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O mundo atual está vivenciando acentuadamente o tempo das modificações e das transformações. Estas também atingiram a mentalidade das pessoas no quesito corpo. Já não causa mais susto saber de personalidades notórias ou não que, livremente, fizeram mudanças em seus corpos. No entanto, a modificação no corpo é um fenômeno muito tempo presente nas mais diversas culturas; vem desde tempos antigos. Elas vão desde simples atos tomados por higiene até os adornos e as mutilações relativos a aspectos sociais, frutos da cultura e fé.

Podemos categorizar as modificações corporais em dois grandes itens: as modificações não invasivas, que seriam coisas como cortar unhas, cabelo e quais- quer atitudes que nosso organismo tenha capacidade de regenerar e tornar reversível; e modificações invasivas, que modificam irreversivelmente o corpo como perfura- ções, estiramentos, escarificações, tatuagens, decepamentos ou remoção de dentes e pele. Em todas as culturas encontramos ambas interferências culturais no corpo humano255.

No contexto atual podem ser distinguidos três grupos distintos, que a seu modo fa- zem mudanças ou interferências no corpo chegando às verdadeiras transformações, das mais substanciais possíveis256.

253 CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A FAMÍLIA. Sexualidade Humana: verdade e significado, 55 (p.38). 254 CNBB. Ética: pessoa e sociedade, 168 (p. 71).

255 KEMP, Kênia. Corpo modificado, corpo livre? São Paulo: Paulus, 2005. p. 45.

256 No contexto atual esses grupos que fazem intervenções em seus corpos estariam ligados ao Movimento de

Modificações Corporais. Estudos feitos pela socióloga norte-americana Vittoria Pitts e, mencionados por Kênia Kemp na obra já citada no presente trabalho, mostram que as pessoas desse movimento surgiram nos EUA a partir da década de 80. Tinham por objetivo reviver e reatualizar rituais corporais indígenas ao redor do mundo, numa tentativa de entrar em contato com uma experiência espiritual mais autêntica do corpo (cf. Kênia Kemp. Corpo modificado, corpo livre? p. 10).

Há “os ‘primitivos modernos’ que (...) buscam todo tipo de técnica de modificação como as perfurações, o alargamento de lóbulos e lábios, as suspensões corporais e diferentes técnicas de escarificação”257. Estes estariam se inspirando nos registros de culturas primitivas e sobre as suas atitudes relativas ao corpo, daí a classificação terminológica.

Também há o grupo de pessoas com prática de modificações no corpo levadas ao ex- tremo do radicalismo. Tais têm atos que, vistos por outrem, representam verdadeiras agressi- vidades ao corpo, eles podem ser definidos como:

Praticantes de cirurgias eletivas como subincisão (técnica cirúrgica de preenchimento cutâneo), amputar membros, bipartir a face, a língua ou órgãos geni- tais masculinos, implantar objetos e pequenos aparelhos sob a pele para que fiquem aparentes, castração, implantes com arte em 3D (holografias tridimensionais) e corte do genital feminino258.

E, finalmente, o grupo do transgenderismo (transexualismo)259. Os pertencentes a este grupo têm por prática o popularmente chamado transformismo. Seus atos no corpo são os mais variados possíveis.

Vão desde a implantação de silicone em partes do corpo a cirurgias plás- ticas de mudança de sexo. As modificações corporais não invasivas, como prolon- gamento dos cabelos, depilação, maquilagem, entre outras, também constituem re- cursos importantes para esse grupo260.

Ao se pensar numa ética para o corpo nestes planos, muitas coisas podem ser refleti- das. A primeira coisa a ser considerada seria a relação de subserviência dos indivíduos em relação ao poder ditado pelas instâncias envolventes à realidade da pessoa; esta muitas vezes usa de seu corpo como instrumento de diálogo com esse poder.

O corpo modificável pelas técnicas médicas e semelhantes aos mitos e í- dolos da mídia é o corpo construído pelo poder. As disputas em torno da legitimi- dade, do valor estético, da moral em torno dessa modificação são as disputas que gi-

257 KEMP, Kênia. Corpo Modificado, corpo livre? p. 11. 258 Ib.

259 Cf. Ib. p. 12. 260 Ib. p. 12.

ram em torno da forma como os indivíduos lidam com essa representação de bele- za261.

Sabe-se acima de tudo o quanto os meios de comunicação, em nome do poder do mercado, sugerem cada vez mais biótipos apresentados por modelos corporais para, de certa forma, serem comprados pela sociedade. Junto a isso adentra miscelânea de elementos do moderno mundo globalizado, tais como as variadas tecnologias.

Outro fator a ser pensado, pode ser relacionado aos desejos e medos da pessoa. O mundo da pós-modernidade está vivendo a realidade da informatização, nesta cotidianamente o ser humano defronta com os fascínios da evolução da tecnologia científica, o computador e o microchip tido como de última geração hoje, poderá estar ultrapassado amanhã. As inova- ções nesta área são constantes e rápidas. Em contrapartida, o corpo humano, desde que atin- giu o estágio da evolução homossapiens continua o mesmo e o pior, se vê limitado pela velhi- ce e morte. As modificações corporais, neste sentido, seriam um desejo contra a conservação do ser, seriam tentativas de se ter evolução das características; sonhos de superar a finitude perante o medo da morte, formas de superar os desejos e os medos.

Desejos de dominar o corpo, estender a vida, melhorar a potencia do cor- po humano; e os medos de perder os domínios do corpo e ser dominado pelas má- quinas. Como o mito e a religião, que condizem o desejo e o medo para uma lin- guagem a partir da qual podemos entrar em contato com os sentimentos e trabalhar seus sentidos, a cultura da modificação cria sua própria linguagem262.

As modificações no corpo podem também estar relacionadas com o desejo de ruptura com a natureza em virtude da prevalência cultural. Como também um desejo de se abandonar as próprias tradições distanciando-se delas.

Algumas outras coisas poderiam também ser refletidas dentro da ética cristã sobre o corpo. Não estariam estes “primitivos modernos” numa inconsciente sede do sagrado, bus- cando satisfazê-la em seus próprios corpos, uma vez que o cultuam? Não estariam eles na forma antropológica, à semelhança das antigas religiões, cultuando o corpo justamente por desconhecerem a compreensão cristã sobre o mesmo a partir da ótica teológica? Talvez o

261 KEMP, Kênia. Corpo modificado, corpo livre? p. 60. 262 Ib. p. 73.

dualismo adentrando na cultura cristã tenha sido, de certa forma, a origem disso. Pois o ele- mento divino do corpo sempre esteve presente embora não valorizado. Quando isso em tem- pos remotos ocorreu nas tribos e religiões pagãs se sabe que foi de modo errôneo. Não estari- am eles em busca de respostas para o significado real do corpo, fator desconhecido por muitos na cultura atual? Muitas coisas poderiam ser refletidas nesse ponto, não se exclui o fenômeno cultural e as carências psicológicas dos membros desse grupo, contudo, suas atitudes podem levar a uma série de reflexão.

Sobre a moralidade disso o Magistério diz: “Uma intervenção no corpo humano não atinge apenas tecidos, órgãos e suas funções, mas envolve também, em diversos níveis, a pró- pria pessoa; ela comporta, pois, um significado e uma responsabilidade morais, de modo im- plícito talvez, porém real”263.

Ao segundo grupo, ou seja, o das pessoas praticantes de modificações radicais, além da reflexão anterior, pois pode também servir no caso deles, embora não estejam ligados a nenhuma forma cultual religiosa. Cabe para eles o pensamento sobre o valor sagrado do cor- po humano e o princípio de totalidade da moral da vida e da bioética cristã. Não faz sentido mutilar, extrair ou incidir, órgão do corpo algum a não ser em caso de doença que atente ao todo, e toda intervenção, qualquer que seja, fere o princípio da unidade corporal. O grande problema que estas pessoas pensam o corpo como um objeto a estarem carregando. Imagi- nam não ser um corpo, mas apenas terem um corpo.

Referente ao grupo dos transexuais caberia reflexão em primeiro lugar sob o nível antropológico. Toda a natureza viva, seja ela vegetal ou animal, está ordenada à reprodução a partir da bipolaridade macho-fêmea. Dentre os animais está a espécie humana, e essa caracte- rística também a abarca. A partir disso a antropologia cristã fundamenta na ordem natural e também na revelação para sustentar a bipolaridade homem e mulher como algo da vontade divina.

Deste modo, valeria a pena considerar o pensamento do Cardeal Scherer sobre esse assunto, conforme nas linhas seguintes:

263 CONGREGAÇÃO PARA DOUTRINA DA FÉ. Donun Vitae. Instrução sobre o respeito à vida humana e a

Para a antropologia cristã, a confusão quanto à identidade sexual, que se espalha sempre mais na cultura, não deixa de levantar uma séria preocupação. Para o pensamento cristão, a diferenciação sexual (homem e mulher) deve ser levada ple- namente a sério; a sexualidade afeta todos os aspectos da pessoa humana, na sua u- nidade de alma e corpo. Ela diz respeito à afetividade, à capacidade de amar e de procriar; de maneira mais geral, diz respeito à aptidão de criar vínculos serenos de comunhão com os outros264.

O mesmo cardeal ainda diz:

A Igreja Católica, portanto, vê com preocupação a crescente ambiguidade quanto à identidade sexual, que vai tomando conta da cultura. Antes de ser um pro- blema moral, é um problema antropológico. Evidentemente, isso não justifica qual- quer tipo de violência e agressão contra homossexuais ou quem quer que seja, mas é um convite a uma reflexão séria. Não é possível que a natureza tenha errado ao mol- dar o ser humano como homem e mulher. Isso tem um significado e é preciso des- cobri-lo e levá-lo a sério265.

Dentro dessa realidade, muitas vezes influenciadas por novos princípios culturais, há de se colocar em questão o quanto o psicológico das pessoas sofre verdadeiros bombardeios de estímulos ao que se chama liberação. No caso especifico das pessoas livremente submeti- das à mudança de sexo a situação tem problemas éticos ainda maiores. Muitos alegam ter cor- po biológico oposto ao seu ser psíquico, ontologicamente isso parece ser contraditório. Para se solucionar os problemas a medicina tem seus meios hoje.

À questão física não há mais obstáculo algum para isso. Com as técnicas cirúrgicas se constrói uma mulher no corpo de um homem e homem no corpo de uma mulher. No en- tanto, a construção desse ser, ou seja, a troca do sexo acaba por ser somente exterior. A mu- dança de gênero nunca será completa, pois o verdadeiro sexo biológico permanecerá, isto é, não há como fazer uma mudança de cromossomos. Deste modo o chamado transexual com sexo trocado terá seus novos órgãos só para fins sexuais e não reprodutivos.

Talvez o caminho ético nessas situações, embora não haja um pronunciamento ofici- al do Magistério, seria o trabalhar psicologicamente os não felizes com a sua sexualidade ao

264 Disponível em: http://www.cnbb.org.br/outros/cardeal-odilo-pedro-scherer/7137-homem-e-mulher-ele-os-

criou.

invés das dolorosas e drásticas cirurgias caras e sem garantia de realizações e felicidades, pois se sabe de pessoas que se sujeitaram a fazer a troca de sexo e continuam sentindo-se desloca- das internamente.