).

Dessa forma, a efetivação do urbano não é garantida. O espaço-tempo urbano existente após o fenômeno da implosão-explosão é conflituoso e, sendo assim, permite inúmeras possibilidades. Retomando os questionamentos apresentados a respeito de junkspace, entende-se que a percepção exposta por Koolhaas no referido ensaio, extremamente contraditória, caótica e conflitante, está vinculada ao que se refere Lefebvre.

Ainda sobre esse espaço-tempo de conflito, é importante salientar que, no entendimento do filósofo francês, tal condição não é impeditiva à formação do urbano, senão o contrário: ele só será possível se for considerado (e efetivado) em sua plena e contraditória condição dialética de totalidade, a qual resulta e é resultado do potencial condensador que ele possui. Este potencial é apresentado aqui como mais um ponto de destaque no diálogo entre Koolhaas e Lefebvre, por entender que o raciocínio de ambos tem origem no poder aglutinador, convergente, que eles enxergam na cidade contemporânea. Dito isto, destaca-se que a forma com a qual se lida diante desse potencial também aproxima os dois autores, ao passo em que ambos criticam as abordagens que procuram contê-lo ou controlá-lo.

Ao longo de sua conceituação, Lefebvre afirma reiteradamente a capacidade condensadora e a natureza contraditória do urbano:

Esse espaço urbano é contradição concreta. O estudo de sua lógica e de suas propriedades formais condiz à análise dialética de suas contradições. O centro urbano é preenchido até a saturação; ele apodrece ou explode. Às vezes, invertendo seu sentido, ele organiza em torno de si o vazio, a raridade. Com mais frequência, ele supõe e propõe a concentração de tudo o que existe no mundo, na natureza, no cosmos: frutos da terra, produtos da indústria, obras humanas, objetos e instrumentos, atos e situações, signos e símbolos. (LEFEBVRE, 2008, p.44).

É justamente esse potencial condensador que dá início ao fenômeno de implosão-explosão, do qual poderá surgir o urbano. De maneira semelhante, Koolhaas enxerga na capacidade de atrair e impulsionar a hiperdensidade, a origem da cultura da congestão. Este é precisamente o novo paradigma observado pelo autor em Manhattan e apresentado em sua plenitude na cidade genérica, com sua apoteose do conceito de escolha múltipla. O que se aponta agora na presente discussão é algo que resulta dessa ação condensadora e sobre o qual ambos os autores também tratam, de maneiras semelhantes, porém distintas: a questão da

A respeito de centro e centralidade, Lefebvre é categórico:

Não existe cidade, nem realidade urbana, sem um centro [...] Por conseguinte, não se pode teoricamente deixar de defender a concentração urbana, com seus riscos de saturação, de desordem, e suas oportunidades de encontros, de informações, de convergências. Atacá-la, destruí-la, é próprio de um empirismo que, de antemão, destrói o pensamento. O centro só pode, pois, dispersar-se em centralidades parciais e móveis (policentralidade), cujas relações concretas determinam-se conjunturalmente. (LEFEBVRE, 2008, p.90-91).

Por outro lado, Koolhaas afirma a cidade genérica como libertada da clausura

do centro, posto que entende a centralidade como causadora de um ciclo destrutivo de dependência. No entanto, embora aparentemente haja uma enorme divergência entre o que

apontam os dois autores, é necessário entender como Koolhaas observa a questão da centralidade. Ao conceituar a cidade genérica, o autor destaca a identidade enquanto força

centralizadora e é precisamente ao se libertar do espartilho da identidade que a cidade genérica

afirma seu potencial. Essa é a premissa inicial para o referido ensaio, a partir da qual Koolhaas desenvolve toda a sua argumentação. No capítulo anterior já foi apontada a limitação na postura do autor em relação ao conceito de identidade, uma vez que o considera praticamente apenas em função de seu aspecto histórico. Volta-se a este ponto agora para abordar a relação entre identidade e centralidade existente na conceituação da cidade genérica e, dessa forma, ampliar a discussão junto ao que se destacou de Lefebvre.

A identidade enxergada por Koolhaas, da qual a cidade genérica se liberta, é única, fixa, singular. Ela impede transformações, combate a diversidade: Paris só se pode

tornar mais parisiense. Em assim sendo, a identidade se torna antagônica à congestão, pois esta

atrai tudo para si, e não apenas uma ou outra coisa. Nesse raciocínio, a identidade assume um caráter extremamente centralizador, criando as amarras que impedem a cidade de aceitar a congestão (a diversidade, o plural). É esta centralidade que o autor condena; à qual dirige a crítica exercida com o projeto para o Les Halles, por exemplo.

Dessa forma, entende-se que a centralidade tratada por Lefebvre, característica inerente ao urbano, é a mesma vista por Koolhaas na congestão. O arranha-céu, primeiro organismo plenamente gerado pela congestão, é capaz de concentrar em si uma enorme diversidade de usos (que podem não possuir qualquer relação uns com os outros); é capaz de se adaptar completamente para abrigar mais, novos e/ou distintos usos; é capaz de aceitar e absorver a congestão. Seria o arranha-céu (tal qual visto por Koolhaas em Nova York delirante) uma espécie de projeto piloto para o urbano? Um edifício do urbano? Lefebvre afirma que

O urbano, enquanto forma, trans-forma aquilo que reúne (concentra). [...] Ele reúne tudo, inclusive determinismos, as matérias e conteúdos heterogêneos, a ordem e a desordem anteriores. Aí compreendidos os conflitos, as comunicações e formas de comunicações preexistentes. Como forma que trans-forma, o urbano des-estrutura e re-estrutura seus elementos, as mensagens e códigos egressos do industrial e do agrário. (LEFEBVRE, 2008, p.156).

É assim que se entende que a centralidade é inerente ao urbano como o é à congestão. Neste ponto, a postura de Koolhaas com o projeto para o Les Halles torna-se mais simbólica, uma vez que ele defende a aceitação plena da congestão no coração de Paris. Este seria o único tipo de solução capaz de absorver e efetivar o caráter inato daquele local: a

centralidade.

É dessa forma que a presente pesquisa enxerga o diálogo existente entre Koolhaas e Lefebvre, em suas conceituações sobre o urbano e a congestão. No entanto, embora se afirme a proximidade entre os autores, entende-se que há ainda muito o que discutir. Sabe- se que Lefebvre conceitua o urbano num nível de profundidade teórica bem mais complexo do que o apresentado por Koolhaas e, portanto, seriam necessários ainda diversos questionamentos, recortes, ajustes e considerações para o aprofundamento desse diálogo. Neste ponto, reitera-se o papel do filósofo no presente trabalho, e que este tem foco na disciplina da arquitetura, em particular na relação entre edifício e cidade. Dessa maneira, uma vez considerado como Koolhaas enxerga a congestão, com o suporte de Lefebvre para que se amplie o contexto em relação à problemática urbana, aborda-se a seguir o que o arquiteto faz com esse entendimento. Qual o potencial visto por Koolhaas na arquitetura, para lidar com a congestão? De que maneira suas propostas, seus textos e seu pensamento como um todo podem influenciar na cidade e na sociedade? Que cotidiano uma arquitetura da congestão pode gerar?