• Nenhum resultado encontrado

A pele é o maior órgão do corpo humano e, consequentemente também, o mais pesa- do. Tem a função de proteger o corpo de elementos externos, conservar a hidratação e regular a temperatura. Devido a função de proteção, o sentido do tato está plenamente ativo às mais

finas variações térmicas e movimentos. Por ela o homem se põe em contato consigo e com as realidades externas a ele. Favorece na comunicação e ao relacionamento humano.

Em virtude disso, qualquer dano na pele, por menor que seja, pode atingir o corpo todo e, dependendo da situação, coloca o ser humano ao isolamento em relação aos demais. No sentido bíblico, a pele, a carne e os ossos representam, em algumas passagens, a pessoa toda; nota se isso na pregação de Miquéias condenando a exploração do povo de Israel: “A-

queles que comem a carne do meu povo, raspam-lhe a pele, quebram-lhe os osso, trincham- nos como carne de panela, como assado no fundo do caldeirão” (Mq 3,2-3). Na compreen- são do profeta Jeremias a pele seria o símbolo da identidade da pessoa, algo no sentido pro- fundo, muito íntimo, portanto, não possível de mudança: “Pode um etíope mudar a sua pele,

um leopardo as suas pintas? E vós habituados ao mal, podereis praticar o bem” (Jr 13,23)?

Sem dúvida nos tempos do Antigo e Novo Testamento havia várias doenças de pele. Entretanto, nenhuma tomou proporção maior em temor e foi objeto de tamanha preocupação a não ser a lepra. Doença vista, pelo povo de Israel e os povos circunvizinhos, como grande maldição de Deus.

Todas as doenças eram consideradas um castigo, mas a lepra era o próprio símbolo do pecado. Deus se servia dela – dizia-se – sobretudo para castigar os inve- josos, os arrogantes, os ladrões, os assassinos, os responsáveis pelo falso juramento e por incestos. A cura da lepra era considerada um milagre, comparável à ressurrei- ção de um morto: só o Senhor poderia realizá-la; mas antes era preciso expiar todos os pecados que a tinham causado50.

Dado o caráter de impureza, segundo a orientação religiosa, a falta de conhecimento para a cura e perigo de transmissão, os leprosos eram obrigados a viver afastados da socieda- de. Para isso lhes era dada ordem severa para não se aproximar do meio civil, deveriam ficar longe do convívio social morando nos lugares impuros de acordo com a decisão dos habitan- tes das cidades51.

Embora estivesse vivo, o enfermo de lepra era tratado como morto, aliás, as caracte- rísticas avançadas dessa doença davam mesmo a ideia de situação cadavérica. Primeiro por-

50 ARMELLINI, Fernando. Celebrando a Palavra. v. 3. 5º ed. São Paulo: Ave Maria. 2007. p. 421.

51 De acordo com as orientações prescritas no Levítico o doente de lepra tinha que andar maltrapilho, despente- ado gritando que ele era impuro e deveria morar à parte, em local fora do acampamento (cf. Lv 13,45-46).

que o enfermo perdia a sensibilidade nos membros e parte dos mesmos, não sentia calor, frio e dor nas partes doentes, pois a doença afeta os nervos; também ocorria a perda dos membros como se atingido pela podridão. Em segundo plano, como consequência das características da doença, se acrescente a imundície da pessoa doente e desse vale ou morada dos leprosos, na certa não havia higiene e o odor deveria desagradar muito a sensibilidade olfativa das pessoas. Isso ocasionava nos sadios a repugnância contra os leprosos. Não há como conviver com eles52. Da parte dos leprosos restava ter de acabar aceitando triste e fatal destino, a rejeição de todos; da sociedade e até mesmo por Deus, isso segundo os critérios religiosos daquele tempo.

Na Bíblia há várias histórias de pessoas com lepra, pois essa doença repugnante per- passou toda História da Salvação. O Antigo Testamento destaca a presença da lepra em pes- soas influentes na religião (cf. Nm 12)53, na vida civil (cf. 2Rs 5,1-14) e em cidadãos comuns (cf. 2Rs 5,20-27). No Novo Testamento há nos evangelhos sinóticos a narrativa de curas mi- lagrosas em leprosos realizadas por Jesus. Os sinóticos concordam em narrar o mesmo episó- dio apenas com algumas mudanças acidentais (cf. Mt 8,1-4; Mc 1,40-45; Lc 5, 12-16). Dife- rença significativa ficaria por conta do episódio dos dez leprosos em Lc 17,11-19, dentre os sinóticos, somente ele narra esta fato. No Evangelho segundo João não se descreve cura de lepra dentre os sinais próprios da manifestação de Cristo segundo a teologia do quarto evan- gelista.

Nos três relatos sinóticos, exceto a cura dos dez em Lucas, se descreve o toque de Je- sus nos feridos pela lepra. Naquele tempo tal atitude era transgressão religiosa, pois o leproso estava em estado de impureza (cf. Lv 13,44-46 p Lm 4,15). Mais uma vez aqui se denota certa teologia da recriação, pois em Jesus com a sua Páscoa houve a renovação da natureza humana. Ao tocar neste homem e curá-lo, Jesus rompe com a barreira de separação entre puros e impuros. Restabelece os leprosos na comunidade renovando-os, dando a oportunida- de de agora poderem novamente gozar do mesmo direito comum a todo homem.

52 Segundo o que descreve Fernando Armellini, nesta obra já citada, havia, por parte de alguns rabinos daquele tempo, a afirmação de que se cruzassem com um leproso, atirariam pedras nele e gritaria mandando que volt asse para o seu lugar a fim de não contaminar mais ninguém.

53 Embora essa passagem bíblica afirma que somente Maria, irmã de Aarão, foi atingida pela lepra, há indícios de que também Aarão foi atingido. A nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém, referente a tal capítulo, ressalta isso e descreve uma possível mudança feita pela tradição sacerdotal. Todavia, mesmo que Aarão tenha sido atingido, deve ser levado em conta que Maria exercia a função de profetisa conforme se vê em Ex 15,20.

Com a pele sã da lepra, tais homens não mais sofrerão a exclusão de seus corpos, po- derão tocar nas pessoas, senti-las e comunicar seus afetos pelos gestos mais comuns dentro de uma comunidade humana. Dar a estes homens de novo a dignidade corporal para voltar a sociedade significa dar-lhes o devido valor e apresentá-los à comunidade.

Dentro da ótica da valorização da corporeidade e da teologia do corpo a cura desses leprosos revela muita coisa. Toda doença traz a noção e sentimento de inferioridade, elemen- to esse, vindo parte da comunidade e da parte do próprio enfermo. Isso aumenta mais ainda ao se tratar de enfermidades erroneamente rotuladas pela religiosidade como castigos ou pela sociedade como algo extremamente mal, no qual o enfermo deve ser excluído. E Jesus com a sua proposta de Reino já não aceita tal tipo de interpretação, haja a vista o dimensão comuni- tária inata no ser humano desde a criação.

Outro foco se daria a partir das perspectivas eternas. No Reino Eterno não haverá si- nais de separação, pois seria contrário ao anunciado e feito por Jesus. “Eis a tenda de Deus

entre os homens. Ele habitará com eles; serão o seu povo, e ele Deus-com-eles, será o seu Deus. Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem a dor haverá mais. Sim! As coisas antigas se foram” (Ap 21,3b-4). Neste texto se relata a união de Deus com a humanidade, descreve literalmente a dimensão dos ho- mens na compreensão de um único povo, ou seja, o redimido em Cristo. Nesta ocasião a hu- manidade também não pode estar dividida, aliás, isso na condição escatológica do Reino con- cretizado não se tem espaço para divisões. Por outro lado, há de se notar a promessa do fim do sofrimento, dor e de toda lágrima.