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A década de 1990: as contradições de um movimento

A HISTÓRIA DE UM MOVIMENTO

1.3 O Hip-Hop chega ao Brasil e a Belo Horizonte

1.3.1 A década de 1990: as contradições de um movimento

Em Belo Horizonte, no início dos anos de 1990, breakers e rappers devido ao acesso a diversas fontes de informações como filmes, revistas e vídeos importados, começaram a compreender a ideologia do movimento e aderir ao hip-hop.55 Através das revistas, os jovens dançarinos começaram a entender que o break não era uma dança isolada e que fazia parte de um movimento mais amplo. O lançamento do LP do grupo Runs DMC também foi uma fonte importante para o movimento, trazendo mais

informações sobre o rap e suas características.

Nesse período, o rap americano vivenciava uma nova fase com uma nova geração de rappers. Observa-se que a partir desse momento, a temática racial torna-se

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DAYRELL, 2001, p.47.

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Segundo Dayrell (2001), o termo uma das formas de nomear música funk. É originária do Rio de Janeiro, onde os funkeiros adaptavam as músicas americanas na base da homofonia.

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Em depoimentos a Dayrell (2001) alguns jovens pontuaram as dificuldades que tinham para adquirirem exemplares das revistas americanas que traziam reportagens sobre o movimento hip-hop e, também, de traduzi-las para o português.

central dentro do movimento. A luta pelos direitos civis da população negra e a mobilização dos símbolos afro-americanos internacionalizados integraram-se ao universo discursivo dos grupos de rap. Referências à África, a Malcom X, a Martin Luter King e aos Panteras Negras estavam presentes nas músicas, nos videoclipes e nas capas dos discos, tornando esses símbolos familiares também aos rappers paulistanos. Essa nova geração de rappers americanos composta por grupos como Public Enemy, NWA e outros torna-se a referência principal para uma parte expressiva dos rappers

brasileiros. O rap paulista, nessa época, ao mesmo tempo em que se expandia passava por uma fase de transformação. Os grupos começaram a se organizar em termos de proposta musical e tornaram-se mais comprometidos com o discurso e com a palavra, adotando a tendência do denominado “rap consciente”.

De acordo com Silva (1999), nessa época, para o movimento em São Paulo, as preocupações em relação ao discurso que era produzido nas letras eram mais evidentes do que as preocupações com a criação das bases sonoras. O essencial era conhecer o contexto social que estavam inseridos e, para isso, era necessário compreender a trajetória da população negra na América e no Brasil. A intenção era conseguir o máximo de informações possíveis para fundamentar suas ações. A partir do conhecimento da história da diáspora negra e da compreensão da questão racial no Brasil, os rappers paulistanos começaram a denunciar, por meios de suas músicas, o racismo presente no país e a marginalização da população negra e de seus descendentes.

Ambos cenários, americano e paulista, foram vistos como referência para o rap mineiro. Os grupos de rap que existiam na cidade, por meio dos discos e videoclipes, passaram a ter acesso ao “rap consciente”, engajado, cujo principal expoente era o grupo Public Enemy. Esse conjunto de influências possibilitou aos adeptos do rap, do break e do grafite compreenderem que faziam parte de um movimento que tinha como

eixo central discutir a condição de excluído de seus integrantes. Independente da forma de expressão artística utilizada, o essencial era trazer ao palco das discussões a questão da negritude. Assim, os grupos de rap passaram a se referir de forma mais agressiva às temáticas da realidade local, ressaltando a violência e o tráfico de drogas presentes em suas comunidades.

No percurso de afirmação e de construção de suas respectivas identidades, os grupos de rap perderam gradativamente o espaço nos bailes. Isso porque, nos shows, enfatizavam a importância da mensagem que queriam passar, incentivando o público a prestar atenção nas letras, ao invés de ficar apenas dançando. Esse posicionamento não coincidia com o clima de diversão que imperava nos bailes e os grupos de rap precisaram buscar novos caminhos.

As apresentações dos grupos passaram a ser mais constantes nas festas de rua organizadas pela Igreja Católica ou por movimentos dos bairros. Não existia ainda nenhuma casa noturna que se destinasse ao estilo. O espaço de encontro dos grupos era o terminal turístico JK56, aos domingos. No entanto, após algum tempo, esses encontros foram proibidos pelo condomínio do prédio, sendo transferidos para a Galeria Praça 7.57

Na primeira metade da década de 1990, o rap cresceu modestamente em Belo Horizonte. O número de grupos que possuíam uma certa estrutura era pequeno, havia poucos grafiteiros e um número considerável de gangues de breakers. Dayrell (2001) nos mostra que até 1995, em Belo Horizonte,

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O terminal Turístico JK localiza-se na área central da cidade, sendo o “pilotis” do conjunto habitacional JK. Hoje, o terminal além de ser um complexo de lojas de agências de viagem, contempla uma casa cultural chamada Matriz voltada para o cenário musical independente da cidade e uma delegacia regional de polícia. Naquela época, o terminal funcionava para o embarque e desembarque de passageiros de excursões promovidas pelas agências de viagem.

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A Galeria Praça 7, localizada no centro da cidade, é um espaço tradicional na cidade que concentra um conjunto de lojas, bares e também um salão étnico. É um ponto de encontro dos integrantes dos estilos musicais rock e funk e, principalmente, do rap. Na Galeria é possível encontrar lojas de roupas e discos voltados para esse gênero musical.

o estilo rap, como parte do movimento hip-hop, mostrava-se fechado, com um público que não ia além do pequeno grupo de adeptos; o contrário ocorria em São Paulo, que no mesmo período aumentou o seu público entre os jovens, com o crescimento do número de bailes, ampliando as posses pelas periferias da cidade, conquistando espaços no mercado fonográfico por intermédio das gravadoras independentes58.

Segundo o autor, alguns fatores permitem compreender as razões dessa incipiência. Um primeiro fator diz respeito à precária divulgação de informações sobre o próprio movimento. Para a grande maioria dos jovens, a identidade do movimento restringia-se a uma linguagem cultural (ou ao rap ou ao grafite ou ao break) e a ao discurso social que ela expressava. Na visão de Dayrell, os grupos de rap não se preocupavam ou não tinham a noção que essas linguagens deveriam ser traduzidas em uma forma de organização coletiva59. Os esforços centravam-se no caráter artístico, em potencializar a capacidade de produção das músicas, e na ampliação dos espaços de apresentação, na esperança de alcançar uma projeção local e nacional, garantindo a subsistência com a música.

Outro aspecto que pode ser considerado é a falta de vínculos nos próprios bairros de origem. Não houve, por parte dos grupos, um investimento na conquista de um público fiel que os acompanhasse e consumisse a produção musical que realizavam60. Assim como também não houve uma preocupação em difundir a “ideologia” do movimento hip-hop.

Por último, a produção musical que os grupos realizavam era precária. Isso se deve, por um lado, pela supervalorização das mensagens que queriam passar em detrimento de uma boa base musical. As gravações, realizadas geralmente nas próprias casas dos jovens, sem contar com os devidos recursos tecnológicos, eram “artesanais”.

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DAYRELL, 2001, p. 55.

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Cf. DAYRELL, 2001.

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Por outro lado, a grande maioria dos rappers não possuía maiores conhecimentos musicais, o que interferia diretamente na qualidade das músicas produzidas.

A partir do ano de 1995, o cenário do movimento passa a sofrer mudanças, ganhando um novo impulso. Nessa época, apesar do advento da moda “house”, os eventos de hip-hop tornaram-se mais constantes61. Os eventos de rua reapareceram, sendo que muitos deles eram promovidos pela Prefeitura da Cidade. Em alguns bairros, os rappers locais começaram a promover “Encontros de hip-hop”, reunindo diversos grupos da cidade. Paralelamente, também nos bairros, começaram a surgir “sons” de rua mais organizados, os quais se tornaram ponto de referência na divulgação do rap.

Um dos fatores responsáveis por essa guinada foi a significativa e crescente popularização, através da mídia, de grupos de rap nacionais, entre os quais destaca-se Racionais Mc’s. Dayrell (2001) ressalta que esse grupo, ao visitar Belo Horizonte pela

primeira vez, em 1995, estabeleceu contatos com os rappers locais, influenciando-os na postura em relação ao hip-hop e estimulando o surgimento de muitos grupos. Junto com o autor, pode-se observar que, para os grupos formados nessa época, a influência do grupo Racionais Mc’s é extremamente expressiva. Isso porque a maioria desses grupos passa a desenvolver um rap com letras voltadas para a realidade de pobreza, discriminação e violência nas favelas e bairros pobres da cidade.

As rádios comunitárias também contribuíram para a divulgação do rap na cidade. Muitas dessas rádios surgiram nessa época e tornaram-se espaço fundamental de veiculação e divulgação dos grupos de rap na sua programação, através de programas conduzidos por DJs conhecidos na cena hip-hop, músicas de rap, etc.

Outra novidade foi o surgimento de espaços culturais alternativos para um público que consumia rap. Além dos “sons” realizados na rua, vários locais foram

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Dayrell (2001) explica que “o break foi perdendo espaços nos bailes da cidade com a chegada da moda house, cujas batidas eletrônicas e a difusão das coreografias coletivas envolveu grande parte dos jovens das periferias. Vários depoimentos confirmam que a moda house foi o fim do break nos bailes.” (pg. 60)

abertos para “abrigar” os grupos de rap, DJs locais e, principalmente, o público apreciador da música. Dentre eles, houve a Broadway, um bar temático localizado num bairro de classe média e com uma programação voltada para os estilos underground, desde o hard rock até o rap. De acordo com Dayrell,

Este foi o primeiro espaço na cidade onde se reuniam jovens da periferia e da zona sul em torno da música, possibilitando um contato interclasses inexistente em outros espaços, tornando-se uma referência de encontro e ampliação do acesso musical para os rappers locais. A

Broaday chegou a promover alguns eventos, como o 1º Encontro de

Rap em 1996, com a participação de grupos da cidade, bem como shows com grupos de São Paulo”.62

Também em alguns espaços no centro da cidade começaram a acontecer festas de rap com produção de pessoas do próprio meio. Um desses espaços foi o bar Butecário que funcionava no centro da cidade. O bar era um amplo salão na sede do Sindicato dos Bancários e, nos finais de semana, promovia shows de rap. Já em 1997, em duas gafieiras da Cidade, Elite e Estrela, festas de rap tornaram-se constantes em suas respectivas programações, atraindo também um público jovem de classe média.

O período foi marcado também pelo surgimento de algumas formas de organização do movimento hip-hop. Uma delas foi a Posse de Santa Luzia, cidade da Região Metropolitana de Belo Horizonte e a outra, a primeira posse de Belo Horizonte,

Crê-Ser, englobando nove grupos de rap63. Houve, também, o surgimento do

Movimento Hip-Hop Organizado (MH2O) que dentre algumas ações, publicou um fanzine com o mesmo nome. O material continha entrevistas com grupos, notícias sobre eventos e informações sobre o movimento na cidade. O fanzine foi um meio importante

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DAYRELL, 2001, p.62.

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De acordo com Silva (1998), posse é uma espécie de associação local de grupos de jovens que se reúnem para discutir a realidade conflitiva em que estão inseridos e propor, através da cultura e do lazer, uma nova forma de vivenciar essa realidade. Normalmente, uma posse reúne grupos de rap, breakers e grafiteiros que buscam na ação coletiva se aperfeiçoar artisticamente, assim como promover a divulgação do hip-hop.

para a discussão e divulgação do estilo musical na cidade, pois como informa Dayrell, através da

leitura dos materiais dos fanzines é possível destacar algumas questões que o movimento enfocava na época, muitas delas debatidas até hoje, como o profissionalismo dos grupos de rap e DJs. O tom é de crítica aos grupos. (...) E estimulam os grupos existentes a buscar inovações, a procurar uma visão musical mais ampla de forma a contribuir para o crescimento do rap com qualidade. Outra preocupação presente é a necessidade da ampliação dos espaços existentes nas rádios, bem como do número de eventos de hip-hop na cidade para que o movimento ganhe maior visibilidade. (...) Uma outra questão sempre presente é a crítica à falta de infra-estrutura dos eventos, principalmente a qualidade do som, que termina interferindo na produção musical dos grupos, além de reforçar uma imagem de amadorismo do movimento.64

Dessa forma, avalio que a década de 1990 significou para o movimento, além da entrada do hip-hop no campo étnico, a opção por uma única e forte tendência da música que foi consolidada no Brasil pelo grupo Racionais Mc’s. Foi um período em que, apesar da ampliação de espaços para o rap, não houve uma coesão entre os grupos e um fortalecimento do movimento hip-hop local.

1.3.2 O cenário atual: novas e velhas leituras (re) configurando o movimento em Belo