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A cidade genérica e a sociedade burocrática de consumo dirigido

4. ATIVIDADE DO CONSUMO

4.2. A cidade genérica e a sociedade burocrática de consumo dirigido

Em A vida cotidiana no mundo moderno, publicado pela primeira vez em 1968, ao abordar o estudo do cotidiano, Lefebvre (1991b) apresenta o que denomina de sociedade

burocrática de consumo dirigido. Trata-se de uma sociedade devoradora, que ama o efêmero

e que se coloca num cotidiano bloqueado por si próprio num sistema de produção-consumo-

produção; uma sociedade que tem como objetivo e legitimação oficial a satisfação, alcançada

pelo consumo. Sobre esta atividade, o filósofo afirma que

O ato de consumir é um ato imaginário (portanto, fictício) tanto quanto um ato real (sendo o próprio "real" dividido em pressões e apropriações). Ele adquire então um aspecto metafórico (a felicidade em cada bocado, em cada erosão do objeto) e mentonímico (todo o consumo e toda a felicidade de consumir em cada objeto e em cada ato). Não seria grave se o consumo não se apresentasse a si mesmo como ato pleno, como atualidade, inteiro à parte, sem trapaça, sem ilusão. Consumo imaginário, consumo do imaginário - os textos de publicidade - e consumo real não têm fronteiras que os delimitem. (LEFEBVRE, 1991b, p.100).

A dualidade entre real e imaginário presente no consumo é apontada pelo autor para caracterizar a condição inescapável de mal-estar dessa sociedade, decorrente da ilusão de satisfação promovida pelo consumo. Ilusão esta que jamais será concretizada, pois a pretensa satisfação tem como consequência uma saturação, a qual é imediatamente renovada por uma nova versão da mesma necessidade inicial de satisfação por meio do consumo. Este ciclo é constituído também graças ao aspecto imaginário do consumo, o qual estabelece não apenas a mercadoria, mas também a sua imagem como objeto de desejo. Nessa dinâmica, a publicidade, apontada por Lefebvre como a poesia da Modernidade, assume imensa relevância, tornando-se

o primeiro dos bens de consumo. Para o autor, na sociedade burocrática de consumo dirigido,

“a publicidade ganha importância de uma ideologia. É a ideologia da mercadoria. Ela substitui o que foi filosofia, moral, religião, estética.” (LEFEBVRE, 1991b, p.117).

Entende-se que as considerações de Lefebvre sobre a cotidianidade da sociedade burocrática de consumo dirigido tratam do mesmo fenômeno abordado por Harvey em

Condição pós-moderna, em relação às transformações nas dinâmicas de espaço-tempo oriundas

da transição do fordismo para o capitalismo de acumulação flexível. Em busca da aceleração dos tempos de giro de capital, tais transformações alteraram substancialmente as relações de

trabalho, de produtividade e de consumo. A acentuação da volatilidade e da efemeridade generalizada (em produtos, técnicas e modos de produção, ideias e ideologias, entre outros), ao enfatizar a instantaneidade e a descartabilidade, resultou na dinâmica da sociedade do descarte, que mais do que jogar fora bens produzidos, “significa também ser capaz de atirar fora valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, apego a coisas, edifícios, lugares, pessoas e modos adquiridos de agir e ser.” (HARVEY, 2008, p.258). É neste contexto que a publicidade assume a relevância apontada por Lefebvre (1991b), no qual o cotidiano deixa de ser um campo deixado

à liberdade, à razão ou à bisbilhotice individuais e passa a ser ampla e profundamente

apropriado pelo capitalismo de acumulação flexível: “a obsolescência, ideologia e prática, encara o efêmero apenas como método para tornar o cotidiano rentável (LEFEBVRE, 1991b, p.91).

Antes de retomarmos as formulações apresentadas por Koolhaas, há ainda que se destacar outro aspecto nesse contexto de aceleração apresentado por Harvey:

Uma segunda tendência foi a passagem do consumo de bens para o consumo de serviços - não apenas serviços pessoais, comerciais, educacionais e de saúde, como também de diversão, de espetáculos, eventos e distrações. O "tempo de vida" desses serviços (uma visita a um museu, ir a um concerto de rock ou ao cinema, assistir a palestras ou frequentar clubes), embora difícil de estimar, é bem menor do que o de um automóvel ou de uma máquina de lavar. (HARVEY, 2008, p.258).

Essa passagem, que também transforma em consumo (o consumo tal qual apontado por Lefebvre, acima, com sua dualidade entre real e imaginário) não apenas produtos, mas hábitos e atividades, eleva a condição da cotidianidade da sociedade burocrática de consumo dirigido a outro nível: “a contragosto, o membro das classes médias pressente que na sociedade de consumo o consumidor é consumido. Não ele, em carne e osso, que continua tão livre quanto o proletário. Não ele, mas o seu tempo de viver”. (LEFEBVRE, 1991b, p.103). Ou seja, a necessidade permanentemente insaciável de consumir não apenas o produto, mas também a imagem do produto, é estendida também agora justamente a atividades que, a princípio, estariam fora da prisão cotidiana da dinâmica de produção do capitalismo de outrora. Não apenas o tempo de trabalho é apropriado pela dinâmica do capital, mas também o tempo (e as atividades, e a imagem das atividades) de lazer. Isto se soma ainda à flexibilização dos processos de trabalho, que confunde também os tempos (e as atividades) todos: descanso, trabalho, lazer, estudo, convívio e demais. Tudo passa a integrar um cotidiano aprisionador, programado pelo e para o consumo.

Entende-se que a conformação conjunta e complementar de considerações de Harvey e Lefebvre apresentada acima dialoga bastante com o contexto observado e relatado por Koolhaas. Inicialmente na cidade genérica, onde o autor afirma categoricamente o consumo como a única atividade pública existente, mas sobretudo no junkspace. A afirmação de Koolhaas de que o hotel, em substituição aos escritórios, seria o alojamento genérico da cidade

genérica, corrobora completamente com a efemeridade, com a flexibilização e mistura dos

tempos e atividades relatada por Harvey e Lefebvre. Para Koolhaas, as pessoas na cidade genérica estariam permanentemente em trânsito e não necessitariam de uma moradia fixa; nem de um trabalho ou lazer fixo. Dessa forma, não seria necessária (quiçá possível) a distinção entre esses espaços e atividades. As pessoas seriam então genéricas como o é toda e qualquer mercadoria (seja produto, seja atividade, seja imagem), todo e qualquer espaço. A efemeridade relatada por Harvey na sociedade do descarte é também explicitada por Koolhaas quando este afirma que a cidade genérica “é superficial – tal como um estúdio de Hollywood pode produzir uma nova identidade todas as manhãs de segunda-feira.” (KOOLHAAS, 2010, p.36). Caso se queira que a cidade assuma uma postura, identidade, conformidade ou dinâmica diferente, descarta-se o meio urbano então obsoleto, seu estilo de vida e seus citadinos, a fim de que se estabeleça um novo cenário, capaz de atender às novas demandas.

No entanto, relembra-se agora o apontamento feito por Koolhaas de que a cidade genérica é apenas o que se está a preparar para o que vem depois da cidade, ou seja, junkspace. Entende-se que é neste ensaio que o autor aborda de maneira direta a atividade do consumo, num contexto em que ela “é indiscutivelmente a última forma de atividade pública remanescente [substituindo] quase todos os aspectos da vida urbana”. (OMA, 2001, tradução nossa). É novamente visível o diálogo entre Harvey, Lefebvre e Koolhaas, quando este afirma que

Os murais costumavam mostrar ídolos; os módulos do [junkspace] estão dimensionados para mostrar marcas; os mitos podem partilhar-se, as marcas preservam a aura à mercê dos grupos de interesses. No [junkspace], as marcas desempenham o mesmo papel que os buracos negros no universo: são essências através das quais desaparece o significado... (KOOLHAAS, 2010, p.74-75).

Assim como afirmara Lefebvre, Koolhaas trata de colocar a publicidade (ou a ideologia da mercadoria) como substituta, da filosofia, da moral, da religião, da estética; ao mesmo tempo em que aponta a enorme importância da imagem, do signo, capaz de subjugar (e mesmo extinguir) o próprio significado.

Ao longo do exposto no ensaio Junkspace, são muitos os exemplos que corroboram o diálogo entre os referidos autores, os quais observam os efeitos de uma mesma realidade a respeito da atividade do consumo. Assim, aborda-se o referido ensaio no intuito de aprofundar a discussão aqui presente a respeito da dialética entre congestão e consumo (ou capitalismo e o urbano). No entanto, a abordagem a seguir retoma o foco da presente pesquisa, ao analisar qual o papel da arquitetura dentro desse contexto; como se configura a relação entre edifício e cidade, entre espaço e pessoas; que cotidiano causa e resulta de tudo isso. Se o consumo e a congestão se desenvolvem dialeticamente no processo urbano; se a atividade do consumo pode ser vista como uma dinâmica do capitalismo que impede (ou tenta impedir) a plena formação do urbano, que papel assumiria a arquitetura da congestão nesse cenário? A ela ainda caberia (ou seria possível) impulsionar o potencial aglutinador e gerador de infinitas possibilidades transformadoras do urbano?