• Nenhum resultado encontrado

A CULTURA NO CENÁRIO NACIONAL (2003-2010)

5 A ANÁLISE DE DOCUMENTOS E GESTÕES DE CULTURA

5.2 A CULTURA NO CENÁRIO NACIONAL (2003-2010)

A gestão de Gil (2003-2008) e Juca Ferreira (2008-2010) trouxe uma transformação radical nas bases como a política cultural vinha sendo feita no âmbito federal se considerarmos as premissas neoliberais que caracterizaram a gestão de Francisco Weffort (1995-2002) que, como diz Barbalho (2014, p. 188), apesar de ser longa caracterizou-se por uma ausência do poder público da cultura. A gestão de Weffort enfatizava o acesso aos recursos exclusivamente a partir as leis de incentivo como a Rouanet (Lei nº 8.313 de 23 de dezembro de 1991), a qual, como se sabe, funciona majoritariamente para o financiamento de artistas consagrados ou fundações culturais de bancos. Esse sistema fomentou a concentração de atividades culturais no eixo Rio-São Paulo, além de centralizar seus recursos em grandes eventos (RUBIM, 2010). Todo o período Weffort, de 1990 a 2002, é considerado como um grande ‘vácuo’ nas políticas culturais brasileiras fora do sistema de incentivo à cultura (CALABRE, 2009). A chegada do Governo Lula no poder marca portanto uma série de transformações sociais (SINGER, 2009; ANDERSON, 2011) que visam o desenvolvimento do país e também um período diferenciado no âmbito das políticas culturais, com a inclusão de uma noção mais estratégica e humanista de cultura, que tem como foco não construir apenas uma única imagem do que seria o Brasil, mas outrossim trazer à tona, a partir das políticas culturais, toda uma diversidade de manifestações socioculturais brasileira sobre a identidade da cultura brasileira (como destacaram SANTANA e ROCHA, 2012; RUBIM, 2011, entre outros), aproximando-se da compreensão antropológica

na qual cultura diz respeito à própria atividade simbólica cotidiana e está permeada no dia-a- dia de todos os cidadãos e cidadãs do Brasil. A primeira gestão, de Gil, caracteriza-se mesmo pela tentativa de presentificar a cultura para dentro do cotidiano, da esfera de vida e da ação cultural/artística do homem/mulher comum.

Cultura não no sentido das concepções acadêmicas ou dos ritos de uma “classe artístico-intelectual”. Mas em seu sentido pleno, antropológico. Como usina e conjunto de signos de cada comunidade e de toda a nação. Como eixo construtor de nossas identidades, construções continuadas que resultam dos encontros entre as múltiplas representações do sentir, do pensar e do fazer brasileiros (...) (GIL IN: ALMEIDA, ALBERNAZ e SIQUEIRA (orgs). 2013, p. 239)

Para Rubim, a gestão Gil-Juca enfrentou as ausências, o autoritarismo e a instabilidade com um redimensionamento do papel do próprio Ministério, criando dispositivos e políticas concretas de conexão da pasta da Cultura com segmentos até então desconhecidos da política governamental.

Ela abriu as fronteiras do ministério para outras modalidades de cultura: populares; afro-brasileiras; indígenas; de gênero; de orientações sexuais; das periferias; audiovisuais; digitais etc. (BRASIL, 2005, 2006). Diversas políticas e atividades desenvolvidas tornaram-se emblemáticas neste cenário. Iniciativas da Secretaria de Identidade e Diversidade Cultural atenderam as culturas populares, indígenas e ciganas. (AMORIM, 2013) A Secretaria do Audiovisual chegou às pequenas cidades brasileiras através do Revelando Brasis e com o DOC-TV ela articulou televisões públicas de todo país, além de interagir com alguns países da América Latina e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. (RUBIM, 2015, p. 12-13)

Um outro exemplo da manutenção das utopias sobre a cultura dos anos 70 e 80 é a criação dos Pontos de Cultura que visavam realizar o reconhecimento de instituições culturais brasileiras formais ou informais que já realizavam um trabalho de base cultural nas suas comunidades e/ou cidades. O papel do Estado em relação aos pontos de cultura seria portanto o de chancelar essa ‘existência cultural’ a partir do incentivo econômico e tecnológico para que essas iniciativas pudessem se integrar, realizar intercâmbios, mas sempre a partir da compreensão de que o financiamento era pela própria existência dos mesmos, não sendo necessário pensá-los sob a cifra de que tipo de recursos econômicos eles iriam oferecer em contrapartida, ou mesmo qual seria a abrangência (em termos de público) de suas ações, por exemplo. Com isso, não queremos dizer também que a visão econômica da cultura foi relegada na gestão Gil-Juca. Eles também não deixavam de reverenciar a cultura de um patamar econômico produzindo assim uma ligação direta com o necessário crescimento do país e em diálogo com as demandas do Partido dos Trabalhadores presentes no Imaginação a Serviço do Brasil (2002). No artigo A centralidade da cultura no desenvolvimento (2013) Juca Ferreira rememora a própria compreensão de cultura difundida pelo presidente Lula:

“Posso dizer a vocês, com absoluta tranquilidade, que é outra – e que é nova – a visão que o Estado brasileiro tem, hoje, da cultura. Para nós, a cultura será investida de um

papel estratégico, no sentido da construção de um país socialmente mais justo e de nossa afirmação soberana no mundo. Porque não a vemos como algo meramente decorativo, ornamental. Mas como a base da construção e da preservação da nossa identidade, como espaço para a conquista plena da cidadania, e como instrumento para a superação da exclusão social – tanto pelo fortalecimento da autoestima de nosso povo, quanto pela sua capacidade de gerar empregos e de atrair divisas para o país. Ou seja, encaramos a cultura em todas as suas dimensões, da simbólica à econômica. (FERREIRA IN: ALMEIDA, ALBERNAZ e SIQUEIRA (orgs). 2013, p. 79) Entender o grupo de Gil e Juca Ferreira a partir de suas obras políticas é ver, nesses agentes, a necessidade de reformular as bases de concepção de desenvolvimento do Brasil a partir da promoção de direitos.

A constituição plena de uma república não pode ser feita de forma abstrata, a- histórica, com cidadanias plenas e também abstratas, desconhecendo séculos de desigualdade transmitidas e acumuladas. Como se pudéssemos zerar o jogo das heranças e sofrimentos, produtos da escravidão ou do genocídio indígena, em nome dos legítimos ideais republicanos com os quais todos nós concordarmos (GIL, op. cit. 2013, p. 27)

Temos então um quadro mais complexo sobre a concepção da política cultural – ao mesmo tempo em que afirma a unidade na diversidade da cultura brasileira a fim de desenvolver o país ela também diz respeito à urgência de reconhecer a cidadania cultural dos brasileiros. Essa dimensão do reconhecimento do potencial de gerador de direitos da cultura é a grande marca desse momento considerado a ‘era de ouro’ das políticas de cultura no Brasil. Por outro lado, a gestão Gil-Juca ocorreu dentro da própria disputa interna sobre política de cultura do Partido dos Trabalhadores. Barbalho (2014) chama atenção para essa crise interna do próprio MINC referente ao Sistema Nacional de Cultura (SNC) dada a constatação de que o próprio Gil – que não pertencia ao grupo de petistas que criaram o documento a Imaginação a serviço do Brasil (2002) – não era tão entusiasta do SNC por acreditar que o sistema precisava ser construído e não instituído (BARBALHO, 2014, p. 194). A crise, inclusive, culminou na demissão de Antônio Grassi e Márcio Meira, dois petistas que assinaram o Imaginação a serviço do Brasil. De fato, Gil e Juca eram um grupo a parte que colocava a ênfase na construção e no processo. A garantia de direitos era a premissa radical advogada por Gil.

Assim temos pensado e promovido a cultura no Brasil: como um direito fundamental dos brasileiros, um direito que deve ser assegurado a partir da afirmação radical de nossa diversidade cultural como patrimônio maior da sociedade brasileira. (...). Temos uma grande missão no necessário reconhecimento de todos os saberes e conhecimentos, de todas as culturas e línguas que foram excluídas pelo saber oficial ou ignoradas pelas escolhas da indústria cultural. (GIL, 2013, p. 41)

Para eles, a cultura reverberaria como uma forma de reconhecer direitos e esse reconhecimento imprescindível para o processo de construção da nação brasileira. (O Brasil precisa de um novo Projeto de Nação, construí-lo com a sociedade é a nossa maior missão (FERREIRA, 2013, p. 77)

Com isso, não queremos dizer que a gestão Gil-Juca fosse alheia à dimensão produtiva da cultura. Destacou-se também durante esse período a emergência da “economia criativa” que visava reconhecer os “territórios criativos” - um local ou região onde havia produção de bens tangíveis e intangíveis com um forte componente tecnológico. Conforme as metas n.7 e n.8 do Plano Nacional de Cultura (2012):

Territórios criativos são bairros, cidades ou regiões que apresentam potenciais culturais criativos capazes de promover o desenvolvimento integral e sustentável, aliando preservação e promoção de seus valores culturais e ambientais. (...). Como explicado na Meta 7, a economia criativa é um setor estratégico e dinâmico, tanto do ponto de vista econômico como social. Suas atividades geram trabalho, emprego, renda e inclusão social. Um território será legitimado pelo Ministério da Cultura (MinC) como território criativo por meio de uma chancela (selo). Com isso, poderá ser criado um sistema de governança com a participação do poder público e da sociedade civil. A partir desse reconhecimento, o MinC repassará recursos para a formulação de planos de desenvolvimento que tenham a economia criativa como estratégia. (PLANO NACIONAL DE CULTURA, 2012)

As concepções dos valores socioculturais citadas acima dizem respeito à dimensão econômica da cultura associando-a à geração de emprego, renda e produtos. Mais do que um flerte, a economia criativa era uma tentativa da cultura se mostrar completamente rentável e, por isso, digna de receber investimentos. Como afirma Reis (2008, p. 47):

Nesse novo paradigma que traz a cultura em sua essência e a tecnologia como veículo propulsor, a organização dos mercados em redes, as parcerias entre os agentes sociais e econômicos, a prevalência de aspectos intangíveis da produção, o uso das novas tecnologias para a produção, distribuição e/ou acesso aos bens e serviços e a unicidade da produção, fortemente ancorada na singularidade, são traços característicos desse modelo que tem como pressuposto de sustentabilidade a melhoria do bem-estar e a inclusão socioeconômica. (REIS, 2008, p. 47)

No entanto, apesar de não deixar de lado a dimensão econômica da cultura a gestão Gil- Juca possuía como missão tentar dar conta dos processos de reconhecimento dos segmentos invibilizados e espraiar a política cultural. Lembrando, desde já, que as críticas16 que parte dos consagrados – entre eles Caetano Veloso – fez sobre a ausência de apoios financeiros quando Gilberto Gil era ministro mostrava que realmente se estava tentando ‘equilibrar’ a orientação política dos recursos de forma a garantir mais equidade na distribuição. Mas, como dissemos, isso não significa, nem de longe, nas palavras do próprio Gil, uma desistência de apoiar os consagrados e sim uma tentativa de efetivar mais justiça.

Mas eu insisto no win-win. Acho que é sempre possível avançar no sentido civilizatório, no sentido de que possa todo mundo ganhar. Acho que as políticas mais interessantes, mais importantes, hoje em dia no mundo, são aquelas que possibilitam ganhos múltiplos, das várias partes, ou seja, mesmo no caso dos privilégios históricos etc. etc. Os privilégios históricos que determinados grupos têm, tiveram, são

privilégios que têm que ser atacados no sentido de serem desmantelados, mas ao mesmo tempo os privilégios históricos determinaram acumulações importantes em determinadas áreas. (GIL, op. cit., 2013, p. 125)

O win-win do qual fala Gil diz respeito à ideia de que todos ganhem, reconhecendo que historicamente alguns grupos vêm recebendo mais atenção do que os outros. A postura de Gil frente às indústrias culturais é bastante enfática pressionando por uma nova compreensão dos direitos autorais e o necessário posicionamento do Estado ao lado daqueles que foram historicamente invisibilizados no Brasil. Como diz Gil em entrevista a Caros Amigos em 2006: é assim que eu vejo a questão do win-win. É preciso que quem não ganhava nada passe a ganhar, mas quem ganhava muito não pode deixar de ganhar. (GIL, op. cit, 2013, p. 125)

No momento em que Dilma é eleita, em 2010, a expectativa de boa parte dos segmentos culturais17 envolvidos pela política do MinC era de que houvesse uma continuidade entendendo a necessidade de aprofundar o reconhecimento da cidadania cultural em um país com injustiças sociais tão estruturadas como o Brasil. No entanto, Dilma indica para a pasta Ana de Hollanda, música que deixou claro os interesses em fazer da cultura um bom negócio18 como afirma Calabre (2015, p. 38)

Algumas ações demostram uma opção por uma política que buscava privilegiar o mercado e as linguagens artísticas, em detrimento de ações com um escopo mais ampliado do conceito de cultura e de valorização da participação social. O direcionamento do foco do MinC para as problemáticas do mercado ficou explícito desde o discurso de posse da ministra Ana de Hollanda, e buscou ser corporificado na criação da Secretaria de Economia Criativa (SEC), que era, no projeto da ministra, um braço operacional para aprofundar a relação cultura/mercado. É importante observar que essa não era necessariamente a lógica sob a qual a equipe convidada construía o projeto da SEC, o que certamente dificultou a implementação de ações a partir de ambas visões. (CALABRE, 2015, p. 38)

A chegada de Ana de Hollanda marca um período de turbulência particular na gestão da política de cultura brasileira com o uma diminuição da importância dada às políticas de cidadania cultural e a chegada, cada vez mais volumosa, da necessidade de implementação do Sistema Nacional e de incentivos à dimensão econômica da cultura.

O complexo e tumultuado processo vivido pelo Ministério, por certo, possibilita avaliações diferenciadas e polêmicas acerca das possíveis continuidades e descontinuidades, mas ele impõe outra constatação: o patamar político e cultural alcançado pelo Ministério nas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira foi visivelmente deprimido. A forte presença na cena pública se quedou comprometida. O espaço ocupado pela cultura no governo nacional se restringiu. A intensa interação com a sociedade civil e, em especial, com as comunidades culturais, e com a sociedade

17 Alguns autores questionam a gestão Gil-Juca no que tange às áreas não atendidas e às dificuldades de implementação e consolidação de políticas públicas (RUBIM, CALABRE, BARBALHO, 2015) 18 http://farofafa.cartacapital.com.br/2012/03/12/ministerio-do-ecad/

política, nacional e internacional, ficou debilitada. As políticas culturais subsistiram pela potência de sua assimilação pela sociedade e pela persistência de alguns dirigentes no Ministério, o que tornou irreversível sua continuidade, mas em níveis desacelerados. O Ministério, que havia ocupado um lugar nunca antes alcançado, voltou a patamares que se imaginava estarem superados. (RUBIM, 2015, p. 28) Esse é o momento em que percebemos a virada na doxa das políticas de cultura na transição Lula-Dilma. A rejeição do segmento cultural a Ana de Hollanda fez com que esta renunciasse e Marta Suplicy se tornasse a nova ministra. Suplicy vem para a cultura por um acordo político, depois que o PT resolveu indicar Fernando Haddad para concorrer à prefeitura de SP. Seu período na pasta durante os dois últimos anos do primeiro governo Dilma é breve e marcado pela implementação do vale-cultura, um novo benefício que garante R$ 50 reais mensais para o trabalhador utilizar na aquisição de produtos culturais. Suplicy pede demissão do Ministério e se desfilia do PT já em 2015. Em sua difícil reeleição, Dilma convida Juca Ferreira para retornar ao Ministério, mostrando uma reaproximação com os segmentos e agentes que inauguraram a ‘era de ouro’ da política cultural. Após o impeachment, uma das primeiras atitudes do governo Temer é extinguir o Ministério provocando uma série de manifestações em todo o Brasil. Após a pressão política da sociedade e dos artistas, o novo (de novo) Ministério da Cultura surge esvaziado das características utópicas de reivindicação de direitos que foram vistas a partir de 2003.

Documentos relacionados