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A POLÍTICA DE CULTURA NO RECIFE (2000-2008)

5 A ANÁLISE DE DOCUMENTOS E GESTÕES DE CULTURA

5.4 A POLÍTICA DE CULTURA NO RECIFE (2000-2008)

O PT chegou ao poder municipal em Recife dois anos antes de Lula e seis anos antes de Eduardo Campos chegar ao Governo do Estado. Chegou com um “prefeito-operário”, João Paulo Lima e Silva, em uma eleição considerada histórica na cidade. Histórica porque João era de classe popular – filho do cobrador de ônibus Manoel Messias e da dona de casa Maria de Lourdes – e havia sido estudante de Edificações e Mecânica na Escola Técnica Estadual Professor Agamenon Magalhães – Etepam. Foi aí que entrou em contato com Paulo Freire e se dedicou a movimentos clandestinos como a Juventude Operária Católica (JOC) e a Ação Católica Operária (ACO), chegando a receber uma bolsa do Centro de Estudos da América Latina e a participar de capacitação em política sindical na França, Itália, Espanha e Portugal. Quando retornou ao Brasil estava totalmente engajado no movimento sindical na mesma época

em que explode a greve do ABC Paulista. Tornou-se assim presidente estadual do Sindicato dos Metalúrgicos e fundou, em Pernambuco, a Central Única dos Trabalhadores e o Partido dos Trabalhadores. Numa carreira política ascendente, João Paulo disputou o cargo de deputado estadual em 1986 e obteve 10 mil votos, mas acabou não se elegendo por falta de quórum eleitoral do PT. Elegeu-se dois anos depois como primeiro vereador do partido no Recife com 2.723 votos e, em 1994, tornou-se o deputado estadual mais votado da história, com 48.892 votos. O segundo ponto que surpreendeu na eleição de um operário foi o fato dele ter derrotado a mais gigantesca aliança política que Pernambuco já viu. Formada por Jarbas Vasconcelos, então Governador (pelo PMDB), e por Marco Maciel, então vice-presidente da República (pelo antigo PFL, atual DEM), a aliança União por Pernambuco tentava emplacar a reeleição de Roberto Magalhães (também do antigo PFL), um jurista de prestígio nacional, ex-deputado federal, ex-governador de Pernambuco e então prefeito do Recife. Com ares de favorito, Magalhães tinha nas mãos a administração da prefeitura, o suporte do Estado e o apoio do Governo Federal. A coligação de João Paulo tinha como vice Luciano Siqueira (do PC do B) e era formada também com o PCB e o PGT. Já aliança de Magalhães possuía o PFL, PMDB, PSDB, PPB, PRTB, PSC, PSL, PSD, PV, PST, PSDC, PRP e PTN, o que lhe dava maior tempo na tevê, maior estrutura e maiores recursos. Em várias ocasiões o Guia Eleitoral de Magalhães exibiu cenas de baderna nas ruas atribuindo as imagens a cidades governadas pelo PT e tentava convencer os eleitores de que Recife se tornaria um caos o seu adversário fosse eleito. Algumas pessoas lembram de imagens repletas de lixo em Belém do Pará conectadas com manifestantes sangrando nas ruas de Brasília e no final a tarja - “A Baderna do PT”.

Aconteceu, porém, o improvável e o desgaste das oligarquias somado a um trabalho de base massivo fez com que o prefeito operário fosse eleito. João Paulo foi vitorioso e sua gestão trouxe realmente uma série de perspectivas democratizantes em diversas áreas da política pública advindas do acúmulo do próprio PT e, assim, inaugurou políticas culturais específicas para o munícipio sob a tutela de João Roberto Peixe. Arquiteto e designer, nascido no interior de Pernambuco, Peixe fundou em 1972 a mais antiga empresa de design do Nordeste. Antes disso, em 1970 já havia sido presidente da União dos Estudantes de Pernambuco. Foi também um dos fundadores do PT e o primeiro presidente do partido. Chegou a trabalhar também na gestão de Jarbas de 1986 a 1988 como diretor geral de descentralização político-administrativa e, em 1995, foi Secretário do Patrimônio Cultural e Turismo da cidade de Olinda.

A política de cultura desencadeada por João Paulo e Roberto Peixe estava conectada às reivindicações e lutas dos movimentos sociais e locais e por isso surgia em diálogo com a cena alternativa da cidade do Recife pós-manguebit e também de toda a efervescência de esquerda

que marcou o mundo das artes em Recife nos anos 90. A gestão foi marcada por uma ruptura com determinadas visões de política pública de cultura que estavam estabelecidas na cidade e/ou o aperfeiçoamento de outras. Um exemplo claro é o fim do Recifolia – espécie de carnaval pago que acontecia em Boa Viagem – e o incentivo ao Carnaval no centro e em algumas comunidades periféricas da cidade. Surge também o Programa Multicultural - ação para formar agentes culturais capazes de capitanear um movimento próprio em suas regiões, integrando-se a uma rede criativa que também geraria recursos e valorização nas periferias. A estratégia do Multicultural era mesmo formar, valorizar a estima e a produção local com um calendário permanente de ciclos, oficinas, atividades relacionadas à memória e cultura comunitária, entre outros. Segundo o Plano Municipal de Cultura (RECIFE/2008), este Programa buscava:

valorizar as manifestações culturais de cada RPA, contribuir para criação, fortalecimento, formação e articulação de redes culturais entre os grupos locais, estimular a pesquisa e a instalação de centros de referência e memória e criar espaços para elaboração de políticas de promoção de direitos culturais das comunidades. Durante a primeira gestão do Partido dos Trabalhadores, realizaram-se oficinas, cursos e mostras culturais produzidas em quatro RPAs, sendo uma por ano e, na sua segunda gestão, já comandada por Fernando Duarte na Fundação de Cultura do Recife, realizou-se um mínimo de 20 mostras culturais completas em todas as regiões do município. Entre as atividades políticas advindas da gestão cultural petista, passa a surgir, também no final da primeira década dos anos 2000, o projeto Agentes de Memória, no intuito de formar jovens das RPAs para valorizarem e preservarem a memória de seus bairros, de forma a produzir as bases para a construção dos Centros de Memória comunitários. Além disso, houve o anúncio da implementação de 07 Refinarias Multiculturais que seriam centros de produção da cultura ativa dos bairros e da cidade.

Sendo um dos signatários do documento A imaginação a Serviço do Brasil (2002), João Roberto Peixe tem as mesmas características de criação de sistemas conceituais que apontamos no governo de Luciana Azevedo (2006-2010) e Gil-Juca (2002-2010), sendo que aqui a ênfase na modernização e na economeificação da cultura são mais predominantes. Durante o seu mandato, Peixe encabeçou o projeto da implementação da Lei Municipal de Cultura com toda a forças na segunda gestão de João Paulo (2004-2008). Ele convocou diversas reuniões, conferências e fóruns setoriais com entidades, produtores e movimentos sociais para organizar o plano, afim de garantir a continuidade de uma cultura descentralizada e cidadã, a manutenção do Multicultural embutida dentro da chamada ‘Economia da Cultura’, com espectro de atuação por dez anos. Havia o desejo de se alinhar também com a política nacional – já que a demanda pelo Sistema Nacional de Cultura era fortemente enfatizada na época. Não é à toa que mais

tarde Peixe viria a ocupar o cargo de secretário de Articulação Institucional do Minc, a partir de 2011. A fiscalização e monitoramento do Plano no Recife era feita a partir do Conselho Municipal de Cultura, o qual era composto paritariamente por 20 membros governamentais e 20 membros da sociedade civil – caracterizando assim uma forte presença da cogestão, uma das marcas do Partido das Trabalhadores. Na apresentação inicial do Plano, assinada por Peixe, há o desejo de que o desenvolvimento econômico da cultura se torne a principal bússola para as políticas culturais do munícipio, em obediência a um projeto coletivo realizado em três conferências municipais, debates públicos, fóruns permanentes e comissões técnico-específicas designadas especificamente para a construção do Plano.

O Plano Municipal do Recife possui a mesma tensão que identificamos nas gestões estaduais e nacionais: a necessidade de se pensar como um instrumento de modernização, isto é, a manutenção e ampliação da ordem vigente - ou seja, o poder econômico - associada à inclusão de mais pessoas nesta ordem para que se possa, assim, diminuir as injustiças. Na apresentação do Plano Municipal de Cultura, por exemplo, Peixe prioriza a Economia da Cultura nitidamente considerando que uma das maiores barreiras para o desenvolvimento da economia da cultura na cidade do Recife é a visão limitada que grande parte dos atores da política e da economia local têm da cultura, vendo apenas o seu papel simbólico, dando, ainda, pouca importância à sua dimensão econômica. (PMC, 2008, p. 42). Aqui, Peixe está apresentando o Plano à Câmara Municipal e, por isso, ele enfatiza que economia da cultura é imprescindível para o desenvolvimento do Recife, cidade que, aos poucos – após oito anos de gestão do PT na Cultura – estava começando a incluir a dimensão econômica na sua perspectiva cultural:

No entanto, alguns fatos são significativos para sinalizar que esta visão começa a mudar: planos estruturadores de implementação em longo prazo, como o Complexo Turístico Cultural Recife/Olinda e a Rede de Refinarias Multiculturais começam a ser implementados por governos e iniciativa privada; a Prefeitura do Recife é a que, hoje, proporcionalmente mais investe na cultura em todo o país; o entendimento do “trade” que é a cultura o grande diferencial competitivo do Recife com relação à outros destinos turísticos da região; os Centros Culturais de grande porte que estão sendo implementados na cidade; a inclusão do setor “Turismo e Cultura”, na décima edição da conceituada pesquisa Empresa & Empresários (que significa o reconhecimento do setor, pelos seus organizadores, como um dos dez mais importantes da economia do Estado); a importância adquirida pelo Carnaval Multicultural do Recife no cenário nacional e internacional; a estruturação de um Calendário Cultural, com os eventos realizados em datas previamente definidas, possibilitando uma maior profissionalização da produção e a sua venda pelo setor turístico. (PLANO MUNICIPAL DE CULTURA, op. cit., p. 43)

No plano, a descentralização cultural e o Programa Multicultural são apresentados como um conjunto de programas voltados para democratizar o acesso à cultura nas comunidades de

periferia e ao mesmo tempo como ações que dizem respeito à economia da cultura, isto é, ações que provocam o valor econômico da cultura26. Essa marca de tensão entre a valorização da à ordem econômica – e a chamada justiça social – a necessidade de se pensar em ações para as comunidades populares pode ser vista em toda a apresentação do Plano. A gestão João Paulo/Peixe criou um Carnaval que incluía apresentações da cultura popular, shows alternativos (como os do polo Rec-Beat) e que ainda possuía uma forte perspectiva de descentralização (com polos em comunidades da cidade). Isso tudo sem deixar de manter a programação de artistas consagrados no Marco Zero – principal polo da festa de Momo. Criou-se também um novo ciclo de equipamentos culturais visando o estabelecimento de um polo criativo no pátio de São Pedro27, tradicional área histórica da cidade próxima ao Mercado de São José. Já o São João, uma festa tradicionalmente de interior, foi trazida para dentro da cidade. No campo das artes, os protagonistas da Brigada Artística Henfil – um dos coletivos de artista que realizavam intervenções na cidade no final dos anos 80 em apoio às campanhas do PT – haviam se tornado o Coletivo 13 e participaram da reformulação da política de arte contemporânea na cidade com a criação do SPA das Artes (CAVALCANTI, 2013). O Programa Multicultural, que, como dissemos, foi criado para democratizar o acesso e a formação cultural nas comunidades era também, na visão de Peixe, a criação de mão de obra técnica para o novo cenário da cultura da cidade do Recife. Essa mão de obra viria dos jovens de 16 a 25 anos, fazendo com que estivessem livres dos riscos das drogas nas comunidades de periferia.

O Programa Multicultural do Recife, através dos Festivais, dos Mercados e da Rede de Refinarias Multiculturais tem por objetivo central formar produtores, artistas e pessoal técnico para o novo cenário da economia da cultura na cidade do Recife. Tem como público alvo prioritário os jovens na faixa etária compreendida entre os 16 e os 25 anos, particularmente aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade social – expostos a drogas, violência e marginalidade – visando despertar o interesse pela cultura e capacitá-los para atuar no mercado cultural. O Programa busca valorizar as manifestações culturais de cada RPA, contribuir para a criação, fortalecimento,

26 Uma discussão interessante trazida por Alexandre Barbalho (2014) é como, dentro do próprio Ministério da Cultura, o SNC não era uma política que tinha o real apreço da gestão Gil. Gil, apesar de defender publicamente o SNC, acreditava que o processo histórico para a construção do Sistema era um processo mais lento e que não podia ser feito de qualquer forma. A pressão para a execução do mesmo – inclusive com as brigas internas que renderam demissões dentro do MinC – vinha de setores da cultura do PT para os quais o SNC era realmente uma política a ser implementada. Como Gil era um Ministro “Músico”, filiado ao Partido Verde, nem sempre ele estava em total acordo com as demandas do Partido dos Trabalhadores. É justamente na gestão de João Roberto Peixe na pasta responsável pela efetivação do Sistema que há um efetivo crescimento de adesões de Estados e munícipios às propostas do SNC.

27 Eram o MAMAM no pátio, o Centro de Design do Recife, o Núcleo de Cultura Afrobrasileira, o Centro de Formação, Pesquisa e Memória Cultural - Casa do Carnaval, o Memorial Luiz Gonzaga, o Memorial Chico Science, o Centro de Formação em Artes Visuais e o Museu de Arte Popular e, na divisa com Olinda, o Centro Cultural Desportivo Nascedouro de Peixinhos. Ao mesmo tempo, requalificaram-se outros equipamentos como o o Museu Murilo La Greca, a Biblioteca Popular de Casa Amarela Jornalista Alcides Lopes e a Biblioteca Popular de Afogados.

formação e articulação de redes culturais entre os grupos locais, estimular a pesquisa e a instalação de centros de referência e memória e criar espaços para elaboração de políticas de promoção de direitos culturais das comunidades. (PLANO MUNICIPAL DE CULTURA, op. cit., p. 41)

Como diz Yúdice (2013, p. 42): a culturalização, portanto, também é baseada na mobilização e no gerenciamento de populações, em especial das populações marginais (...). Também como marca da confluência perversa sinalizada por Dagnino (2005), as elites intelectuais e artísticas da esquerda, que antes viam nas camadas populares aliados no desejo de transformação social, agora fazem surgir propostas específicas de organização e gerenciamento da periferia urbana coadunadas com propostas de readequação econômica dos pobres através da cultura. Assim, o desenvolvimento cultural, identitário e a democratização/descentralização andam lado a lado com a inserção da cultura no processo econômico e na consolidação do Recife à semelhança de cidades como Buenos Aires e Barcelona – no circuito nacional e internacional da cultura (PLANO MUNICIPAL DE CULTURA, 2008, p. 15). Essa visão compreende o Recife mesmo como um lugar que merece ser desenvolvido para integrar uma vanguarda econômica e cultural mundial – uma tentativa de integração na globalização.

Toda esta imensa riqueza cultural a situa numa excelente posição no novo cenário da cultura e da economia mundial e representa, hoje, um enorme potencial de desenvolvimento para a cidade com a criação de oportunidades para seus artistas, a restauração dos seus monumentos e bens culturais, a promoção da renovação urbana e da requalificação dos seus espaços públicos, o desenvolvimento das suas indústrias culturais, o incremento do turismo cultural e, especialmente, a melhoria material e espiritual dos seus habitantes. (PLANO MUNICIPAL DE CULTURA, op. cit., p. 40) Se compreendermos, com Yúdice (2013), que estamos falando já da cultura como um instrumento de disputa dentro do capitalismo global talvez possamos entender mais a ênfase que se dá na necessidade de inclusão, modernização, legislação das políticas que estamos estudando. Na verdade, estamos diante de obras políticas que são um regime diferenciado de apreensão da cultura, cada vez mais dissociado de uma dimensão cidadã e se aproximando na verdade da dimensão mercadológica.

(...) com a recíproca permeação da cultura e da economia, não somente como uma mercadoria – que seria o equivalente da instrumentalidade -, mas um modo de cognição, de organização social e até mesmo tentativas de emancipação social, parecem retroalimentar o sistema a que resistem ou se opõem. (YUDICE, 2013, p. 53)

Dentro do regime de lutas de ser uma cidade no Nordeste do Brasil – um país também em posição de afirmação no contexto mundial – Recife, Pernambuco e Brasil se alinham com a ideia de utilização da cultura como um regime que precisa ser desenvolvido de maneira

confiável, sistemática e gerenciada pelo Estado para poder mostrar a sua força cultural na balança das lutas por reconhecimento.

No entanto, apesar de todo o investimento de Peixe na aprovação do Plano Municipal e da gestão que sucedeu João Paulo ter sido do PT, o projeto ingressou em um limbo específico e uma série de ações foram descontinuadas28. As notícias referentes às ações de descentralização cultural, associadas a oficinas, formação de agentes de memória, construção de equipamentos culturais na periferia, entre diversas outras, desapareceram na mídia local e nos sites institucionais da Prefeitura do Recife. Além disso, os indicadores de efetividade do Plano, a despeito de índices constantemente visibilizados em outras áreas como saneamento, educação, moradia, não foram formulados ou disponibilizados publicamente. Pode-se dizer que o Plano Municipal de Cultura do Recife tornou-se ele mesmo uma grande ficção, sonhada, talvez, com o desejo de que a imensa massa de artistas periféricos da cidade pudesse ganhar um ‘lugar ao sol’, mas desconectada da própria realidade do Partido e dos jogos políticos nos quais ele se insere.

28 Estamos falando da gestão de Renato L na Secretaria de Cultura e Luciana Félix na Fundação de Cultura do Recife durante a gestão de João da Costa (2009-2012).

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