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A IMAGINAÇÃO A SERVIÇO DO BRASIL (2002)

5 A ANÁLISE DE DOCUMENTOS E GESTÕES DE CULTURA

5.1 A IMAGINAÇÃO A SERVIÇO DO BRASIL (2002)

O documento A Imaginação a Serviço do Brasil, redigido como programa de governo na campanha de Lula para presidente em 2002, foi escrito por um grupo de intelectuais e artistas ligados ao Partido dos Trabalhadores, coordenado por Antônio Grassi, Hamilton Pereira da Silva, Marco Aurélio de Almeida Garcia, João Roberto Peixe, Márcio Meira, Margarete Moraes e Sérgio Mamberti. O texto evidencia a necessidade de colocar a cultura à serviço de um projeto de soberania da nação brasileira.

Portanto, o que propomos aqui é a recuperação do papel da esfera pública de suas tarefas indutoras e reguladoras da produção e difusão cultural, a formação do gosto e a qualificação dos nossos artistas em todas as linguagens. Cabe, portanto, uma posição forte do Estado na área de cultura para conjugar as políticas públicas de cultura com as demais políticas de governo e redefini-las em sintonia com o novo Projeto Nacional de forma que venham a cumprir o papel de recuperar a autoestima do nosso povo, contribuir para a inclusão social, romper com o apartheid cultural vigente e afirmar a nossa imagem diante das demais culturas do mundo. (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2002, p. 3)

Fica evidente a necessidade, para esse grupo, de afirmar a cultura como um elemento constituinte do desenvolvimento nacional. Reverencia-se o mosaico cultural, afirmando que houve um recolhimento de experiências concretas” nas gestões municipais e estaduais do PT e que um conjunto de “estudiosos, gestores e artistas realizaram o Programa a fim de alcançar o que se deseja: colocar a imaginação a serviço do Brasil entendendo este como um país que precisa melhorar o gosto e a qualificação assim como realizar a inclusão social do povo brasileiro sendo, como se disse, o desenvolvimento econômico a chave desse processo. Na apresentação do texto, assinada por Antônio Palocci – na época coordenador do Programa de Governo de Lula, encontramos a associação da cultura à construção de um projeto nacional.

Num país com a extraordinária diversidade cultural do Brasil, as forças políticas comprometidas com a Coligação Lula Presidente não se permitem elaborar um Programa de Políticas Públicas de Cultura sem auscultar de perto as diferentes expressões culturais de cada região do país. Por isso, fomos a todas elas para estabelecer o debate necessário sobre essa questão crucial e estratégica para a formulação de um novo Projeto Nacional para o Brasil. (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2002, p. 3)

Na verdade, o auscultamento realizado pelo grupo se deu a partir de visitas estratégicas realizadas em algumas cidades do país como os próprios realizadores do Programa dizem no texto (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2002, p. 8):

Fixamos uma agenda, um método e um calendário. Fomos a Porto Alegre, Belém, Campo Grande e Recife. Recolhemos os sonhos que a experiência prática moldou em políticas públicas de cultura nas administrações populares que conduzimos, a paixão e os ensinamentos dos grupos culturais e a reflexão formulada pelos estudiosos da cultura brasileira. (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2002, p. 8)

Mas já se pode ver desde já a ideia de que o documento é um “recolhimento de sonhos” a ser usado para realizar o posicionamento da cultura no Projeto Nacional para o Brasil. Continuando, o texto diz que Quem lida com cultura, lida com o universo simbólico, com o imaginário, com os valores cultivados pelo nosso povo (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2002, p. 9) e é perceptível, também, que a cultura pode servir como síntese de todo o universo simbólico do povo.

A memória, o patrimônio material e imaterial que lhe dá fisionomia, que a perpetua e alimenta, a criação de novas representações no artesanato, na música, na literatura, nas artes plásticas, na dança, no teatro, na arquitetura, no audiovisual, lida, em uma palavra com a alma do povo. É possível dizer que o desenvolvimento econômico expressa o bem-estar material de uma nação, mas é o desenvolvimento cultural que define a sua qualidade. (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2002, p. 3)

Agora vemos como as diferentes expressões culturais são sintetizadas com a alma do povo ao mesmo tempo em que não podemos esquecer que o desenvolvimento econômico precisa também ser considerado ao se falar da cultura desse mesmo povo. Por outro lado, as políticas públicas de cultura são entendidas também como um direito republicano tão importante como o direito ao voto, à moradia digna, a saúde, a educação, a aposentadoria. A transmissão dos seus valores ensinados e apreendidos ao longo da história (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2002, p. 3) Essa relação permanente da cultura – como instrumento da cidadania e também do desenvolvimento econômico – cria a necessidade dos gestores de esquerda do período de priorizarem a construção de sistemas de cultura que seriam políticas públicas de reconhecimento e sistematização das atividades culturais para a construção de um aporte mais concentrado e dirigido do Governo Federal alinhando-se às políticas estaduais e municipais. Surge assim a pauta de que a política de cultura possa ser, paulatinamente, integrada, racionalizada e economeizada.

O SNPC (Sistema Nacional de Política Cultural é entendido como fundamental para a descentralização da PNC (Política Nacional e Cultura), pois integraria não apenas as três esferas de governo, mas também as instituições privadas e do terceiro setor. Integrar o Sistema seria a condição prévia para que qualquer instituição, pública ou privada, acessasse recurso do Fundo Nacional de Cultura (FNC). Com isso, os recursos obtidos por meio do SNPC deveriam ser feitos pelos conselhos de cultura de cada esfera, posto que a sua existência era um dos pré-requisitos de integração no Sistema. Ainda no âmbito da gestão, o documento prevê a definição de Instituições Nacionais de Referência Cultural que seriam responsáveis pela formação na área cultural, nos mais diversos segmentos artísticos, incluindo capacitação para os técnicos da gestão cultural nas três esferas. Este processo formativo permanente é considerado essencial para o fortalecimento do SNPC, de modo que as instituições devem ser “criteriosamente selecionadas e integradas ao Sistema, de tal forma a que atendam demandas de regiões do país desassistidas de pessoal qualificado para desenvolver localmente políticas públicas de cultura” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2002, p. 21 apud BARBALHO, 2014, p. 192)

Esse texto, portanto, marca uma virada importante na doxa das políticas culturais dentro do Partido dos Trabalhadores a qual, como mostramos previamente, sinalizava a ideia de cultura marcadamente associada com uma certa compreensão de transformação crítica da sociedade. Não podemos dizer que o ideal de cidadania cultural deixou de estar presente, mas ele está realocado a partir de um posicionamento de integração da cultura a um tipo específico de sistematização e burocratização.

A engenharia cultural proposta pelo Imaginação a Serviço do Brasil (2002) acaba por vincular a valorização cultural a gestão e ao desenvolvimento econômico – mostrando que, possivelmente, os valores culturais democratizantes ao serem estruturados em um Plano de gestão pública precisam necessariamente ser atravessados pelo seu sentido econômico, criando a ideia de que, apesar de todas as críticas ao modelo neoliberalizante da gestão de cultura do governo FHC realizada pela gestão Gil-Juca, a cultura em alguma medida ainda precisa ser um bom negócio para o Estado.

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